• Ilustríssima

    Monday, 29-Apr-2024 23:33:58 -03

    Publicidade criou falsa ideia de que a velhice é a pior parte da vida

    GIULIANO CEDRONI

    18/08/2017 06h00

    Ricardo Borges/Folhapress
    Ney Matogrosso canta no 28º Prêmio da Música Brasileira, onde foi homenageado
    Ney Matogrosso canta no 28º Prêmio da Música Brasileira, onde foi homenageado

    "Eu não sei."

    Depois de meses pesquisando a extensa e impressionante obra da fotógrafa anglo-brasileira Maureen Bisilliat, de mais de sete horas de conversas, de passar alguns dias com a lente da Alexa colada nessa senhora de 86 anos, essa foi sua frase mais corajosa.

    "Eu não sei", repetia ela para a câmera de tempo em tempo, não sem antes refletir ponderada e delicadamente a cada pergunta. Maureen, que se embrenhou nos fundões do Brasil ainda nos anos 1960 para revelar o Xingu aos brasileiros em fotografias clássicas, referia-se não às questões de enquadramento, luz e ótica, mas às grandes questões da vida, como amor, família, arrependimentos.

    O envelhecimento da população é um dos maiores triunfos da humanidade e também um de seus grandes desafios. A proporção de pessoas com 60 anos ou mais está crescendo mais rapidamente que a de qualquer outra faixa etária.

    Até 2025, espera-se um crescimento de mais de 200% (algo em torno de 600 milhões) no número de pessoas consideradas velhas no mundo. Por mais que o mercado e a propaganda tentem esticar a juventude à base de slogans como "a melhor idade", a velhice é um fato -e, pasmem, não é uma palavra pejorativa.

    "De época remota", "que tem idade avançada", "que tem muito tempo de existência". Eis algumas definições oferecidas pelo dicionário quando buscamos a palavra "velho", que vem do latim vetulus. Em nenhuma existe a sugestão de que a velhice esteja inexoravelmente ligada a algo negativo.

    Ainda assim, a publicidade conseguiu convencer bilhões de pessoas de que ser considerado velho é das piores coisas que podem acontecer a um ser humano.

    Por princípio ninguém quer contratar um velho, namorar um velho, abrir um negócio com alguém considerado velho. No entanto, quando nos deparamos com situações-limite na vida, é na velhice que, ironicamente, encontramos confiança. Basta precisar escolher um piloto para um voo ousado ou um cirurgião para uma operação de risco.

    IMAGEM TABU

    Foi por causa de dados e incongruências como esses que iniciamos uma análise midiática sobre o tema antes de rodar a série "Outros Tempos_VELHOS", em cartaz no canal MAX (terças, às 23h).

    A velhice é constantemente mencionada na imprensa, em novelas e em palestras, mas poucas vezes mostrada. É mais palatável levar um gerontólogo a um programa matutino para falar sobre Alzheimer do que ir à casa de alguém que está perdendo os sentidos para registrar o processo.

    Também ficou claro na pesquisa que a imensa maioria dos programas e reportagens sobre a velhice no Brasil prefere olhar o tema sob uma perspectiva positiva. Senhores atletas, senhoras tatuadas e outros idosos animadíssimos inundam telas e páginas da mídia como se fossem um retrato fiel dessa classe.

    Basta olhar ao redor para encontrar exemplos nada glamorosos da velhice: septuagenários deprimidos, senhorinhas sem recursos para arcar com os cuidados necessários, filhos que não sabem como lidar com essa etapa da vida dos pais...

    Logo no início do processo de criação da série documental, impunha-se o desafio: mostrar a velhice de forma crua, mas digna, sem recorrer a especialistas ou estudiosos. Só ligaríamos as câmeras diante dos velhos e velhas acima dos 60 anos.

    A SOLIDÃO DE NEY

    Ney Matogrosso foi das figuras mais impressionantes a despontar no processo de definição dos 16 protagonistas. Aos 76 anos, alcançou equilíbrio raro entre ética, estética e postura. Postura em relação à arte, ao sexo, à política, ao dinheiro, à mídia, postura de corpo.

    Foi no conceito do "ser independente" que o jovem filho de militar se encontrou, deixando para trás uma vida castradora para se transformar em grande artista. Pode-se não gostar da música de Ney, mas só o mais preconceituoso não respeitará a trajetória do intérprete que é, segundo ele próprio, "homem, mulher, ave, bicho... estrela". Sobretudo, independente.

    Essa independência, entretanto, deixou-lhe uma herança palpável na terceira idade, a solidão. Depois de ter vivido três grandes amores -um deles com Cazuza-, ele hoje vive só. Entre os treinos de academia, ensaios com músicos ou momentos dedicados a desenhar retratos de estranhos, atravessa a velhice sem companhia afetiva. "Agora vou ter que encarar mais essa", diz, resiliente.

    Em tempos de discussão febril sobre a reforma da Previdência, vale olharmos com mais afinco para essa fase da vida. Entre 1980 e 2000, a população brasileira com 60 anos ou mais cresceu 7,3 milhões, totalizando ao fim do século mais de 14,5 milhões de indivíduos. O aumento da expectativa média de vida também foi sensível, oscilando de 45,5 anos em 1940 para 75,5 anos em 2015.

    Estudos contemporâneos já dão conta do nascimento de uma "quarta idade", que começaria após os 80 anos. De fato, o octogenário é ser humano bem distinto de seu par com "apenas" 60 primaveras...

    MAGNATA DO ADUBO

    É o caso de seu Fernando Cardoso, com seus impressionantes 102 anos e aparência de 70. Ainda na juventude, nos anos 1940, ele atentou para o imperativo de produzir alimentos em escala. Fundou então a empresa de adubos Manah, aquela do slogan "Com Manah, adubando dá".

    Karime Xavier/Folhapress
    Fernando Penteado Cardoso, engenheiro agrônomo, que tem 102 anos
    Fernando Penteado Cardoso, engenheiro agrônomo, que tem 102 anos

    Logo aquilo viraria um pequeno império. No ínterim, seu Fernando formou uma família enorme. No ano 2000, descansou satisfeito quando a empresa foi vendida por uma soma vultosa. Missão cumprida, faz crer o modelo capitalista ocidental. Mas a velhice é mais complexa do que imaginamos...

    Depois de perder a mulher, seu Fernando dispunha de algumas opções de moradia. Os filhos disputavam-no, alegando que a casa dele era grande demais para um homem só. Sem alarde, o industrial escolheu viver num lar de idosos.

    Decidiu passar a fase final da vida ao lado de seus pares. Algo o deixa mais tranquilo ali, no casarão adaptado para cadeiras de roda e banhos assistidos, do que solitário em seu palacete.

    Na conversa que tivemos para a série, a visão de seu Fernando sobre o ambiente ilustra a forma como o tempo brinca com anciãos. Diante da constatação de que o manejo dos recursos naturais pelo homem era visto com muito menos rigor na juventude dele do que hoje, palpita: "Esses ambientalistas fizeram uma confusão danada".

    HERMETO, O REBELDE

    Hermeto Pascoal, 81, tem uma visão mais moderna da natureza. Na infância, passada no sertão de Alagoas, conheceu os deleites da mata de forma lúdica e nada monetizada. Caótico no pensamento, na maneira de viver e na sua expressão artística -a música-, Hermeto está mais conectado com o pensamento verde contemporâneo que seu Fernando, com quem divide um episódio do programa.

    Enquanto o industrial não esconde o cansaço diante de tantas transformações, Hermeto é revolucionário -e isso até na forma como administra seus bens, as milhares de composições que criou ao longo da vida. Em determinado momento, ele abriu mão dos direitos autorais de sua obra, aplicando um magnífico golpe "copyleft" (livre direito de cópia) no coração do capitalismo.

    O gesto de rebeldia, descobrimos ao nos aproximar de seu círculo íntimo, não levou em conta justamente a família, beneficiária da eventual herança.
    Dos 16 personagens retratados nos oito documentários (um famoso e um anônimo por episódio), nenhum causou tanto assombro na equipe quanto José Virgulino, o Zezinho, 76, que passou a vida na ilha do Araújo, em Paraty (RJ).

    Católico fervoroso, pescou no mar o seu sustento e casou-se com Dorvalina. Logo veio a primeira gravidez, interrompida por complicações. Na segunda, novamente a criança não "vingou". Ao longo da vida, dona Dorvalina engravidou dez vezes; em todas as ocasiões, a criança ou nascia sem vida, ou falecia dias depois do parto.

    Quando o convidamos a participar da série, Zezinho tinha perdido a companheira havia apenas três meses. Sua visão de mundo, a maneira de lidar com a dor e a generosidade com a vila de pescadores são mais valiosos no estudo da velhice que volumes inteiros da sociologia moderna. Naturalmente e sem estudos formais, Zezinho foi virando o líder espiritual de sua comunidade, onde ganhou o apelido carinhoso de Pai Zezinho. 
Seu par no episódio é a mais pop das líderes espirituais no país, Monja Coen, 70, que alcançou status similar ao de Zezinho por caminhos distintos.

    Alberto Rocha/Folhapress
    Monja Coen Roshi no templo de sua casa
    Monja Coen Roshi no templo de sua casa

    Depois de uma incursão pelo jornalismo, a jovem foi parar na Europa, onde acabou presa por tráfico de drogas.

    Na solidão da cela, a meditação foi sua grande companheira, e daí para a vida monástica foi um caminho natural, afirma ela. Mas a sobreposição das duas trajetórias, minuto a minuto, cria uma terceira narrativa, a de que não controlamos a vida como desejamos.

    Coen e Zezinho não poderiam ser mais diferentes, mas algo em suas vidas os aproximou. Não na forma, não no discurso, mas na necessidade de acreditar que é preciso haver algo mais nessa jornada que apenas peixe e jornal.

    BRASIL IDOSO

    Até 2025, segundo a OMS, o Brasil será o sexto país em número de idosos. Ainda há muita desinformação sobre a saúde do idoso e as particularidades e desafios do envelhecimento populacional para a saúde pública. Mas é fato que os brasileiros vão viver mais e que a população vai envelhecer.

    Um caso de envelhecimento excêntrico é o da editora de moda Regina Guerreiro, 77. Aquela que foi por décadas a mulher mais temida e respeitada da indústria da moda no Brasil dedicou sua vida ao trabalho. Casou-se várias vezes, mas não teve filhos, e nunca escondeu que sua grande paixão estava na vida profissional. Passa os fins de semana sozinha, lembrando seu passado glamoroso enquanto dirige a criação de uma versão fantasiosa de seu próprio funeral.

    Paulo Troya + Renan Teles - 20.ago.2014/Folhapress
    A jornalista de moda Regina Guerreiro
    A jornalista de moda Regina Guerreiro

    Vilma Nishi, 67, é a personagem mais nova. Depois de uma temporada trabalhando como enfermeira em hospitais, começou a estudar os benefícios do parto normal e transformou-se numa das parteiras mais procuradas do Brasil.

    Divorciada e com duas filhas, hoje toma conta de sua mãe, uma senhora acamada que mais parece personagem do cineasta japonês Akira Kurosawa. Essa casa, com quatro mulheres de diferentes idades, é dos lugares mais simples e intrigantes de toda a série. Ali não há grandes obras de arte nas paredes (como na casa de Emanoel Araujo), ou uma biblioteca singular (como no escritório de Hélio Bicudo). Mas algo insiste em chamar a atenção. Logo se percebe que é o amor, matéria-prima de que Vilma se serve fartamente na construção de sua velhice.

    É respectivamente com Regina e Vilma, com a imagem de uma morte encenada e a de um parto bem real, que o retrato da velhice no Brasil se abre e se fecha.

    Muitos me perguntam o principal aprendizado que a longa pesquisa sobre a terceira idade legou. Minha resposta é a de que a velhice é a soma de todas as nossas decisões -certamente a das grandes, como a relação com família e amigos, a escolha da carreira, o fato de ter ou não filhos, a posição política.

    Ao mesmo tempo, muito tem a ver com as decisões médias, como o abandono de uma faculdade, a troca repentina de emprego, o investimento numa grande viagem.

    Mas a velhice também é, curiosamente, a soma das pequenas decisões do cotidiano, como o "sim" para o almoço repentino com um amigo distante e o "não" para um trabalho desrespeitoso, porém lucrativo. Ou o simples ato de baixar o celular numa praça para observar as pessoas à volta.

    Como me ensinou um velho cearense, tudo o que pensamos e falamos não chega perto, em importância, da maneira como agimos. Contudo, basta uma reflexão mais calma sobre o que aprendi com a pesquisa acerca da velhice para me confrontar mais uma vez com a frase de Maureen: "Eu não sei".

    *GIULIANO CEDRONI,* 44, fotojornalista, repórter e roteirista, escreveu e codirigiu, ao lado de Eduardo Rajabally e Susanna Lira, a série "Outros Tempos_VELHOS" (Prodigo Films), em exibição no canal MAX.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024