• Ilustríssima

    Friday, 03-May-2024 02:04:09 -03

    Em Paraty, terra da Flip, crise levou ao fechamento de biblioteca

    OVÍDIO POLI JUNIOR

    23/07/2017 02h00

    Pierre Duarte - 30.out.2016/Folhapress
    A Igreja da Matriz, em Paraty, que irá receber as principais mesas da Flip 2016
    A Igreja da Matriz, em Paraty, que irá receber as principais mesas da Flip 2016

    Paraty às vésperas da Flip é sempre bela nas manhãs de inverno: o voo concêntrico dos urubus se aquecendo ao sol, o mergulho dos biguás em busca de alimento, o pouso silencioso das garças, os barqueiros pintando o costado das pequenas embarcações.

    Pego a bicicleta e vou zanzar pela beira-rio e nas imediações do centro histórico. A cidade se prepara para o encontro literário. Nos bares, restaurantes e pousadas, todos estão em compasso de espera. Mas a placidez do cenário não esconde certa apreensão no ar, um receio de que a festa possa acabar.

    A crise econômica que dilacera o país dos bruzundangas (para lembrar a república paródica criada pelo homenageado da festa neste 2017, Lima Barreto) não atingiu apenas a programação principal da festa. Resvalou na Flipinha e na FlipZona, voltadas, respectivamente, aos públicos infantil e juvenil.

    Com dificuldades na captação de recursos, a Casa Azul, associação que promove o evento, teve de realizá-lo no final de julho, coincidindo com as férias escolares, o que certamente diminuirá a participação das escolas da região.

    A biblioteca mantida pela entidade na periferia fechou as portas –e é sintomático que, no mesmo dia, uma educadora tenha visto um garoto cabisbaixo sentado no degrau de entrada do local e, na rua, meninos brincando com armas de fogo feitas de papelão e fita isolante.

    A Flip deste ano será de resistência. Paraty, de seu lado, é terra de piratas e saberá não se dobrar. Como diz Flávio de Araújo, poeta da terra e filho de caiçaras: "É na tempestade que cada um sabe a âncora que tem".

    COBRA MÁGICA

    Provinciana e cosmopolita, Paraty prestará homenagem à escrita combativa de Lima Barreto. Palco principal dos debates, a igreja matriz (igreja de Nossa Senhora dos Remédios, erguida em 1873) passará por adequações cenográficas.

    Uma reportagem publicada em maio causou espécie na comunidade católica ao informar que os santos seriam retirados do templo para a realização do evento. Logo a Flip soltou uma nota para desfazer o mal-entendido: o que será removido é o sacrário (pequeno cofre onde se guarda a hóstia).

    Segundo uma lenda que ainda atiça a imaginação dos locais, uma cobra repousa naquela edificação, onde uma santa prende a cabeça do réptil. Isso não impede o animal de seguir se espichando em direção ao Pontal, a algumas centenas de metros. Reza a crença que, se alguém tirar a santa do lugar, a igreja afunda e a cobra destrói a cidade.

    BISCOITO FINO

    Mas nem só de pão vive o homem. Digna de nota é a criação de um novo espaço do Sesc em Paraty. Situada na área urbana da cidade, às margens do Perequê-Açu, a nova unidade fica em um terreno de vegetação preservada, com área de 28 mil m².

    O espaço será inaugurado com uma exposição de 34 obras do escultor pernambucano Francisco Brennand e acolherá atividades culturais ao longo de todo o ano.

    A NOVA CALIFÓRNIA

    No conto "A Nova Califórnia", de Lima Barreto, uma pequena cidade é levada à loucura depois que o químico Raimundo Flamel revela ter descoberto uma fórmula para transformar ossos humanos em ouro. Começa então uma onda de saques a sepulturas: "os mortos eram poucos e não bastavam para satisfazer a fome dos vivos".

    O conflito se estende e leva os habitantes a se matarem uns aos outros. De manhã, o cemitério local tem mais mortos do que recebera desde sua criação. O único personagem que não se envolve na sandice é o bêbado Belmiro, que entra em uma bodega vazia para encher uma garrafa de parati.

    A história se passa em Tubiacanga, mas poderia ser ambientada em Paraty –que, segundo alguns, deve seu nome à aguardente citada no conto. Mesmo com a crise, as pousadas estão custando o olho da cara. Tentando defender o seu osso, os proprietários não se dão conta de que podem estar cavando a própria sepultura.

    OVÍDIO POLI JUNIOR, 55, escritor e doutor em literatura brasileira pela USP, é autor de "O Caso do Cavalo Probo" (OFF Flip).

    Edição impressa

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024