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    Dramaturga mineira Grace Passô descortina racismo e machismo

    LUCIANA ROMAGNOLLI

    18/06/2017 02h00

    RESUMO A dramaturga mineira Grace Passô já teve peças traduzidas para seis idiomas e recebeu duas vezes o principal prêmio do teatro nacional. Em julho, participa da Flip. Também diretora e atriz, notabilizou-se pelo arrojo de suas experimentações formais e por fazer da cena um campo de enfrentamento da intolerância.

    Foi-se o tempo em que o hipopótamo que devorou o pai de família permanecia oculto. A lama na qual ele habita inundou cidades às vistas de todo o público.

    Na peça "Amores Surdos" , de 2006, a metáfora absurda envolvendo o mamífero herbívoro embalava a história de uma família incapaz de expressar afetos. Hoje, o teatro da dramaturga, atriz e diretora mineira Grace Passô, 37, ousa outras linguagens. A sutileza da analogia já não basta para enfrentar o despudor do machismo, do racismo e de outras manifestações de ódio.

    "Mata Teu Pai" , em cartaz até o dia 26 no Galpão Gamboa, no Rio (e a partir de 31/8, no teatro Poeira, na mesma cidade), é fruto dessa consciência aflorada.

    Convidada pela diretora Inez Viana e pela atriz Débora Lamm a escrever sua versão de Medeia, Passô afastou-se da trilha aberta por Eurípedes, autor da tragédia que perpetuou o mito grego, para se concentrar na força de insubordinação da personagem e em sua possível transposição para o presente.

    Revoltando-se contra a ordem patriarcal, a feiticeira inflama a plateia a enfrentar o pai traidor, Jasão –dirige-se a ela como a uma linhagem de filhas conclamadas a se insurgirem contra o progenitor. No texto clássico, Medeia mata as crias para se vingar do marido, que a deixou para casar-se com uma princesa.

    "É como se essa Medeia pudesse traduzir a dimensão indomável das mulheres do nosso tempo, que são as manifestantes feministas. É a visão delas que nos mostra a possibilidade de invertermos a lógica da nossa sociedade", diz Passô.

    Em cena, Medeia já não deseja a morte da noiva de Jasão, mas sim a dele, numa reação que reconhece também a outra mulher como vítima da misoginia. Recém-lançada em livro pela Cobogó, a dramaturgia do espetáculo ecoa a do monólogo "Vaga Carne" (2016).

    "Esse foi um trabalho em que me permiti radicalizar em alguns pontos, o que é muito importante para um artista. Ele expandiu minha experiência de escrita e de atuação", afirma, referindo-se às experimentações formais com as quais revolve a linguagem para criar uma dissociação entre uma voz e o corpo do qual ela se apossa.

    VOO SOLO

    Com peças traduzidas para o espanhol, o inglês, o francês, o italiano, o polonês e o chinês, e tendo recebido dois prêmios Shell (o principal do teatro brasileiro) de melhor dramaturgia, Passô está escalada para a Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), em julho.

    Ela participa da série de intervenções performáticas "Fruto Estranho", uma novidade desta edição. "Vou escrever a partir da experiência do 'Vaga Carne'. Vai ser um desdobramento da forma como trato a palavra naquele espetáculo", adianta. Quem estiver por lá pode esperar um trabalho poético de estranhamento entre o corpo que fala, a materialidade da língua e suas significações.

    "Mata Teu Pai" e "Vaga Carne" (a ser editado pela Javali neste ano), os trabalhos mais recentes da autora, atestam o vigor do voo solo que ela iniciou em 2013, quando se desligou do grupo belo-horizontino Espanca!, que se projetara com "Por Elise" (2005; primeiro Shell de texto para Passô) e os "Amores Surdos" da abertura desta reportagem.

    Desde então, a mineira estreitou laços com antigos parceiros e encontrou novos interlocutores pelo país.

    Seguiu os passos de Sérgio Penna no espetáculo de dança "Rasante" (2014); dirigiu as conterrâneas Yara de Novaes e Débora Falabella em "Contrações" (2013); escreveu "Guerrilheiras ou Para a Terra não Há Desaparecidos" (2015) para a direção de Georgette Fadel, em São Paulo; atuou com Renata Sorrah, Inez Viana e a Companhia Brasileira em "Krum" (2015), multipremiado no Rio.

    Não lhe interessa, com esse périplo, tornar-se uma "artista diversificada" (versátil, porém sem profundidade), mas adensar a própria voz e aguçar sua capacidade de criação.

    Desde a estreia de "Vaga Carne" no Festival de Curitiba de 2016, liberdade é a palavra mais ouvida por Passô na boca de espectadores que a procuram para dizer o que os cativou na montagem (ou o que sentiram diante dela).

    "Esse texto funda um modo de narração na dramaturgia. Uma voz que invade um corpo e o manipula nos coloca de novo frente à palavra e transforma o sentido do teatro", opina Inez Viana, em alusão a uma teatralidade que já não se direciona nem às relações externas, como no drama, nem à interioridade de um eu lírico, mas à própria constituição do sujeito pela linguagem.

    VIRADA

    Para o diretor da Companhia Brasileira, Marcio Abreu, o solo marca um ponto de virada –e de abertura– na carreira da escritora, que experimenta estruturas diferentes daquelas fundadas em fábulas contemporâneas e personagens. "Grace escava a experiência do teatro, faz emergir a voz dela e tem a coragem de ir para um lugar mais desconhecido como linguagem", afirma.

    Além da complexidade formal, chama atenção o modo como a artista avança "na investigação da identidade, sem abandonar suas contradições", conforme descreve Aline Vila Real, produtora do Espanca! desde 2008 e diretora da nova peça do grupo, "Passarão".

    Na visão de Isabel Diegues, diretora editorial da Cobogó, que publicou cinco textos de Passô, as experimentações formais ensaiadas nas primeiras peças com o Espanca! deram à autora propriedade para incorporar "a condição de mulher, negra, atriz e diretora" a sua escrita.

    Se é verdade que todo artista orbita ao redor de um ou de alguns poucos temas ao longo de sua trajetória profissional, o mote principal de Grace Passô seria o descompasso entre corpos, palavras e imagens.

    "A língua do mundo sempre me foi muito penosa, e a minha ideia de comunicação é um abismo. Meu contato com a arte tem a dimensão de descoberta de uma língua –e isso não é uma metáfora", diz Passô, escolhendo com cuidado suas palavras. "Quando escrevo ou atuo, me sinto falando mais a verdade do que aqui e agora", acrescenta, num café no centro de Belo Horizonte.

    Norte de sua obra, a ideia de invenção é levada ao paroxismo em "Congresso Internacional do Medo" (2008), em que a autora criou um idioma para cada personagem. "Ela tinha post-its espalhados pela casa toda, com desenhos, coisas escritas ao contrário, palavras inventadas", lembra a iluminadora Nadja Naira, integrante da Companhia Brasileira. "Demorou anos para [o espetáculo] amadurecer e chegar ao que era proposto. Ela tinha uma visão de futuro ali."

    Criada no bairro Alípio de Melo, na periferia de Belo Horizonte, Passô conta que o contato com a literatura na infância, quando a irmã professora a obrigava a ler, abriu-lhe as portas para escrever sem pudor.

    "Sou a filha mais nova de uma família de operários vindos do interior de Minas e da Bahia, pessoas com aptidões artísticas enormes. Fui a única com oportunidade real de experimentar a arte como trabalho", diz a caçula de seis.

    SEMENTES

    Quem lhe trouxe a "noção radical de inventividade", ainda nas leituras de infância, não foi outro senão Guimarães Rosa. "Ele carrega um olhar sobre um tipo de sujeito no qual consigo me reconhecer –o sertanejo– e toca em lugares pelos quais minha história familiar já passou, como mineira. Foi meu encorajamento para inventar", afirma.

    E ela não mais se conteve. Dona de "uma imaginação muito solta", nas palavras de Marcelo Castro, ator e cofundador do Espanca!, Passô fez valer a infância desfrutada ao ar livre, aquela "vida com espaço para o pensamento".

    "Consigo imaginar essa menina fabulando no quintal. O jeito como escreve não vem de nada que leu. Ela está à frente, criando a partir do inconsciente. Sempre me impressionam seus 'insights'", afirma Castro.

    Para Aline Vila Real, a dramaturga realizou a difícil travessia entre "os estudos teóricos de homens brancos europeus", aprendidos nos bancos da escola de teatro (o Centro de Formação Artística e Tecnologia da Fundação Clóvis Salgado), e uma escrita que representasse sua própria personalidade, sustentada por raízes profundas e trabalhada à exaustão.

    Em seus processos criativos, Passô costuma investir as 24 horas do dia. Para "Congresso Internacional do Medo", dirigia improvisações de manhã e à tarde e escrevia à noite. Essa propensão à imersão a levou a dividir um apartamento com os integrantes do grupo paulista XIX por seis meses para conceber "Marcha para Zenturo" (2010) e a se mudar para Buenos Aires por "O Líquido Tátil" (2012).

    No teatro da mineira, essa tensão entre exterior e interior, objetivo e subjetivo, caminha ao lado de uma convicção da qual ela não arreda pé: "Não deixar a ficção se sobrepor à consciência de que estou presente diante do público". Com isso em mente, busca questionar os automatismos do rito teatral, criando formas de direcionar a atenção à situação de encontro com os espectadores.

    Desde "Por Elise", os processos criativos do Espanca! se detinham em questões como "o que acontece depois que as cortinas se abrem?", "elas se abrem?", "como soam os sinais?", "como transformar essas formalidades e convenções?", recorda Marcelo Castro.

    Esse tipo de metalinguagem e autorreflexão escapa do hermetismo graças à fluidez poética das metáforas criadas. O expediente instiga a imaginação tanto pelos elementos materiais da cena quanto pelos jogos com a linguagem.

    RÓTULOS

    Outra obsessão da autora é a de "explicitar o que não se consegue ver na imagem de alguém". Para Nadja Naira, o que Passô faz é desmontar rótulos e estereótipos impostos às imagens. "Mesmo eu, você, qualquer pessoa tem essas travas. Estão cravadas em nós, é difícil ver de onde vêm e saber como lutar contra elas", diz a iluminadora e atriz.

    Passô conta sentir nela mesma a força perversa dessas etiquetas. "Sempre achei que havia uma distância enorme entre o que a minha imagem sugere à sociedade racista e machista e o que ela [efetivamente] é capaz de fazer", afirma, comparando-se ao silencioso hipopótamo de "Amores Surdos", que "guarda uma fera muito grande dentro de si".

    Por ter lutado para estar em instituições "mais ricas ou mais brancas", a dramaturga e atriz não subestima a importância de sua presença em cena ser posta em evidência. Sabe que, de alguma forma, encarna a superação da opressão. "'Vaga Carne', para mim, é esse grito da imagem do corpo, com tudo o que ele significa."

    A destreza com que ela transita entre a escrita, a direção e a atuação é fruto de uma formação fora do ambiente acadêmico, num tempo em que a faculdade de teatro ainda dava os primeiros passos em Belo Horizonte.

    Passô conciliava o curso técnico no Centro de Formação Artística e Tecnológica (Cefart), no prestigioso Palácio das Artes, com tentativas de criar companhias teatrais. "Ia buscando as referências enquanto fazia. Comecei a trabalhar antes de pensar em função [específica]", lembra.

    Foi na mesma época, em 2002, que Marcelo Castro assistiu à peça "Todas as Belezas do Mundo", da Cia. Clara, e se encantou pelo desempenho de Passô –com tal intensidade que logo tratou de se juntar ao grupo. Pouco depois, acompanhou-a na fundação do Espanca!, em que a artista acumularia funções de atriz, dramaturga e encenadora. "Essa totalidade já estava colocada", observa o ator.

    Apesar de "Por Elise", com texto de Passô, ter sido sucesso de público e crítica, os integrantes da companhia cogitaram outros autores para o segundo projeto da trupe, que originalmente seria dirigido por Marcio Abreu. "No último momento, a Grace, meio tímida, disse 'eu tenho um texto' e mostrou o esboço de 'Amores Surdos'", lembra Castro. Ao que Abreu reagiu: "Você tem que montar isso!".

    Ali já estavam dados os contornos do fino comentário social que viria a ser sua marca. "Grace tem um olhar poético para questões agudas da sociedade, [cria] uma poética da violência, sem camuflar contradições", avalia Aline Vila Real.

    Com o tempo, os primeiros espetáculos da artista se abriram a novos sentidos. "Visitando fotos antigas de 'Amores Surdos', vemos que a mãe tinha o cabelo escovado. Hoje, a Grace faz [a personagem] de cabelos crespos. Aquele olhar crítico está ainda mais direto", completa Vila Real.

    COMO UM CACHORRO

    Entre 2004 e 2013, o Espanca! encenou cinco espetáculos –quatro deles com textos assinados pela autora. Única peça que ela não escreveu, "O Líquido Tátil" representou também sua despedida da companhia.

    Texto e direção eram do argentino Daniel Veronese , em quem a diligência de Passô deixou forte impressão. "Podia-se ver através dos olhos e da expressão do rosto como ela processava, entendia e executava. Eu a definiria como uma atriz potente e muito profissional", recorda, em e-mail.

    "Levo [o ofício] a sério como uma criança", define a artista, em busca de uma comparação que dê conta da ideia de se entregar por inteiro àquilo que se faz. "Ou como um cachorro."

    Nadja Naira, parceira na criação de "Vaga Carne" e "Mata Teu Pai", faz coro. "Ela não consegue realizar nenhum trabalho que não mobilize todas as suas células. Quando está perdida ou insegura, não esconde. É até engraçado fazer teatro, lugar da simulação, exatamente o que ela não é."

    Atualmente, Passô entrega suas células a projetos que iluminam questões identitárias. Ela dirige "Eras", novo show das Negras Autoras. "É uma reunião de mulheres negras. Não existe nenhum discurso que dê conta desse fato. Essa convivência é extremamente revolucionária", diz a diretora.

    Ao lado de Marcio Abreu, ela inicia a criação do próximo espetáculo da Companhia Brasileira. Será um desdobramento do "projeto brasil" (que abrangeu ações realizadas em capitais das cinco regiões do país e a montagem do espetáculo homônimo), provisoriamente batizado de "Preto" e realizado em coprodução com teatros de Dresden e Frankfurt, na Alemanha.

    A pesquisa debruça-se sobre o passado escravocrata do país e seus ecos no presente, escavando tabus e violências veladas infligidas aos negros. Além de atriz, a mineira será uma das dramaturgas da montagem.

    Ao mesmo tempo, ela prepara uma nova peça do projeto "Grãos de Imagem", o mesmo que originou "Vaga Carne". O mote agora é a tentativa de um escritor de colonizar o corpo de uma atriz –ponto de partida que ganha outra camada de leitura pelo fato de ser ela, uma autora, a "parir" esse personagem.

    Além de buscar os palcos, Passô aventura-se cada vez mais no cinema. Em "Praça Paris", de Lúcia Murat (de "A Memória que me Contam"), interpretará sua primeira protagonista, ao lado da atriz portuguesa Joana de Verona. A personagem é uma ascensorista da Universidade Federal do Rio de Janeiro que faz terapia num programa de assistência a carentes.

    "Nunca tenho noção da direção que um filme vai tomar. Essa é a grande diferença para mim [em relação ao teatro]: não estar na concepção das coisas", diz a atriz.

    Ela estará também em dois longas-metragens da produtora mineira Filmes de Plástico: "No Coração do Mundo", de Gabriel Martins e Maurílio Martins, e "Temporada", de André Novais Oliveira. E no próximo filme de Ricardo Alves Jr. –parceiro de longa data, com quem já manteve um blog (Senhora K) e montou uma versão teatral para "Sarabanda" (2013), de Ingmar Bergman, além de atuar sob a direção dele no filme "Elon Não Acredita na Morte".

    Para a atriz, dramaturga e diretora que inventa línguas teatrais como estratégia de resistência numa sociedade organizada por relações de opressão, "a época é perigosa em todos os níveis –tanto político quanto subjetivo–, mas, ao mesmo tempo, profundamente transformadora".

    É sua maneira de sugerir (esperar?) que a lama que tudo impregnava em "Amores Surdos" e hoje engolfa o país arraste de vez comportamentos antidemocráticos e gestos de intolerância, sobre os quais nenhuma língua (consagrada ou inventada no ato) pode silenciar.

    LUCIANA ROMAGNOLLI, 34, é jornalista, crítica de teatro e editora do site Horizonte da Cena.

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