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    Terroristas da facção Estado Islâmico criam poemas e interpretam sonhos

    DIOGO BERCITO

    25/08/2017 06h00

    Reprodução-2.out.2013/Youtube
    O porta-voz do Estado Islâmico, Abu Mohammad al-Adnani al-Shami, grava vídeo ao lado da bandeira da facção terrorista em outubro de 2013, em local não divulgado; ele morreria em 2016, em Aleppo (Síria)

    RESUMO Livro recém-publicado revela lado artístico de membros de facções terroristas muçulmanas. Responsável pela obra argumenta que conhecer interesses culturais de extremistas pode ajudar não só a compreender o processo de recrutamento de jovens mas também a elaborar estratégias de combate ao fundamentalismo.

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    "Os cavaleiros da glória descansaram no abraço da morte/ Agarraram as torres com mãos de fúria e as rasgaram como uma torrente." Os versos descrevem os atentados do 11 de Setembro de 2001, em que o World Trade Center foi esfacelado e 2.977 pessoas morreram nos EUA. O impensado poeta é ninguém menos que Osama bin Laden, líder da rede Al Qaeda, responsável por aquele ataque.

    Que militantes de organizações terroristas muçulmanas escrevam versos é algo que a princípio foge da rima. Trata-se, afinal, de fanáticos que decapitam pessoas ajoelhadas na areia quente ou aceleram automóveis contra pedestres em vias públicas, como fez um deles dias atrás, em Barcelona.

    No entanto, há bastante atividade artística entre extremistas, argumentam os autores do livro recém-publicado "Jihadi Culture: The Art and Social Practices of Militant Islamists" [Cambridge University Press, 284 págs., R$ 104,90, R$ 31,28 em e-book] (cultura jihadista: as artes e as práticas sociais de militantes islamitas).

    Para os autores, as preocupações de pesquisadores e governos ainda se limitam à doutrina das milícias radicais, mas seria importante mapear seus versos e cânticos, sua tradição de interpretação de sonhos e seu costume de chorar em público.

    A obra, em alguma medida provocadora, reúne artigos acadêmicos editados pelo norueguês Thomas Hegghammer, uma das referências para os estudos sobre jihadismo. Os oito capítulos mapeiam a poesia composta por extremistas, bem como seus hinos, sonhos, filmes e rituais.

    "Há esse contraste entre a reputação brutal dos terroristas e as atividades leves às quais se dedicam", diz Hegghammer em entrevista à Folha. "É muito contraintuitivo e diferente das culturas militares que conhecemos. Nos nossos Exércitos, existem normas sobre comportamentos apropriados a um soldado, e a poesia não está entre eles."

    Se combatentes europeus escreveram seus versos nas trincheiras durante a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, isso era feito discretamente. "Nesses grupos radicais, a poesia é explicitamente encorajada. É uma atividade bastante central para sua cultura", afirma.

    Ainda são escassos os estudos sobre a produção cultural de membros da rede Al Qaeda e do Estado Islâmico, e suas coletâneas seguem inéditas. Em parte, diz Hegghammer, porque as atividades artísticas dos fundamentalistas sempre foram vistas como ideologia e doutrina –ideias, não emoção. "Em determinado momento, passei a pensar nisso e percebi que são algo diferente, mais estético."

    DENTRO DO PADRÃO

    Um tipo diferente de estética, mesmo em comparação com grupos radicais não islâmicos. A cultura skinhead, por exemplo, representava uma ruptura completa em relação ao padrão convencional, criando algo completamente novo. No caso de organizações como a Al Qaeda, não há essa quebra. "A cultura jihadista não é tão distante do mainstream muçulmano", diz.

    Em termos formais, os poemas do Estado Islâmico seguem o cânone muçulmano, assim como seus cânticos. Mesmo o curioso comportamento de terroristas que choram copiosamente ao evocar Deus está relacionado a outras vertentes dessa religião –nesse caso, à tradição mística sufista, bastante influente em países como o Egito. As lágrimas indicam temor do divino.

    Essa sensação de continuidade pode explicar seu apelo. Em termos culturais, pelo menos, o jovem muçulmano que decide aderir ao radicalismo do Estado Islâmico não precisa dar um salto tão grande. Ele pode manter suas referências culturais, com uma torção violenta.

    "É uma cultura reconhecível, com um aspecto de se sentir em casa. É construída com precedentes históricos, tentando se justificar como algo que já foi feito antes. Há uma profundidade histórica que outras subculturas extremistas não têm, o que explica sua atração e resiliência", afirma Hegghammer.

    Essa estética é bastante conservadora, como também o é a ideia de política e de religião em grupos como o Estado Islâmico. Os poemas, por exemplo, são escritos em monorrima, com todos os versos rimando entre si –emulando fórmulas dos primórdios do islã, assim como fundamentalistas dizem emular as práticas do profeta Maomé, seguidas no século 7º d.C.

    A militante Ahlam al-Nasr, conhecida como A Poetisa do Estado Islâmico, utiliza essa estrutura de versos. Seu primeiro livro de poesias, "A Chama da Verdade", circula entre terroristas como um best-seller. Hinos de guerra foram compostos em cima de seus textos. "Pergunte a Mossul, cidade do islã, sobre os leões –como seu feroz esforço os levou à libertação", ela escreveu sobre a tomada da segunda maior cidade do Iraque em 2014.

    SIMBOLISMO

    A figura do rei da selva é recorrente na produção cultural de organizações terroristas. O animal aparece não somente nos poemas de Nasr mas também em uma gama de imagens replicadas por milícias. São cartazes cuidadosamente planejados, em que uma cor pode ter um significado específico –o amarelo, por exemplo, remete à facção xiita libanesa Hizbullah, enquanto o preto serve a diversos outros grupos, como o próprio Estado Islâmico.

    Também é recorrente a prática de interpretar sonhos. Não no sentido da psicanálise, de que podem revelar informações sobre o passado. Entre terroristas, a crença é a de que o que lhes vêm à mente à noite, durante o sono, são valiosas indicações de seu futuro.

    É comum, portanto, que militantes revelem uns aos outros, logo pela manhã, aquilo com que sonharam. Alguns deles –caso de Osama bin Laden– eram louvados pelos dons de interpretação, que lhes garantiam algum tipo de autoridade. Os dois autores do capítulo sobre os sonhos dos terroristas insistem neste ponto: o jihadismo contemporâneo não pode ser completamente entendido sem que se leve em conta o papel desempenhado por essas revelações.

    Em entrevista ao jornalista britânico Robert Fisk, Bin Laden afirmou: "[Um dos membros da Al Qaeda sonhou] que você veio a nós em um cavalo, e você tinha uma barba e era uma pessoa espiritual. Vestia um manto como a gente. Isso significa que você é um verdadeiro muçulmano".

    O líder da Al Qaeda também disse, certa vez, que um de seus seguidores sonhara que a organização terrorista jogava futebol contra um time americano. Os militantes se vestiam como pilotos de avião. Meses depois, a facção lançou aeronaves contra as Torres Gêmeas.

    O estudo de Hegghammer, no entanto, não é sobre rimas ou escansão. Se terroristas regidos por uma espécie de pragmatismo militar compõem versos em vez de treinar para o combate, isso indica que a cultura tem valor para eles.

    "Jihadi Culture" não apresenta uma razão definitiva para esse fenômeno, mas desconfia: produtos culturais são essenciais no processo de recrutamento e explicam por que militantes não abandonam seus pares, a despeito da vida dura.

    LIÇÃO

    "As emoções podem importar mais para o recrutamento do que pensávamos", diz. "A radicalização não ocorre apenas pela força do argumento. Existe uma estética de sedução. São coisas diferentes, uma envolve o intelecto, e a outra, por assim dizer, o coração."

    Isso significa que os esforços de combate ao terrorismo, nos quais governos investem milhões, talvez não devam se concentrar só na doutrina. Agências de inteligência se dedicam a estudar documentos de ideologia, mas, para Hegghammer, falta revidar no campo adequado.

    "Esse material que circula na internet, como poemas e hinos, pode ser perigoso", diz. "Talvez a poesia seja mais vaga, mas é mais sedutora, em termos estéticos."

    É mais duradoura também. A cultura jihadista sobrevive às organizações em que foi produzida, a seus militantes e mesmo a seu contexto histórico.

    "É uma cultura romântica, a ponto de ser clichê. É kitsch. Eles tentam ser tradicionais, reencenando o que acreditam ter sido o modo de vida dos primeiros muçulmanos. Com isso, sua produção cultural não desaparecerá tão cedo, porque é mais difícil descartar algo que tenha esse precedente histórico", afirma Hegghammer.

    Assim, caso o Estado Islâmico esteja de fato condenado, como apontam suas recentes derrotas militares, isso não significa que seus poemas e cânticos de guerra vão desaparecer, como um best-seller de verão descartado na praia.

    "Vão sobreviver na memória e na internet. Haverá uma tradição oral para a música e a poesia do Estado Islâmico, para suas histórias e mitos", diz. "Mesmo hoje ainda encontramos poemas escritos por terroristas nos anos 1960, quando não havia a internet para preservá-los."

    "A cultura é um tipo de cola, que une os movimentos. As organizações vêm e vão, indivíduos se alistam e morrem, mas a cultura continua, sobrevive. Há uma continuidade impressionante."

    A morte de Bin Laden em 2011, no Paquistão, ainda é tema de versos terroristas. A elegia ao líder da Al Qaeda, mentor da queda das Torres Gêmeas, se tornou um gênero literário em si. Um militante chamado Hamid bin Abd Allah al-Ali escreveu sobre sua morte: "Meu próprio poema me engasga/ Como uma mãe que chora por seu tesouro/ Em meu luto, porém, estou contente/ Porque nós não vimos os leões humilhados por grilhões".

    DIOGO BERCITO, 29, é correspondente da Folha em Madri.

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