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    Eutanásia e valor da vida não estão em jogo no caso do bebê Charlie Gard

    ADAM GAFFNEY
    DO "WASHINGTON POST"

    27/07/2017 06h00

    Family of Charlie Gard/Associated Press
    O bebê Charlie Gard, que possui uma doença terminal, no Hospital Infantil Ormond Street, em Londres
    O bebê Charlie Gard, que possui uma doença terminal, no Hospital Infantil Ormond Street, em Londres

    A saga de Charlie Gard –um menino de 11 meses, portador de uma doença genética rara e que vive em um hospital de Londres com a ajuda de aparelhos– parece chegar ao fim .

    Devido a uma divergência entre seus pais e seus médicos, a criança ficou no centro de um imbróglio internacional que tem sido utilizado para fins políticos. O caso se encaminhou para um desfecho na segunda-feira (24), quando o resultado de uma ressonância magnética levou os pais de Charlie a decidir que era tarde demais para submeter o menino a uma terapia experimental oferecida nos Estados Unidos.

    A situação é sobretudo dolorosa para a família. Contudo, analisando por uma perspectiva americana, a controvérsia em torno do tratamento médico chama a atenção pela politização nos Estados Unidos. Essencialmente acusando o Serviço Nacional de Saúde britânico (NHS) de sentenciar o bebê à morte, políticos e comentaristas de direita aproveitaram a tragédia para criticar o financiamento público da saúde.

    "Estou do lado de Charlie Gard e seus pais", postou numa rede social o presidente da Câmara, o deputado republicano Paul Ryan. "O atendimento médico deve ser decidido por pacientes e médicos. Não há lugar para o governo em questões de vida ou morte."

    Enquanto isso, o presidente Donald Trump se oferecia via Twitter para "ajudar" a criança. Falando no programa de Rush Limbaugh, o vice-presidente Mike Pence opinou: "Esperamos e rezamos para que o pequeno Charlie Gard tenha todas as chances possíveis, mas o povo americano deveria refletir sobre o fato de que todo o discurso da esquerda sobre pagadores únicos vai dar nisso".

    Na semana passada, o Comitê de Alocação de Verbas da Câmara aprovou por unanimidade uma emenda que concederia status de residência nos Estados Unidos a Charlie, para facilitar sua transferência ao país para receber tratamento médico experimental. Era o que os pais do menino esperavam (até segunda-feira) que pudesse ser feito, mas os médicos foram contra. Eles consideraram que havia poucas evidências de que o tratamento ajudaria e que continuar a prolongar sua vida com aparelhos apenas estenderia o sofrimento.

    O discurso conservador contém uma hipocrisia grave, como já foi observado por outros. Afinal, os republicanos estão tentando desmontar a rede de segurança de saúde dos EUA que contribui para que as pessoas não morram simplesmente por serem pobres. Talvez a menção de Ryan a "questões de morte" tenha na realidade sido uma forma de projeção.

    Mesmo assim, Ryan não apresentou a discussão corretamente em seu post. O atendimento médico deve ser decidido por médicos e pacientes, ele disse –mas eram os próprios médicos de Charlie que defendiam um tratamento apenas paliativo. Em última análise, não foram os burocratas governamentais que decidiram que a condição da criança era intratável, como o deputado quis indicar, mas os próprios provedores do atendimento médico. Os tribunais britânicos concordaram com eles.

    POLÊMICA ERRADA

    Charlie tem o infortúnio de ter herdado um par de mutações genéticas que causa a perda de mitocôndrias de seu corpo, as estruturas minúsculas que produzem as moléculas de energia necessárias para que as células vivam. Por causa disso, ele sofre há meses, segundo o hospital, de "lesão cerebral catastrófica e irreversível". Ele não consegue respirar, não consegue se mover e não ouve. Está sendo mantido vivo graças ao milagre dos aparelhos de suporte à vida, que às vezes constituem uma maldição.

    Para sermos claros, não haveria discussão alguma, nem qualquer controvérsia, se os médicos e os pais de Charlie concordassem uns com os outros: os médicos já teriam desligado os aparelhos que mantêm o bebê vivo, e nós não teríamos ouvido falar do caso. Isso acontece todos os dias em UTIs britânicas e americanas. Em outras palavras, este caso nunca disse respeito ao que muitas pessoas imaginaram.

    Nunca foi um caso sobre "eutanásia". Não tratava de "comitês de morte" (que supostamente decidiriam quem é digno de receber atendimento médico). Não era uma discussão sobre o "valor da vida". E, embora tenha chamado a atenção de grupos conservadores dos Estados Unidos liderados por católicos e evangélicos, não dizia respeito à religião.

    A doutrina católica, por exemplo, permite que os aparelhos que mantêm um doente vivo sejam desligados quando o indivíduo é dominado pela doença. "Podemos rejeitar procedimentos que prolongam a vida, quando trazem benefício insuficiente ou são excessivamente onerosos", observam as diretrizes médicas da Conferência de Bispos Católicos dos Estados Unidos.

    Finalmente, o caso de Charlie Gard nunca envolveu a "medicina socializada". Os meios pelos quais um sistema de saúde é financiado não criam nem resolvem essas situações difíceis –as quais, na verdade, são a consequência inevitável da invenção, em meados do século 20, da UTI e dos aparelhos de suporte à vida, como os respiradores mecânicos.

    Aposto que a maioria ou quase todos os médicos intensivistas já se viram em situações nas quais estavam prestando um desserviço a outro ser humano –realizando procedimentos invasivos, mantendo os aparelhos de suporte à vida ligados, prolongando o sofrimento da pessoa– porque foram obrigados pela família do paciente a levar o tratamento adiante. Eu, com certeza, já estive nessa situação.

    FALTA DE CONSENSO

    E aí está o xis da questão de Charlie: não houve consenso entre a família e os médicos. Seus médicos afirmaram com firmeza que, devido à condição da criança, desligar o suporte à vida –e prestar apenas cuidados paliativos, para dar ao menino o maior conforto possível– seria a decisão correta. Essa visão foi confirmada por múltiplas decisões de tribunais.

    Os pais de Charlie queriam que o suporte à vida fosse mantido para que pudessem levá-lo aos Estados Unidos, onde o neurologista Michio Hirano, da Universidade Columbia, propôs um tratamento experimental ("terapia de desvio de nucleosídeos"), que, conforme observa o site especializado STAT, nunca antes foi utilizado em um paciente que apresenta sua mutação genética específica.

    Embora isso não venha mais ao caso, a pergunta continua no ar: os médicos de Charlie erraram ao impedir seu traslado e tratamento em um momento anterior?

    Não há como sabermos, vendo a situação de fora, mas vale observar que o julgamento da Alta Corte em abril alude a Hirano, pelo menos na época, como "o único especialista neste caso que sugeriu qualquer benefício possível da terapia de nucleosídeos", notando que o próprio médico afirmou certa vez: "Posso entender a opinião de que ele [Charlie] está tão gravemente afetado pela encefalopatia [disfunção cerebral] que qualquer tentativa de tratamento seria inútil. Concordo que é muito improvável que ele melhorasse com o tratamento".

    Mais recentemente, Hirano disse em depoimento, com precisão peculiar, que pode haver "uma chance de 11% a 56% de melhora clínica significativa" na força dos músculos de Charlie. Com a alegação de novas evidências, o caso voltou ao tribunal e a polêmica esquentou ainda mais.

    O hospital Great Ormond Street, onde o garoto está, chegou a considerar a opção, mas concluiu que "o tratamento experimental, que não visa a cura, não melhoraria a qualidade de vida de Charlie" e não poderia "reverter o dano cerebral que já ocorreu".

    Nada sugere que o hospital tenha sido motivado por qualquer coisa senão a opinião dos médicos sobre o que seria mais benéfico para Charlie. Nunca foi uma questão sobre cortar custos ou limitá-los; Charlie não é, como disse uma manchete do jornal "Washington Examiner", "um bebê condenado à morte pela medicina socializada". Ele é um bebê tragicamente condenado à morte por uma doença fatal, algo que seria igual em qualquer país.

    É verdade que o contexto de quem toma as decisões críticas sobre desligar o suporte à vida é diferente nos Estados Unidos e no Reino Unido.

    Como escreveu no STAT o especialista em bioética Michael Dauber, nos Estados Unidos, quando os médicos e os "representantes" do paciente discordam quanto à manutenção do paciente ligado aos aparelhos, o desejo dos representantes (em um caso como o de Charlie, em que o paciente é jovem demais e doente demais para poder tomar decisões médicas, são seus pais) ganha precedência.

    No Reino Unido, a questão pode ser resolvida pelas cortes (e um guardião é nomeado para representar crianças). O caso de Charlie girou em torno do equilíbrio correto de poder entre os representantes e os médicos, com relação à tomada das decisões médicas.

    SEM RESPOSTAS FÁCEIS

    Muitos podem ver a abordagem britânica como sendo problemática. O princípio fundamental em torno do qual giram tantas de nossas discussões de bioética é a autonomia, ou seja, a soberania do indivíduo sobre seu próprio corpo, seu direito de estar no centro de todas as decisões médicas.

    Paradoxalmente, porém, o princípio da autonomia muitas vezes tem aplicabilidade limitada no atendimento intensivo, já que, em um momento de doença avassaladora, muitas pessoas ficam incapazes de participar das discussões complexas e necessárias (e no caso de Charlie, ele evidentemente tem idade insuficiente para isso).

    Não existe uma solução ideal, contrariamente ao que Ross Douthat afirmou no jornal "The New York Times" quando disse que a situação envolve "uma questão fácil de resolver, cuja resposta faz do caso uma farsa moral".

    Algumas pessoas podem ficar horrorizadas com a ideia de que médicos tomem decisões que "passam por cima" dos familiares de um paciente, mas isso ocorre com frequência. Por exemplo, se os pais insistem que, por motivos religiosos, seu filho não deve receber um tratamento que salvaria sua vida, os pais podem –e devem– ser ignorados.

    Claro que o caso de Charlie é diferente: não há uma motivação inapropriada por parte de seus pais, que queriam apenas lhe garantir um tratamento (não impedir seu acesso a ele), embora esse tratamento tivesse utilidade questionável.

    Mas olhemos para o caso sob a ótica dos médicos de Charlie, que vêm sendo alvos de uma enxurrada de críticas destrutivas e ameaças de morte. Conservá-lo ligado aos aparelhos por mais tempo, prolongando seu potencial sofrimento, para que ele pudesse atravessar o Atlântico para receber um tratamento experimental que eles acreditam que não teria chance de curá-lo e pouca chance de lhe oferecer qualquer benefício paliativo significativo, significaria lhe fazer mal real.

    Independentemente da resposta que escolhemos, a questão de como são tomadas as decisões sobre a suspensão do suporte à vida é distinta da questão de como estruturamos e financiamos nosso sistema de saúde. As tentativas de vincular o atendimento de saúde universal a uma abordagem específica à tomada de decisões sobre o fim da vida são enganosas e perigosas.

    Os médicos de Charlie vêm querendo há meses desligar os aparelhos que o mantêm vivo porque acreditam que é o melhor que pode ser feito por ele. Aqueles que os criticam hoje nos EUA lutam intensamente para privar milhões de pessoas de atendimento à saúde, para poder abrir caminho para uma redução dos impostos sobre os ricos.

    ADAM GAFFNEY é professor de medicina na Escola Médica de Harvard, pneumologista e intensivista na Cambridge Health Alliance e membro do conselho de diretores do Programa Médicos por uma Saúde Nacional.

    Tradução de CLARA ALLAIN

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