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    Uma entrevista com Décio de Almeida Prado gravada em fitas cassete

    FERNANDO MARQUES

    30/07/2017 02h02

    São Paulo, 1997

    Arquivo Pessoal
    Páginas da revista "Humanidades", de 1998, em que a entrevista foi publicada
    Páginas da revista "Humanidades", de 1998, em que a entrevista foi publicada

    Quando cheguei às imediações da casa onde morava Décio de Almeida Prado (1917-2000), no Pacaembu, para a entrevista combinada dias antes, o mestre fazia seu passeio habitual em frente às residências vizinhas. Enquanto eu o acompanhava no breve trajeto, começamos informalmente a conversa.

    Falamos sobre o Teatro Brasileiro de Comédia, os atores Jaime Costa (1897-1967) e Cacilda Becker (1921-69), o crítico Miroel Silveira (1914-88), contemporâneos de Décio. Simpático, ele respondia às observações voltando o rosto sorridente para o interlocutor.

    Mostrava-se gentil nesse primeiro contato pessoal (havíamos conversado por telefone noutra ocasião). A professora e ensaísta Maria Silvia Betti, ex-aluna de Décio, nos acompanharia na visita e chegou logo em seguida.

    A ideia era obter um documento espontâneo sobre o teatro brasileiro desde a gênese. Sim, fazia-se teatro nas caravelas, "durante as calmarias", e o primeiro dramaturgo atuante no país, José de Anchieta, surgiu na segunda metade do século 16. O roteiro de questões nos levaria, um pouco aos saltos, até o século 20.

    Décio de Almeida Prado
    Joao Roberto Faria
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    Logo começamos a gravar as falas por meio de aparelho cassete, desses que já não se fabricam. Estávamos em agosto de 1997, quando o crítico e historiador completava 80 anos. Entrevistas e artigos relativos ao aniversário e um livro-homenagem, "Décio de Almeida Prado: Um Homem de Teatro" (Edusp), haviam sido publicados nos dias anteriores.

    Partimos do teatro possivelmente praticado nas velhas naus e da relação plausível, embora remota, dos autos de Anchieta com certas peças de Ariano Suassuna e João Cabral. Sem demora alcançamos o que talvez tenha sido o período predileto do historiador: o romantismo.

    Décio apontou o caráter político, participante, do teatro romântico, inclusive no Brasil: "É um engano pensar que o romantismo era alguma coisa afastada da vida, é uma visão que se tem hoje em dia do romantismo, mas é errada, é o contrário".

    Se as peças de Gonçalves de Magalhães ligavam-se à agenda política do então jovem país independente, as de José de Alencar, décadas mais tarde, privilegiaram temas sociais e psicológicos –o casamento por dinheiro, por exemplo. Mas sem a crueza do naturalismo, lembrou Décio (mencionando Machado de Assis): "Quem foi criado com o leite romântico não atura o beefsteak naturalista".

    Assunto cercado de alguma polêmica era a recepção dada às comédias e revistas tradicionais pela geração de Décio.

    Apresentei ao crítico uma declaração do diretor Flávio Rangel (1934-88), para quem "se condenou erradamente o tipo de espetáculo que faziam a Alda Garrido [1896-1970] e o Jaime Costa", astros do velho teatro, "herdeiros de uma tradição que deveria ter sido mantida e adaptada".

    Décio fez silêncio por instantes. Mas respondeu: "Essa comédia já estava havia 20 anos, 30 anos se repetindo, estava esgotada. E o sujeito então quer uma coisa diferente, nova". Os embates do jovem jornalista com o ator Procópio Ferreira (1898-1979), em quem o crítico maduro reconhecerá "enorme talento cômico", ligam-se à mesma circunstância.

    Décio falava sobre os dotes de Dercy Gonçalves (1907-2008) e Colé (1919-2000) quando o primeiro lado da fita terminou, sem que percebêssemos. Logo trocamos o lado e retomamos a conversa.

    Ao tratar de Lenormand, autor de vanguarda encenado no Brasil pelo grupo de Álvaro Moreyra (1888-1964), recordou, bem-humorado: "O comentário maldoso que eu ouvi na época era que 'Ásia' [o título da peça] realmente devia se ler 'Azia'". A sério, ponderava: "A ideia de que só o teatro comercial morre é errada, a vanguarda morre também".

    Um ponto de inflexão: Zé Celso, com o Oficina, desafiou "certas regras gerais" ao encenar, em 1967, "O Rei da Vela", de Oswald de Andrade (1890-1954). A passagem do moderno ao contemporâneo ocorre nessa fase. Nelson Rodrigues (1912-80) e Gerald Thomas foram outros nomes citados durante os 60 minutos que registramos (a matéria seria publicada na revista "Humanidades", da UnB, em 1998).

    Falávamos sobre o Grupo Universitário de Teatro, que Décio dirigiu de 1943 a 1948, quando o segundo lado da fita chegou ao fim. De novo, ninguém notou.

    FERNANDO MARQUES, 58, é professor do departamento de artes cênicas da UnB e autor de "A Província dos Diamantes: Ensaios sobre Teatro" (Autêntica/Siglaviva).

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