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    Quando Domingos Montagner fez papel de palhaço vestido de bailarina

    FERNANDO SAMPAIO

    25/06/2017 02h00

    Carlos Gueller
    Domingos (de branco) e Fernando apresentam número de bailarinas, em 2005
    Domingos (de branco) e Fernando apresentam número de bailarinas, em 2005

    A Cia. La Mínima, de circo, nasceu com a estreia de um número de balé em um festival... de dança.

    Domingos [Montagner] e eu nos conhecemos no Circo Escola Picadeiro no fim dos anos 1980 e ali tivemos uma paixão em comum: a arte da palhaçaria, aprendida com o mestre Roger Avanzi. Gostávamos tanto de treinar que as aulas terminavam e ficávamos até mais tarde, conversando e ensaiando.

    Aprendemos as entradas clássicas de palhaços, aquelas que, se bem feitas, não têm erro. Sempre gostamos do clássico, mas queríamos um número original. Pensamos em uma sátira de um número de balé. Nós como bailarinas. Não deixa de ser um clássico: palhaços vestidos de mulheres.

    Com a ajuda da coreógrafa e amiga Ju Neves, escolhemos os movimentos clássicos de um "pas de deux" para criar um número acrobático e de trapézio. Precisávamos de um nome. Consultamos nosso amigo, o saudoso Naum Alves de Souza, e ele palpitou: "Uma companhia de balé com duas pessoas? La Mínima Cia. de Ballet". Gostamos, e o nome ficou.

    Ali se desenhava a possibilidade de uma trupe. Fomos em busca de uma agenda. Ficamos sabendo de um festival de números inéditos. Perfeito! Não fosse o nosso um número de palhaços, e o festival... de dança. Mas era um balé, afinal, e decidimos nos inscrever. Não sabíamos nem se aceitariam nossa inscrição. Aceitaram, mas precisaríamos passar por uma audição.

    No dia da audição, a primeira surpresa: a sala tinha o pé-direito baixo. Comportava mal uma segunda altura, trapézio nem pensar. Nova surpresa: o piso era liso demais para nossas acrobacias. Apresentamos a cena, mas ficamos com aquela sensação de "já perdeu".

    Fomos aceitos! O que o júri teria visto que justificasse nossa participação no festival? O programa nos dá uma pista: "Hoje (a dança) tem a um só tempo a ausência da censura e a possibilidade de tocar universos tão distantes quanto o teatro experimental, o vídeo, o circo, a literatura e a física. (...) Vamos assistir a uma mostra que tem de tudo". De tudo mesmo!

    Era 30 de agosto de 1997, dia da apresentação. Fazíamos um ensaio técnico. Ao fazer um movimento, perdi um tempo e o Domingos não me alcançou para me segurar. Mas não desistiu de me buscar: esticou o braço e bateu o dedo na minha perna, fraturando o dedão.

    Seguimos. Circo tem dessas coisas, é a chamada arte da superação. Apresentamos o número nos dois dias. O público nos recebeu muito bem. Vimos ali o que já sabíamos, mas que é sempre bom verificar: lugar de palhaço é em todo lugar.

    Apresentação de Cia de Ballet na Lapa, Rio de Janeiro, dentro do projeto Pano de Roda

    Em 2002, apresentamos o número no Festival Mundial de Circo, em Belo Horizonte. No júri, o diretor do Festival de Demain, Dominique Mauclair. Ganhamos o festival, na época competitivo, e fomos com o número das bailarinas para a França, onde nos apresentamos no Cirque d'Hiver, em Paris. A companhia fazia cinco anos em grande estilo.

    Dali em diante, seguimos nossa trajetória no ofício. Criamos números e espetáculos de rua e de sala e nos apresentamos em parques, lonas e palcos.

    A companhia sempre bebeu em fontes variadas. Em "À La Carte", na fonte da palhaçaria clássica, sob a direção de Leris Colombaioni, de família circense tradicional europeia. Em "A Noite dos Palhaços Mudos", foi a vez das HQs, nos quadrinhos homônimos da Laerte, com direção de Álvaro Assad. Em "Mistero Buffo", na genialidade de Dario Fo, sob a direção de Neyde Veneziano. Muitas foram as fontes, mas um só o centro: a figura do palhaço.

    Até agora, foram 14 espetáculos em 20 anos de atividade ininterrupta. Nem a agenda frenética do Domingos nos últimos anos nos impediu de cumprir nossos compromissos. Não raro, ele iniciava o dia gravando no Rio de Janeiro e terminava em São Paulo, num palco de teatro ou circo.

    Hoje, vestimos o "tutu" para a temporada de "Pagliacci" , concebido para as comemorações de 20 anos da companhia. Uma homenagem à palhaçaria. Uma homenagem ao Domingos. Uma homenagem ao circo.

    Colaborou FERNANDO PAZ

    Nota: O espetáculo "Pagliacci" está em cartaz no Teatro do Sesi, em São Paulo, de quinta a sábado, às 20h, e aos domingos, às 19h, até 2/7.

    FERNANDO SAMPAIO, 52, é palhaço e professor de circo.

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