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    Análise/enquete chico buarque

    Canções mais votadas mostram excelência técnica do compositor

    LUIZ TATIT

    27/08/2017 02h00

    Chico Buarque lança um álbum depois de seis anos, e a Folha aproveita o ensejo para promover uma enquete sobre as canções mais relevantes ao longo de sua carreira.

    Em terceiro lugar, empataram "Roda Viva" e "As Vitrines". Em segundo, apareceu "O Que Será". A vencedora foi "Construção". O compositor nunca deixou de fazer discos preciosos, com criações altamente refinadas, mas, quando se trata de indicar suas principais obras, é comum que a crítica e o público recorram ao vasto repertório lançado de 1967 a 1981.

    Chico Buarque interpreta "Construção"

    É claro que a célebre luta de Chico contra a censura dos anos de chumbo –menos por ideologia, mais para se livrar de um órgão que não o deixava trabalhar, diga-se de passagem– colaborou para a valorização das composições que conseguiam driblar a vigilância diuturna imposta pelos opressores.

    Mas, sem dúvida, o protagonismo da canção no cenário cultural brasileiro no início da carreira do artista foi ainda mais determinante para explicar a permanência dessas obras na memória do povo. Não podemos esquecer que todas as correntes musicais atuantes no final dos anos 1960 e início dos 1970 eram contratadas e veiculadas para todo o Brasil pelo Grupo Record e que seus programas musicais conquistavam a mesma audiência popular mais tarde transferida às telenovelas.

    O prestígio adquirido por Chico nessa época se cristalizou em composições modelares que fazem parte da página feliz da nossa história. Sua maior contribuição foi aumentar a profundidade das canções, não só na concepção das letras, mas sobretudo na inflexão destas pela melodia.

    "Roda Viva" (1967) já traz preocupações existenciais. Por mais que o sujeito-cantor se programe para levar a vida a seu modo, alguma adversidade interrompe o plano e provoca um desvio de rota inconciliável com seu desejo inicial.

    Esse agente antagonista é denominado "roda viva" e se desdobra em formações análogas (roda mundo, roda-gigante, rodamoinho, roda pião) que reforçam o caráter circular de um destino constantemente descontinuado. O conhecido refrão, em vez de enaltecer alguém ou um valor almejado como na maioria das canções, exalta com insistência a força imbatível do opositor (roda viva).

    Chico Buarque canta "Roda Viva" no Festival da MPB, em 1967

    "As Vitrines" (1981) encena uma relação enigmática –cheia de clarões, reflexos e transparências– entre o eu-cantor e sua amada. As inconstâncias da personagem feminina se expressam nas entoações avulsas que reproduzem frases coloquiais como "Dá tua mão", "Olha pra mim", "Não vai lá não".

    A elevação gradativa da linha melódica no decorrer da canção, até atingir o clímax em "na galeria", traduz o esforço do cantor em manter algum controle da situação e vigiar os passos imprevisíveis da amada, mesmo que as oscilações por vezes abruptas do grave ao agudo denunciem seu estado emocional já desnorteado. Nada impede, porém, que o dono da voz possa ao menos catar a poesia que sobra da cena.

    Talvez seja esta a mais complexa das canções escolhidas.

    Chico Buarque interpreta "As Vitrines" em show no Beira-Rio, em Porto Alegre, em 1982

    PERGUNTA SEM FIM

    "O Que Será" (1976) é a mais extensa pergunta da canção brasileira e, talvez, da universal. Maior ainda por ter duas versões (além da vinheta "Abertura"), com letras diferentes, uma perguntando sobre o que há no fundo das coisas ("À Flor da Terra"), e outra, no fundo dos seres ("À Flor da Pele").

    Chico Buarque e Milton Nascimento cantam "O Que Será (À Flor da Pele)"

    Não é por outro motivo que a primeira diz "O que será que será", e a segunda, "O que será que me dá". A estrutura melódica se mantém em ambas, caminhando da região grave à aguda e depois retornando ao ponto de partida. O que cresce durante esse percurso, mais que o número de perguntas, é o sentimento de falta de respostas que se prolonga até o verso derradeiro. Claro que elas estão subentendidas, mas sua ocultação comove.

    Por fim, "Construção" (1971) apresenta uma arquitetura própria. As frases rítmicas são estabilizadas e reproduzidas para que recebam dezenas de versos dodecassílabos, cujos finais, formados com proparoxítonas, constituem módulos permutáveis entre si.

    Essas frases iniciam-se com notas repetitivas que dariam à canção um tom quase fastidioso, não fosse sua engenhosa evolução melódica e harmônica no campo das alturas. Tudo isso ajuda a caracterizar o cotidiano monótono e fatalista do trabalhador da construção civil que só interrompe a própria rotina ao sofrer acidente mortal, o que em nada altera a rotina da cidade.

    As obras mais lembradas na enquete exemplificam bem a excelência da criação de um dos nossos maiores compositores de todos os tempos. Se escolhêssemos outras quatro, mais quatro e ainda mais quatro não chegaríamos nem sequer a uma amostra suficiente para expressar o papel decisivo de Chico Buarque em nossa inigualável cultura cancional.

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    LUIZ TATIT, 65, é músico e professor titular aposentado de linguística da USP.

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