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    Em resposta a Safatle, J. P. Coutinho defende democracia representativa

    JOÃO PEREIRA COUTINHO

    10/09/2017 02h00

    RESUMO Autor argumenta que democracia representativa filtra as irracionalidades da multidão, que pode ser tão tirânica quanto um rei absoluto, e afirma que a eleição permite que maus políticos sejam punidos sem derramamento de sangue. Texto é resposta a excerto do livro "Só Mais um Esforço", publicado neste espaço em 3/9.

    Charles Platiau - 6.abr.2016/Reuters
    Manifestantes do movimento Nuit Debout (noite em claro), na praça da Republique, em Paris, se reúnem contra reforma nas leis trabalhistas francesas
    Manifestantes do movimento Nuit Debout (noite em claro), na praça da Republique, em Paris, se reúnem contra reforma nas leis trabalhistas francesas

    Era Winston Churchill quem dizia que a democracia era a pior forma de governo, com a exceção de todas as outras. Mas existe uma outra frase de Churchill (1874-1965) que os democratas tendem a esquecer. Afirmava ele que o melhor argumento contra a democracia era uma conversa de cinco minutos com um eleitor normal.

    Sempre defendi que as duas frases devem ser lembradas em simultâneo, porque elas revelam o essencial sobre a democracia. Por um lado, talvez não exista melhor forma de governo. Por outro, convém não canonizar o eleitor como poço de sabedoria ou tolerância.

    Lembrei-me de Churchill ao ler o excerto do livro mais recente de Vladimir Safatle, "Só Mais um Esforço" [Três Estrelas, 144 págs., R$ 29,90], aqui publicado no último domingo (3). No texto, Safatle começa por afirmar que a democracia está em crise e que a esquerda, na era dos extremos, também deve recuperar a sua radicalidade.

    Sobre a alegada crise da democracia liberal, o autor fala da "dissociação entre economia e política". Sobre a terapia adequada, propõe um regresso à "democracia direta", a única capaz de respeitar a soberania do povo.

    Começo por dizer que entendo Safatle sobre essa óbvia "dissociação". Os debates políticos contemporâneos sucumbiram a uma linguagem técnica que tende a excluir qualquer dimensão política, social ou mesmo ética. Só que essa praga, ironia das ironias, é uma consequência do racionalismo político levado às últimas consequências –um racionalismo que teve em Karl Marx (1818-83) o seu profeta.

    Consciente ou inconscientemente, todos somos filhos de Marx ao reduzirmos a complexidade e a pluralidade do mundo a um linguajar econômico. Há mais vida para além das finanças públicas. Desde que as finanças públicas estejam razoavelmente equilibradas.

    É por isso que a crítica de Safatle à "virtude moral da austeridade" não me convence. Admito que, na Europa e durante a crise do euro, alguns masoquistas tivessem um gosto particular pela cartilha austeritária. Há loucuras para todos os gostos e fanáticos em todas as famílias ideológicas.

    Mas, como se viu em Portugal, na Grécia ou na Espanha, a dita austeridade não era uma questão "moral". Infelizmente, era matemática pura: em 2011, e tomando o caso português como exemplo, o país deixou de ter liquidez para honrar os mais básicos compromissos. Pedir ajuda à União Europeia e ao FMI foi o gesto seguinte pelo simples motivo de que havia salários ou aposentadorias para pagar.

    Esse mesmo choque com a realidade (ou, se preferirmos, com a matemática) também foi sentido por espíritos bem radicais, como o Syriza, na Grécia. Claro: podemos questionar por que motivo o Syriza não repudiou as suas dívidas, saindo do euro e voltando a imprimir o velho dracma. Existia essa alternativa. E o Syriza, inicialmente, não era hostil a ela.

    Fatalmente, havia um obstáculo: os gregos não admitiam tal hipótese. Melhor ainda: não queriam a chamada austeridade (quem quer?), mas também não queriam a saída do país da zona do euro. Dizer que isso é uma contradição nos termos seria um eufemismo. Como Churchill dizia, o povo nem sempre pensa com a clareza desejável.

    REPRESENTAÇÃO

    Essa ideia melancólica leva-me à proposta de Vladimir Safatle. Será que a democracia representativa é uma "sabotagem contínua da soberania popular"? E será que a democracia direta é a única forma de a respeitar?

    Ponto prévio: entendo que Safatle esteja nauseado com as recorrentes crises políticas no Brasil e com a conduta abjeta dos seus representantes. Nada direi sobre o assunto porque cabe aos brasileiros encontrar respostas para o seu sistema político. Mas duvido –para usar outro eufemismo– que essa resposta esteja na "deliberação contínua" de uma assembleia popular, que dispensa a representação política.

    Em primeiro lugar, e regressando ao velho Winston, acreditar que a "vontade geral" é necessariamente justa e benigna é uma espécie de pensamento mágico que confunde o desejo com a realidade.

    Os pais fundadores dos Estados Unidos sabiam disso, e a leitura de "O Federalista" é altamente instrutiva sobre esse ponto: o representante, defendia James Madison (1751-1836), é um elemento essencial para filtrar as irracionalidades da multidão. Não se trata de um pensamento antidemocrático porque, afinal de contas, ele é escolhido pelo "demos" [povo, em grego]. Trata-se, isso sim, de um pensamento estruturalmente antitirânico.

    Madison sabia, na melhor tradição liberal (e uso a palavra no seu sentido histórico), que o inimigo de uma sociedade livre não é apenas um monarca que se julga acima da lei (como George 3º em 1776). O despotismo não é uma questão numérica; é uma questão moral. A multidão pode ser tão tirânica como um rei absoluto.

    Por outras palavras: o representante não "rouba" a soberania; apenas a exerce com um grau de preparação e conhecimento que não está ao alcance de qualquer um. Naturalmente que Safatle e muitos brasileiros poderão rir dessa asserção: basta contemplar a ignorância e a venalidade de muitos representantes para concluir que eles não estão muito acima do "cidadão comum".

    Não nego essa dolorosa conclusão empírica. Porém, o fato de muitos representantes serem analfabetos ou corruptos não demonstra a falsidade do modelo representativo como ideal democrático; apenas revela a incapacidade do sistema político brasileiro de integrar os melhores nos assuntos da República. Antes de se autodestruir, a democracia liberal brasileira deve reformar-se.

    MAIS QUE A MAIORIA

    Usei a expressão "democracia liberal" de propósito. Bem sei que a palavra tem hoje má fama. Quando alguém fala de "liberalismo", as reações são extremas.

    Para a direita, o liberalismo moderno é uma forma de socialismo sob outro nome: um esquema abusivo de redistribuição de riqueza de forma a garantir a autonomia dos indolentes; ou, então, uma obsessão permanente com as minorias e suas "identidades".

    Para a esquerda, o liberalismo assume outra máscara –e o prefixo "neo" dispensa apresentações: o "neoliberalismo" traduz-se na existência de um capitalismo selvagem e de uma "ditadura dos mercados financeiros" que rouba os trabalhadores e enriquece apenas a plutocracia.

    Deixo de lado esse debate, que me parece lateral para a questão de fundo. Apenas afirmo que a expressão "democracia liberal" pretende significar que não basta o voto majoritário para encerrar o debate democrático. O voto majoritário é o início da conversa, não o seu fim. Sem um Judiciário independente, sem liberdade de expressão, sem o respeito pelos direitos das minorias, o voto majoritário pode ser somente uma expressão de tirania.

    Se a assembleia popular imaginada por Vladimir Safatle aprovasse a pena de morte para delitos maiores (ou até menores), a tortura para homossexuais ou o ostracismo de certas religiões, ela estaria a exercer a sua soberania, sem dúvida. Mas seria uma soberania de gangsters rumo a uma sociedade bárbara. Os homens não são anjos, escreveu James Madison no famoso ensaio "Federalista nº 51". Uma evidência que se aplica a todos os homens, não só aos que governam.

    SEM SANGUE

    Por último, Safatle entende que uma assembleia popular seria a grande barreira contra interesses ocultos –os interesses do capitalismo– que condicionam as sociedades presentes. Na sua conceptualização, a assembleia popular delibera, e o Estado limita-se a implementar o que ocorre no seu exterior.

    Honestamente, não vejo como isso impediria que "interesses ocultos" continuassem a exercer sua nefasta influência. Dito de outro modo: por que motivo o "capital" corrompe os representantes políticos, mas não os cidadãos "virginais"? Historicamente, só houve um jeito de liquidar os interesses ocultos nas (chamadas) democracias populares: pela liquidação da economia de mercado e consequente descida à miséria igualitária.

    Mas existe um problema suplementar na alegada virtude da "vontade geral": ela é simplesmente impraticável. O sonho de Rousseau (1712-78) de que era possível uma entrega do indivíduo à comunidade de forma que ele apenas obedecesse à sua própria vontade transformada teve sempre o mesmo fim: a emergência de uma elite vanguardista que, em nome do povo, corrigia e reinterpretava os "verdadeiros interesses" das massas.

    Como lembrava o "renegado" Karl Kautsky (1854-1938) sobre a experiência comunista na União Soviética, a democracia direta até podia funcionar localmente, em pequenos comitês; mas rapidamente a estrutura de poder evoluía de comissário em comissário até chegar à "aristocracia soviética", que tudo decidia (em nome do povo, claro).

    Sim, a democracia representativa é a pior forma de governo, com a exceção de todas as outras. É imperfeita, sujeita a abusos e nem sempre oferece os melhores resultados. Mas, como lembrava outro Karl (o Popper), é a melhor garantia que existe para que os maus políticos sejam removidos do cargo sem derramamento de sangue.

    Os brasileiros que não se esqueçam disso, até porque 2018 está às portas.

    JOÃO PEREIRA COUTINHO, 41, escritor, cientista político e colunista da Folha, é autor de, entre outros, "As Ideias Conservadoras" (Três Estrelas).

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