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    Século 21 tem crescimento de guerras civis, e internet está por trás disso

    RICARDO BONALUME NETO

    29/07/2017 10h01

    Mieczyslaw Michalak - 26.jul.17/Reuters
    Manifestação em Breslávia, na Polônia, contra as reformas judiciais
    Manifestação em Breslávia, na Polônia, contra as reformas judiciais

    RESUMO Após declínio na década de 1990, número de guerras civis dispara. Conflitos atuais têm características novas, com objetivos transnacionais e predomínio de ideologia extremista. Estudiosos começam a analisar impacto da internet nas insurgências, tema abordado pelo manual de contraguerrilha das Forças Armadas dos EUA.

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    Especialistas acreditam que a democracia na Polônia ainda corre risco , mas, ao menos por ora, o pior passou. Contrariando seu partido –o nacionalista e conservador Direito e Justiça (PiS)–, o presidente Andrzej Duda vetou duas das três leis que reduziriam os poderes do Judiciário.

    Há pouca dúvida de que as manifestações tiveram papel decisivo nessa decisão surpreendente. Dezenas de milhares de poloneses vinham protestando pelo país, e os atos se intensificaram no final de semana passado. O Parlamento, controlado pelo PiS, aprovou as três leis no dia 21, sexta-feira.

    Também há pouca dúvida de que a internet contribuiu para a formação das multidões. A hashtag #3xNie se multiplicou nas redes sociais, e seu significado ("três vezes não") indicava com clareza o que parcela expressiva da população esperava de seu presidente.

    Nem sempre, porém, as redes sociais estão do lado democrático da história. No artigo "The New New Civil Wars" (as novas novas guerras civis, publicado em maio na "Annual Review of Political Science"), a cientista política Barbara F. Walter, professora da Universidade da Califórnia em San Diego, afirma: "Estamos em uma nova fase da guerra civil, em quereligião e ideologia parecem ter papel predominante, e uma nova tecnologia –a internet– parece influenciar o comportamento de formas inéditas e ainda inexploradas".

    Hoje, de acordo com Walter, as guerras civis são disputadas majoritariamente em países muçulmanos (cerca de 65% delas, contra 40% de 1989 a 2003), a maioria dos grupos rebeldes defende leituras radicais do islamismo (antes, facções se organizavam em torno de etnias ou razões socioeconômicas) e quase todos perseguem objetivos transnacionais, e não locais.

    Embora a tecnologia ofereça oportunidades a todos os atores políticos –cidadãos, grupos rebeldes, milícias radicais, organizações civis, governos, países estrangeiros–, é no contexto de turbulência social que seus efeitos se mostram mais imprevisíveis. Como diz Walter, ainda não há muitos estudos sobre a revolução que as novas ferramentas de comunicação podem provocar nas guerras civis.

    MANUAL

    Isso não significa que o tema tenha sido sumariamente ignorado. Na mais recente versão do manual de contraguerrilha do Exército e do Corpo de Fuzileiros Navais dos EUA (obra conjunta), de 2006, o general do Exército David Petraeus incluiu uma análise sobre as redes sociais e sua importância para os grupos insurgentes.

    A versão anterior de um manual do tipo havia sido publicada 20 anos antes pelo Exército e 25 pelos Marines. Um atraso curioso, pois os fuzileiros navais foram pioneiros no combate das chamadas "small wars" (do espanhol "guerilla", ou pequenas guerras).

    Os marines, até a Segunda Guerra (1939-45), passavam boa parte do tempo lutando contra nativos em vários continentes, com ênfase na América Central e no Caribe.

    Um livro divertido –e politicamente incorreto hoje– é o clássico "Small Wars "" Their Principles and Practice" (guerrilhas, princípios e prática), do coronel britânico Charles Edward Callwell, publicado em 1899, mas com a melhor edição, revista e ampliada, datando de 1906.

    "Pequenas guerras incluem a guerra de 'partisans', que geralmente surge quando soldados treinados são empregados para lidar com a sedição e insurreições em países civilizados; elas incluem campanhas de conquista, quando uma grande potência adiciona o território de tribos bárbaras às suas possessões; e incluem expedições punitivas contra tribos na fronteira de colônias distantes", escreveu o coronel, que depois do livro chegaria a general.

    Petraeus teve bons professores. No prefácio do novo manual ("The U.S. Army and Marine Corps Counterinsurgency Field Manual", o manual de contraguerrilha do Exército e do Corpo de Fuzileiros Navais dos EUA), em parceria com James Amos, general fuzileiro naval, escreveu:

    "Este manual toma um enfoque geral para as operações contra insurgências. O Exército e Corpo de Fuzileiros Navais reconhecem que cada insurgência é contextual e apresenta seu próprio conjunto de desafios. Você não pode lutar contra ex-partidários de Saddam [Hussein] e extremistas islâmicos do mesmo modo que teria lutado contra o Viet Cong, os Moros ou os Tupamaros [guerrilhas do Vietnã, das Filipinas e do Uruguai, respectivamente]."

    O livro tem instruções sensatas e que podem parecer óbvias, mas não para instituições conservadoras, que mudam lentamente, como as Forças Armadas.

    Vide a distinção entre práticas de sucesso e outras malsucedidas. É bom "enfatizar a inteligência", "colocar o foco na população, nas suas necessidades e na segurança" ou "ampliar a área segura". Não é bom "enfatizar [...] a morte e a captura do inimigo, em vez de prestar segurança e lidar com a população".

    Isso traz um eco de Vietnã, de "contagem de corpos" (ruim) ou de ganhar "corações e mentes" (bom)? Exato. Mas a segunda estratégia foi implantada tarde demais. O país e sua população tinham sido devastados por bombardeiros e pela artilharia –as duas armas mais letais e as menos indicadas na contrainsurgência. Bombas e granadas não ganham nem corações nem mentes; elas os explodem.

    INTERNET

    Se essa distinção remetia ao passado, o trecho sobre redes sociais olhava para o futuro, hoje presente. "Para uma insurgência, uma rede social não é apenas uma descrição de quem é quem na organização. É um retrato da população, de como ela é composta e de como seus membros interagem uns com os outros", diz o manual.

    O melhor título de um livro sobre o tema é "Learning to Eat Soup with a Knife: Counterinsurgency Lessons from Malaya, Vietnam, and Iraq" (aprendendo a tomar sopa com faca: lições de contrainsurgência da Malásia, do Vietnã e do Iraque), escrito pelo tenente-coronel americano John Nagl.

    Ele mostra como a capacidade de aprender algo novo e improvisar fez os britânicos terem sucesso na Malásia, enquanto a incapacidade correspondente levou os americanos a fracassar no Vietnã. Na era das redes sociais, o aprendizado pelas Forças Armadas, pela polícia e pelas autoridades que lidam com insurreições e atentados terroristas tem que ser cada vez mais rápido; as organizações do Estado devem aprender depressa como tomar sopa com faca.

    As orientações poderiam soar fora de moda no quadro da década de 1990. O número de guerras civis e guerrilhas tinha diminuído com o término da Guerra Fria e o fim dos seus conflitos "quentes" entre União Soviética e EUA –as guerras por procuração, ou seja, por intermediários, sem envolvimento direto das grandes potências.

    No século 21, porém, a praga voltou a se alastrar. Em países como o antigo Zaire (hoje República Democrática do Congo), a Líbia, o Iêmen, Ruanda, Somália, Sudão, Mali, Sri Lanka e até mesmo na Ucrânia, proliferaram os combates, em geral alimentados pelas verdadeiras "armas de destruição de massa": fuzis da antiga União Soviética (AK-47, AKM e AK-74) e as armas portáteis antitanque RPG ("granadas propulsadas por foguete").

    Ou os mais de 50 mil tanques produzidos no leste europeu outrora comunista. Em muitos países, essas armas são mais disseminadas que a Coca-Cola.

    Mas não são apenas as armas. Essas guerras se tornam mais intensas por causa da internet e da disseminação em massa de celulares e computadores baratos. Nas democracias, redes sociais facilitam a organização de protestos. É só convidar e se conectar aos demais manifestantes.

    Ocorre que a tendência também vale para o agrupamento numa guerra civil e para arregimentação por parte de grupos terroristas .

    Pesquisa publicada na revista científica americana "Science" mostrou algo surpreendente. O Estado Islâmico pode ter uma visão medieval sobre o lugar das mulheres na sociedade, mas a presença do grupo em redes sociais mostra que o papel das mulheres é crucial no recrutamento e na máquina de propaganda. Existem mais homens envolvidos nos ataques terroristas, mas são as mulheres que constituem a cola operacional.

    As redes sociais também facilitam o financiamento dos insurgentes. Não falta gente disposta a apoiar um grupo rebelde do Sudão ou da Libéria –pelo charme da coisa, por convicção ou só para gastar o dinheiro do papai rico.

    E, como a internet é global, o terror, a guerrilha ou a insurgência também podem agir globalmente; o 11 de Setembro de 2001 só iniciou a moda.

    Guerrilha e redes sociais viraram tema de pesquisa acadêmica. Além da já citada Barbara F. Walter, é o que estuda Elisabeth Jean Wood, professora de ciência política de Yale. Ela conduziu levantamentos em El Salvador, Peru, Sri Lanka e Serra Leoa. "Esses processos reconfiguram redes sociais de diversas maneiras, criando redes, dissolvendo algumas e mudando a estrutura de outras", concluiu.

    Até em um país pobre –e o mais novo do planeta–, como o Sudão do Sul, as mídias sociais incitam conflitos e são facilmente acessíveis: três em cada quatro jovens têm acesso a Facebook, Twitter e WhatsApp, e cerca de 60% deles usaram as redes para incitar ódio contra supostos "inimigos" –isto é, gente de outras etnias.

    Mesmo na supostamente mais civilizada Europa, as redes disseminaram ódio. Foi o que se viu na Ucrânia, onde conflitos iniciados em 2014 deixaram dezenas de mortos. A carnificina também apareceu ao vivo e a cores nas telas de celulares e computadores.

    Como sabe todo brasileiro que acompanha a crise política atual, não faltam boatos e mentiras, desinformação e ódio ideológico, especialmente nas redes sociais. O mundo está repleto de "coxinhas" e "mortadelas".

    RICARDO BONALUME NETO, 56, jornalista, é autor de "A Nossa Segunda Guerra - Os Brasileiros em Combate, 1942-1945" (Expressão e Cultura) e de "Brazilian Expeditionary Force in World War II" (Osprey), com Cesar Campiani Maximiano.

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