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    Em povoado paraguaio, ceramistas viviam entre tradição e modernidade

    OSVALDO SALERNO
    tradução CLARA ALLAIN

    24/09/2017 02h00

    Acervo pessoal
    Julia Isídrez (esq.) com a mãe, Juana Marta Rodas, no povoado de Itá, no Paraguai; mostra com obras de Isídrez (sob curadoria de Aracy Amaral e cocuradoria de Salerno) está na Galeria Millan até 30/9

    Em 1975, conheci Juana Marta Rodas e sua filha, Julia Isídrez, duas ceramistas de Itá, povoado próximo de Assunção, no Paraguai.

    Embora eu não soubesse à época, esse encontro, que seria seguido por muitos outros, marcaria um dos momentos do processo que, mais tarde, desembocaria na criação do Museu do Barro.

    Juana e Julia viviam numa residência composta de dois espaços, dois mundos.

    O primeiro, marcado pela tradição e pela memória, funcionava numa casa com teto de sapê e paredes de barro; esse espaço demarcava a zona doméstica.

    O segundo, que traduzia a transição da região à modernidade, ocupava uma casa provida de eletricidade, paredes com azulejos e cobertura de telhas.

    Um modelo de modernização acelerada e desigual avançava sobre Itá. Seguindo o caminho da estrada de asfalto, o casco urbano do antigo povoado se rasgara e partira ao meio a paisagem, que começou a ser outra.

    Trabalhando com as ceramistas do lugar, eu percebi que essa expansão encerrava dois riscos imediatos à produção de sua arte.

    Um deles se devia a um projeto agressivo de transformações técnicas ditas "modernizadoras" promovido pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), sem consulta à comunidade local nem avaliação de seu impacto cultural e ambiental.

    O outro era causado pela tentação que emigrar a Buenos Aires representava para as mulheres jovens. Naquela época, a necessidade de mão de obra barata para o serviço doméstico levara à redução do preço das passagens para a capital da Argentina.

    Julia se sentiu atraída por essa possibilidade e considerou seriamente abandonar a cerâmica.

    Naquele momento, já estava sendo consolidado o Museu do Barro, que deu forte apoio à ceramista na logística de produção e de venda de seu trabalho.

    Segundo Julia, esse respaldo foi determinante para sua decisão de permanecer em Itá.

    Desde então, Juana Marta e sua filha conseguiram afirmar uma cerâmica capaz de, ao mesmo tempo, desenvolver as técnicas da antiga tradição guarani e apropriar-se de novas imagens.

    Assim, o trabalho dessas duas mulheres, desenvolvido entre a casa de teto de sapê e a de telhas, se enriquece com naturalidade e força graças às imagens estranhas aproximadas pela modernidade periférica, gerando como resultado um repertório que integra diversos elementos numa obra que constitui uma das expressões mais seguras e fortes da arte paraguaia.

    Dona Juana Marta morreu alguns anos atrás, em 2013; Julia leva seu trabalho adiante com o dobro do empenho.

    Independentemente do enorme valor que dou ao trabalho de ambas, o fato de conhecê-las e de ter participado desde então desse mundo duplo –que, no fundo, é sempre um só e cabal– constitui uma das experiências pessoais mais ricas que vivi no mundo da cultura do Paraguai.

    OSVALDO SALERNO, 65, artista visual, é diretor do Museu do Barro e diretor-geral do Patrimônio Cultural da Secretaria Nacional de Cultura da Presidência da República do Paraguai.

    CLARA ALLAIN é tradutora.

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