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    Diretor diz ter filmado 'Gabriel e a Montanha' para reencontrar amigo

    FELLIPE BARBOSA

    01/10/2017 02h00

    Acervo pessoal
    Fotografia mostra o economista Gabriel Buchmann no monte Mulanje, onde morreu em 2009

    Conheci Gabriel Buchmann aos sete anos de idade. Estudamos juntos até os 17 no Colégio de São Bento, no Rio. Ele morava no Grajaú, e eu na Barra. Seu apelido era Gabiruba, e ele me chamava de Gamarano.

    Não éramos tão próximos, mas gostávamos muito um do outro. Começamos a fazer economia na PUC-RJ (Pontifícia Universidade Católica do Rio), até que, aos 19, ganhei uma bolsa para estudar cinema em Nova York. Morei lá por nove anos. Perdemos contato.

    Gabriel seguiu com os estudos na PUC e com a pesquisa na FGV do Rio (Fundação Getulio Vargas), até ganhar uma bolsa integral para o doutorado na Universidade da Califórnia em Los Angeles (EUA), onde iria estudar políticas públicas para países em desenvolvimento. Idealista, ele queria reduzir a desigualdade social.

    Como preparação, decidiu tirar um ano sabático para realizar um sonho antigo: viajar o mundo de forma sustentável, vivendo como os habitantes de cada região.

    Na África, queria ver de perto a pobreza. Seus colegas economistas não o entendiam: o que ele poderia aprender sobre pobreza com os pobres, sem distância científica? Ele não cabia nessa ortodoxia acadêmica: tinha que ver o mundo, subir montanhas, talvez em busca de algo mais puro, belo e absoluto.

    Minha memória mais forte de Gabriel é a de me sentir observado por ele nos pilotis da PUC com um sorriso misterioso, que hoje interpreto como o reconhecimento de um futuro em que seríamos muito mais próximos.

    Gabriel partiu em sua viagem pouco antes de eu voltar de vez ao Brasil, em 2008. Após sua morte por hipotermia no mítico monte Mulanje, no sul do Maláui, em 2009, sua mãe, sua irmã e sua namorada dividiram comigo seu arquivo: e-mails, fotos e anotações que fez durante a viagem.

    Essa foi a base do primeiro roteiro de "Gabriel e a Montanha", filme realizado em quatro países africanos. Rodado sete anos após a morte de Gabriel, o longa retrata seus últimos 70 dias de vida.

    Naquele arquivo, havia um pen drive com uma pasta que continha artigos e conquistas de seus amigos. Entre eles, um PDF com a ficha técnica e os prêmios do meu curta-metragem de 2007, "Beijo de Sal". Fiquei emocionado.

    Na busca por nossa última troca de e-mails, descobri um não lido, enviado à lista dos ex-alunos do São Bento, em que ele dizia que estava indo a Nova York e queria me encontrar. Chorei. Não devia acompanhar a lista naquela época. Por que não me escreveu diretamente?

    Senti culpa, como se não tivesse sido um bom amigo. Tentaria mudar isso com o filme, com a encenação dos últimos encontros de Gabriel –e, assim, eu mesmo poderia reencontrá-lo.

    Filmamos nos lugares onde ele esteve, com as pessoas que encontrou, com algumas de suas roupas e objetos reais.

    Alguns itens não tínhamos, como as luvas. Gabriel foi encontrado com apenas uma luva na mão. Nossa figurinista, Gabi Campos, produziu um par parecido com o original.

    No último dia de filmagem, andamos quatro horas rumo ao ninho improvisado onde Gabriel foi encontrado, sob uma rocha enviesada. No meio da caminhada, descobri que Pedro von Tiesenhausen, nosso assistente de arte, havia perdido as luvas do figurino na véspera e tinha ficado no abrigo para procurá-las. Pelo rádio, ele me perguntou se podia se juntar a nós apesar de não as ter encontrado, e eu disse que sim, por favor. Ele era nosso MacGyver e anjo da guarda, tinha que estar conosco até o fim.

    Quando Pedro chegou, me deu um abraço, pediu desculpas pelas luvas e entrou no ninho para cobri-lo com as plantas que protegeram e camuflaram Gabriel na natureza.

    Ele meditou, enterrou a mão no chão sobre o qual meu amigo dormiu pela última vez e sentiu algo sob a terra. Saiu do ninho com a segunda e verdadeira luva de Gabriel, sete anos depois. Com lágrimas nos olhos, disse: "Ele veio se despedir."

    Senti que meu amigo perdido reapareceu não só pra mim, mas para todos da equipe, que agora se sentia próxima de Gabiruba. Deixamos a luva lá mesmo, no paraíso onde Gabriel finalmente parou.

    FELLIPE GAMARANO BARBOSA, 37, cineasta, dirigiu "Casa Grande" e lança "Gabriel e a Montanha" no Festival do Rio em 11/10 e em circuito nacional no dia 2/11.

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