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    Mito de que área da computação é lugar de nerd não ajuda ninguém

    CLAIRE CAIN MILLER
    DO "NEW YORK TIMES"

    17/08/2017 06h00

    The Verge
    Lisa Jackson, vice-presidente para ambiente da Apple
    Lisa Jackson, vice-presidente para ambiente da Apple

    O engenheiro do Google demitido na semana passada devido a um memorando escreveu que a maioria das mulheres é biologicamente menos apta para trabalhar com tecnologia porque volta sua atenção mais a "sentimentos e estética que a ideias" e se interessa mais "por pessoas que por coisas".

    Muitos cientistas disseram que ele se equivocou em relação à biologia. Mas os requisitos para um emprego de programador hoje em dia mostram que o engenheiro também estava enganado em relação a trabalhar com tecnologia.

    Na realidade, habilidades interpessoais como colaboração, comunicação, empatia e inteligência emocional são essenciais para trabalhar com tecnologia. O mito de que a programação é feita por homens solitários que pensam apenas racionalmente e se comunicam apenas com seus computadores prejudica a indústria tecnológica de modo a afetar seus lucros diretamente.

    O estereótipo do programador solitário é capaz de afastar pessoas talentosas do setor –não apenas mulheres, mas qualquer pessoa que não ache isso atraente como descrição de uma profissão.
    Também pode resultar em equipes disfuncionais e produtos de baixa performance. Afinal, a empatia é crucial para a compreensão dos desejos dos consumidores. A ausência dela leva a erros envolvendo produtos.

    Tome-se o caso de assistentes digitais, como Google Home ou Amazon Echo. Seus programadores precisam ser capazes de imaginar uma variedade enorme de situações domésticas, em residências que podem ser de jovens que dividem um apartamento, famílias com cônjuges abusivos, famílias com crianças etc. –algo que ficou claro quando uma criança encomendou pelo Echo uma casa de bonecas de US$ 160 e dois quilos de biscoitos doces.

    "Basicamente, cada passo é uma colaboração", explicou Tracy Chou, que foi engenheira no Pinterest e no Quora e agora trabalha com start-ups. "Quando se está construindo um grande sistema de software, pode-se ter dezenas, centenas ou até milhares de engenheiros trabalhando sobre o mesmo código de base, e tudo ainda precisa se coadunar."
    Mas, ela acrescentou, "nem todo mundo é igual". "Onde há empatia e uma diversidade maior, isso realmente ajuda."

    TÉCNICA COM EMPATIA

    O memorando traçou uma distinção entre empatia pelos sentimentos de outros e a análise e construção de sistemas, dizendo que a codificação tem a ver com o segundo item. Mas, na realidade, ela requer as duas habilidades, como é o caso da maioria dos empregos que vêm crescendo em vagas e sendo mais bem remunerados, segundo pesquisas econômicas.

    Um professor de Harvard, David Deming, constatou que áreas de trabalho que exigem uma combinação de habilidade matemática e habilidades sociais –como ciências da computação, gestão financeira e enfermagem– são as que estão crescendo mais na economia moderna.

    É verdade que a programação pode ser uma atividade solitária em aulas universitárias de ciência da computação ou em cargos de nível principiante em empresas. Mas, passada essa fase, torna-se impossível evitar o trabalho em equipe –colaborando com os departamentos jurídicos ou comerciais mas também com outros engenheiros.

    Há uma piada que se conta na ciência da computação dizendo que uma das tarefas mais difíceis é nomear as coisas em código. É engraçado porque essa é uma tarefa não técnica. Mas envolve algo que pode ser ainda mais difícil que o trabalho técnico: comunicar-se com pessoas e intuir o que elas precisam e entendem.

    A programação de computadores foi vista originalmente como um trabalho para mulheres. Houve programadoras do computador Eniac durante a Segunda Guerra Mundial e na Nasa, conforme é mostrado no filme "Estrelas Além do Tempo".

    A situação começou a mudar quando a programação foi profissionalizada, na década de 1960. Foi quando nasceu o estereótipo do gênio excêntrico que prefere trabalhar com máquinas que com pessoas, segundo Nathan Ensmenger, historiador na Universidade de Indiana que estuda a história cultural da indústria dos softwares.

    Mas essa nunca foi uma descrição precisa do trabalho. Segundo Ensmenger, a programação foi desde o início algo social, realizado em laboratórios de computação de universidades e, mais tarde, em garagens do Vale do Silício. Só que o círculo social não incluía mulheres.

    "Para muitos daqueles rapazes, uma certa cultura de computadores adquire contornos de uma expressão de masculinidade", disse o historiador. "Eles não fazem trabalho físico, não praticam esportes profissionais. Mas podem expressar sua masculinidade por meio da competição intensa, fazendo brincadeiras uns com os outros, demonstrando sua habilidade técnica, de maneiras que não se traduzem bem em ambientes que incluem homens e mulheres."

    A mitologia do programador antissocial se retroalimenta, disse Yonatan Zunger, líder sênior de engenharia no Google até este mês, quando ele entrou para a start-up Humu.
    Desde a infância, ele comentou, crianças que se sentem menos à vontade com interações sociais –especialmente meninos, que têm probabilidade maior de ser socializados dessa maneira– são conduzidas na direção da ciência e engenharia.

    Os professores geralmente enfocam os aspectos técnicos, e não os interpessoais. O resultado é um campo cheio de pessoas que não gostam de interações sociais e foram recompensadas por isso.

    A cultura do Vale do Silício o incentiva. O Google descreveu seus engenheiros que não são gerentes como "colaboradores individuais". As habilidades técnicas são mais valorizadas que as habilidades soft ou comerciais.

    "Qualquer pessoa que lida com um ser humano é vista como menos inteligente", comentou Ellen Ullman, programadora de softwares e autora de um livro recém-lançado, "Life in Code" (vida em código; Farrar, Straus and Giroux). "Logicamente, o esperado seria o contrário, mas, quanto mais seu trabalho envolve apenas conversar com a máquina, mais é valioso."

    Um exemplo é a distinção traçada entre engenheiros "frontais", que constroem as partes de um produto com as quais os usuários interagem, e os engenheiros "de fundos", que trabalham com os sistemas dos bastidores, como armazenagem de dados ou traçados em escala.

    Existe o preconceito de que a engenharia "frontal", que geralmente paga menos e emprega mais mulheres, é menos difícil tecnicamente. As pessoas que já fizeram as duas coisas dizem que as habilidades necessárias são diferentes, mas que as duas coisas são igualmente difíceis e valiosas.

    PONTO FRACO

    Segundo Zunger, surgem problemas quando engenheiros chegam a um ponto em suas carreiras em que precisam mostrar que possuem habilidades sociais, como entender pontos de vista diversos, construir consensos e interpretar as deixas sutis das pessoas.

    "De repente dizem a eles que essas habilidades, que são seu ponto fraco, podem ser realmente importantes", ele explicou. "O próprio valor deles é questionado."

    Na indústria da tecnologia, a falta de habilidades interpessoais virou um ponto fraco e uma desvantagem.

    Edmond Lau dirige uma firma de coaching de engenheiros chamada The Effective Engineer, com muitos clientes como Google e Facebook. O trabalho dele às vezes soa como sessões de terapia.
    Ele citou um exemplo: um engenheiro sênior identifica um bug e repara o código, tentando ser prestativo. Mas a pessoa que escreveu o código acha que o engenheiro invadiu seu território ou então estava enviando um recado passivo-agressivo.

    Na Quip, firma de produtividade no local de trabalho em que Lau é líder de engenharia, ele comanda círculos em que os engenheiros conversam sobre como trabalhar juntos ou pedir ajuda. "Você pode ter ideias na cabeça, mas, a não ser que as comunique, ninguém vai entender", ele disse.

    Habilidades técnicas sem empatia já renderam produtos que fracassaram no mercado, porque um passo vital para criar um produto é ser capaz de imaginar como outras pessoas podem se sentir ou pensar.
    "O índice de fracassos no desenvolvimento de softwares é altíssimo", disse Ensmenger. "Mas quase nunca é porque o código não tenha funcionado. É porque ele não resolveu o problema que existe de fato ou porque imagina um usuário totalmente diferente dos usuários reais."

    No caso do Google Glass, por exemplo, criar um computador minúsculo que podia ser usado como óculos foi uma façanha técnica. Mas o produto não era algo que a maioria das pessoas quisesse ou precisasse.
    Quando a Apple lançou seu aplicativo Health, ele monitorava o sono dos usuários, sua atividade física, ingestão de alimentos, medicamentos e frequência cardíaca, mas não o ciclo menstrual. No entanto, os trackers menstruais são uma das ferramentas de saúde mais utilizadas por mulheres (hoje o Health inclui essa função).

    A Google Plus, a rede social do Google, inicialmente exigia que os usuários divulgassem seu nome, foto e gênero. Havia um argumento técnico que justificava a inclusão do gênero –para construir frases como "ela compartilhou uma foto com você"–, mas isso também expunha as mulheres a assédio online.

    "A equipe que tomou essa decisão era formada exclusivamente por homens", contou Zunger, na época o arquiteto chefe de redes sociais no Google. "Foi um caso muito claro de entender algo errado, por um motivo simples: não havia diversidade suficiente entre as pessoas presentes na sala para que pudessem se dar conta de um problema óbvio."

    Menos visíveis, mas altamente influentes, são os julgamentos que entram em ação na construção de algoritmos que determinam as notícias que você lê, os empréstimos que obtém ou as pessoas com quem você sai.
    O Facebook é criticado, por exemplo, por mostrar às pessoas apenas reportagens noticiosas que se alinham com a posição política delas. Pesquisas constataram que anúncios de fontes para obter o histórico criminal de pessoas têm probabilidade maior de aparecer em buscas por fraternidades universitárias negras.

    A empatia também ajuda a definir os produtos que chegam a ser criados, para começo de conversa –por quê, por exemplo, o Vale do Silício passou mais tempo criando aplicativos para a entrega a domicílio de comida cara que para combater a fome.

    DIVERSIDADE NAS EQUIPES

    Algumas pessoas na indústria dizem que os estudantes de ciência da computação se beneficiariam se fizessem mais cursos de natureza não tecnológica.

    "Precisamos que os futuros adultos sejam capazes de discernir aquilo sobre o que as máquinas podem decidir, [a identificar] se um código de base é justo e igualitário", disse Amy Webb, fundadora do Future Today Institute, empresa de previsões tecnológicas. "Não existe nenhum brinquedo tecnológico bacana que nos ensine que existem religiões diferentes no mundo e que ser tolerante é uma coisa boa."

    Quando engenheiros constroem produtos com empatia, o resultado pode parecer mágico: a tecnologia parece prever o que as pessoas querem antes mesmo de elas saberem que o querem. Isso era parte da genialidade de Steve Jobs. Basta olhar para o número de pessoas sempre ligadas a seus telefones ou para uma criança que usa um iPhone pela primeira vez.

    Uma maneira de desenvolver a empatia em empresas é contratar equipes com diversidade, porque as pessoas levam suas visões e experiências de vida distintas para o trabalho. Mas, quanto mais se difundem os estereótipos como o que está contido no memorando do Google, mais difícil isso se torna. Quando as pessoas ouvem estereótipos negativos sobre as habilidades de um grupo ao qual pertencem, diminuem as chances de elas procurarem dotar-se dessas habilidades, segundo várias pesquisas.

    Em um estudo comandado por Shelley Correll, socióloga da Universidade Stanford, quando foi dito aos participantes que os homens tinham capacidade maior de completar uma tarefa, as mulheres se disseram menos competentes na tarefa e que era menos provável que ingressassem em um campo que exigiria essa habilidade. Quando lhes foi dito que homens e mulheres eram igualmente aptos, as diferenças desapareceram.

    "Essa identidade nerd é realmente prejudicial às mulheres", falou Ensmenger. "Mas também é prejudicial às minorias e a muitos homens que não querem se identificar com ela."

    É por isso que as consequências do memorando do Google podem transcender em muito o caso específico, influenciando os jovens que optam por trabalhar com tecnologia e os produtos que eles criam e que afetam todos os aspectos de nossas vidas.

    Tradução de CLARA ALLAIN

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