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    Leia trecho de 'Como se me Fumasse', novo romance de Marcelo Mirisola

    MARCELO MIRISOLA
    ilustração ZÉ OTAVIO

    15/10/2017 02h00

    SOBRE O TEXTO O trecho abaixo integra "Como se me Fumasse", oitavo romance de Marcelo Mirisola, que a Editora 34 lança em novembro. Conhecido por escrachar a sociedade com sua linguagem escatológica, o autor se propõe nessa obra a contar a vida pelo viés das perdas e da morte.

    *

    Zé Otavio
    Ilustração de Zé Otavio

    Ela trai, eu perdoo. Ela diz que vem, e não aparece. Mente, eu acredito. A filhadaputa tem o poder de transformar o remoer do tempo em casualidades domésticas. Ela trata nossa história como se fosse mais uma banalidade em sua vida, e deve ser. Isso me irrita profundamente. E atordoa. Bastam duas mentiras e um sorriso para que seis anos de ausência se transformem em qualquer desculpa esfarrapada, nada mais que duas mentiras e um sorriso para que o inferno comece outra vez.

    Quando aparece é pela metade. E é para sempre.

    E foi assim. Ela adquiriu uma papadinha charmosíssima, perdeu algumas curvas e teve de recorrer a um implante capilar parcelado em dez vezes no cartão de crédito –que ficou muito bom, diga-se de passagem. Aparentemente não é mais aquela porra-louca de seis anos atrás, embora conserve o mesmo beijo, o sotaque "mano" importado de Itaquera que eu abomino e adoro ao mesmo tempo, e um cinismo que parece que saiu de dentro de mim, como se a fadiga do material ou aquilo que os místicos chamam de maturidade a transformasse numa mulher ainda mais encantadora e irresistível. Quer dizer, irresistível aos meus olhos. Dom Juanito pensa, sente, vê adiante e julga muito diferente: "ela é sua ruína".

    Às vezes acho que um roteirista sádico especializado em mortos-vivos escreveu nossa história. O cara merecia vários Oscars de efeitos especiais pelos loopings-zumbis que inventou. A técnica consiste em distorcer minhas melhores lembranças e os mais ingênuos momentos e transformá-los em rituais macabros e doentios, obsessões infernais e avalanches de déjà-vu incontroláveis.

    Bem...

    Depois de seis anos o interfone toca. Era ela. Escolheu o dia seguinte. Um dia antes eu havia enterrado mamãe. Foi Joana –minha namorada– quem atendeu o interfone. Impossível convidá-la para subir. Desci.

    – Você?

    – Tava passando aqui.

    – Tudo bem?

    Contei do enterro, e da namorada que me esperava no apartamento. Ela desfilou banalidades como se a morte de mamãe e o fato de eu ter uma namorada lá em cima não significassem grande coisa, falou evidentemente da filha e de sua vidinha de periferia que, agora, incluía um shopping perto de casa. Abriu a bolsa à procura do maço de cigarros. Aos meus olhos –repito– continuava a sedutora e vinte anos mais nova de sempre. Eu lhe digo que o mundo perdeu o sentido:

    – Perdeu?

    Que não tenho mais por que nem para quem escrever. Que se eu estivesse à deriva, estaria tudo bem, mas o fato –explico:– é que, depois de ter enterrado mamãe, pertenço mais ao lado de lá, do que "do nosso lado". Escolhi um lado. Também morri. Quando disse que tive vontade de me jogar na sepultura e ir junto, ela não aguentou:

    – (e riu)

    Freud e Nelson Rodrigues na cabeça, cercados do primeiro ao quinto.

    Nota. Uma vez ela me acusou de não entender nada de jogo do bicho, disse que mauricinho que perdeu o cabaço com as empregadinhas da mamãe devia ser proibido de jogar no bicho.

    Mamãe coberta de flores amarelas no caixão. Eu falava que Freud e Nelson Rodrigues estavam me açoitando junto a milhares de lugares-comuns. Que continuar, agora, seria redundância.

    – Freud e Nelson Rodrigues açoitando você? –sorriso lindo da filha da puta, que acende um cigarro. Ela tem esse dom, de sorrir e acender o cigarro ao mesmo tempo.

    Ruína sabia que não era bem assim. Sabia que eu havia escrito os últimos dois livros inspirados nela e para ela. Sabia que sempre a procuraria desesperadamente nas outras mulheres, sabia que nunca a encontraria nem nas outras, nem nela mesma. Sabia perfeitamente separar realidade de ficção.

    – Só faltou você dar meu CEP, filhodaputa.

    – Gostou?

    – Fiz questão de esquecê-lo no táxi.

    – Então gostou.

    – Estou aqui, não estou?

    *

    MARCELO MIRISOLA, 51, é autor de "Memórias da Sauna Finlandesa" e "A Vida Não Tem Cura" (Editora 34).

    ZÉ OTAVIO, 33, é ilustrador.

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