• Ilustríssima

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    No Brasil, desigualdade e corrupção se reforçam mutuamente, diz historiador

    THIAGO KRAUSE

    20/10/2017 06h00

    RESUMO Em resposta a artigo de Jessé Souza (22/9), autor afirma que escravidão e corrupção são aspectos indissociáveis na nossa história. Argumenta que as desigualdades moldadas no passado escravista se reproduziram e se transformaram dentro de um consórcio da elite com o Estado, num arranjo hoje enfrentado pela Lava Jato.

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    Pode-se acusar Jessé Souza de tudo, menos de falta de ambição. Em recente intervenção na "Ilustríssima" (22/9), o sociólogo reivindicou a autoria de uma interpretação singular do Brasil. A chave para o entendimento do país seria a escravidão, e não a corrupção, como supostamente afirmaram nossos grandes autores do século 20.

    Não me parece possível, porém, separar esses dois aspectos na nossa história. Mesmo Sérgio Buarque de Holanda (1902-82) e Raymundo Faoro (1925-2003) vão apontar como grande problema o papel do Estado na criação ou no reforço de oligarquias atrasadas. Esses dois intelectuais não analisaram a corrupção como uma falha moral inerente ao brasileiro, mas sim como um sintoma dos diferenciais de poder que distinguem a elite da maior parte da população brasileira.

    Por outro lado, Souza tem razão quando critica o reduzido destaque atribuído à escravidão nessas e em muitas outras interpretações do Brasil. Ao ajustar o foco da análise, contudo, comete o mesmo pecado que reprova corretamente em Faoro: enxergar uma continuidade sem quebras entre o passado e o presente.

    A escravidão é essencial para a compreensão do Brasil por ter intensificado a desigualdade social e moldado suas formas mesmo após a abolição, em 1888. A intensa discriminação racial existente até hoje é evidente quando notamos que negros ainda recebem metade do salário dos brancos e que, a cada 100 pessoas assassinadas no país, 71 são negras.

    A questão, entretanto, não deve ser denunciar sua herança, mas investigar como as iniquidades dela derivadas se reproduziram e se transformaram ao longo do tempo. Para isso, é preciso entendê-las, não simplesmente culpar o passado por todos os males do presente.

    Diferentemente do que pensa Souza, por exemplo, os escravos não estavam condenados a constituir famílias desestruturadas.

    Apesar das dificuldades inegáveis, como o maior número de homens que de mulheres entre os cativos e as restrições senhoriais a casamentos que ultrapassavam a porteira da propriedade, muitos escravos conseguiram compor núcleos familiares estáveis. Em diversas regiões, cerca de um terço dos cativos adultos era casado ou viúvo, como historiadores têm demonstrado há mais de 30 anos.

    A proporção de famílias monoparentais (isto é, com apenas um dos genitores, geralmente a mãe) entre a população pobre também variou ao longo do tempo, aumentando gradualmente desde o final do século 20.

    Além disso, como esse fenômeno ocorre em outros países, como os Estados Unidos, inclusive entre os brancos, a responsabilidade dificilmente será apenas da escravidão, mas também da urbanização, do enfraquecimento da religião institucionalizada e da crescente autonomia econômica e jurídica das mulheres.

    Da mesma maneira, Souza atribui mecanicamente à herança escravista diversas características da sociedade brasileira que também se encontram em países nos quais essa instituição foi pouco relevante, como o México e a Índia.

    Um exemplo é a exploração do trabalho doméstico pelos segmentos mais favorecidos. Os baixos salários e a concentração de renda permitem que os estratos sociais superiores utilizem a mão de obra das camadas subalternas para tarefas que, em regiões mais ricas e menos desiguais, seriam realizadas pela própria família de classe média ou alta.

    O problema não é apenas a escravidão no passado, mas o fato de que optamos por reproduzir a desigualdade no presente —inclusive a racial. Como apontou o sociólogo Pedro Ferreira de Souza, a desigualdade dos países europeus no início do século 20 era similar à nossa; ocorre que, enquanto as disparidades diminuíram no Velho Mundo entre as décadas de 1940 e 1970, elas permaneceram estáveis por aqui.

    ESTADO E MERCADO

    O mais curioso é que, para Jessé Souza, a dominação parece não passar pela esfera estatal, pois o "poder social real" teria sua base no mercado. Contudo, desde o período colonial havia uma comunidade de interesses entre a elite e o Estado metropolitano, pois ambos os polos dependiam da exportação de produtos agrícolas cultivados por escravos, como enfatizou o brasilianista Stuart Schwartz.

    Assim, desde o século 16, as classes dominantes do Brasil se constituíram numa relação umbilical com a monarquia portuguesa. As elites coloniais serviram à Coroa e receberam como recompensa cargos que lhes permitiram extrair recursos da sociedade por meios legais e ilegais, como demonstrou o historiador João Fragoso.

    A própria constituição do Estado nacional após a independência baseou-se na defesa estatal do tráfico atlântico de africanos escravizados —inclusive após a decretação de sua ilegalidade, em 1831—, cujo propósito era garantir a oferta de trabalhadores para as lavouras de café em expansão devido à crescente demanda do mercado mundial, como argumenta o historiador Tâmis Parron.

    Do mesmo modo, contribuíram para nossa hierarquização social excludente o financiamento da vinda de imigrantes europeus entre 1880 e 1930 em detrimento dos libertos, a utilização do poder repressor do Estado contra as classes subalternas e a permissão tácita para a violência pessoal que continuou a ser exercida pelas oligarquias.

    Portanto, a separação entre Estado e mercado é artificial: as relações econômicas dependem da regulação governamental —que deve, inclusive para os liberais, garantir os direitos de propriedade, o respeito aos contratos e a ordem pública.

    O Estado sempre redistribui os recursos que extrai da sociedade, mas essa redistribuição pode tanto diminuir quanto aumentar a desigualdade. No linguajar de economistas como Daron Acemoglu, o Estado brasileiro é caracterizado por instituições extrativas que favorecem elites politicamente bem relacionadas por meios legais (como a estrutura tributária regressiva) e ilegais (a corrupção), intensificando a concentração de riqueza.

    Ao mesmo tempo, a base da dominação do Estado pelas elites está na desigualdade estrutural, que lhes garante recursos políticos, sociais e econômicos muito superiores aos do restante da população. Assim, a disputa política muitas vezes se torna uma luta somente entre setores da oligarquia pelo controle dos recursos públicos.

    Desigualdade socioeconômica e utilização do Estado para fins privados não são, portanto, explicações alternativas para os problemas do Brasil. São aspectos indissociáveis de um mesmo fenômeno e se reforçam mutuamente.

    PLUTOCRACIA

    A partir da década de 1920 e, principalmente, após 1985, a gradual inclusão da população em geral no jogo político lançou novos desafios para as elites. As demandas dos setores intermediários e subalternos forçaram a construção de um Estado de bem-estar social, atuante sobretudo nas cidades.

    A imprensa ampliou seu papel nas disputas eleitorais, influenciando parcelas cada vez maiores da sociedade a partir da difusão de novos meios, como o rádio e a televisão. É possível identificar um viés liberal-conservador em muitos órgãos de comunicação, mas é preciso reconhecer a autonomia intelectual do público.

    Para Souza, as denúncias de corrupção são resultado da manipulação midiática, pois atingem preferencialmente os governos ligados às classes populares.

    O problema nessa argumentação é que, pela primeira vez na história do país, vários dos principais plutocratas foram não só responsabilizados por crimes mas também presos. Teria Marcelo Odebrecht aceitado estoicamente a prisão para derrubar o governo do PT —o mesmo PT que ampliou o consórcio Estado-mercado que faz a fortuna de tantas empresas há mais de meio século?

    A proximidade dos governos petistas com o grande capital nacional, evidente na concessão de benesses e no recebimento de vultosas doações de campanha, sugere que devemos entendê-los como parte integrante do establishment que reproduz a obscena desigualdade de renda no país, com destaque especial para a imensa concentração de riqueza no topo da pirâmide, um grupo que corresponde a 1% da população.

    Por sua vez, os liberais-conservadores que assumiram o poder ainda não conseguiram "estancar a sangria": as diversas investigações continuam a incomodá-los e a revelar negócios escusos que beneficiaram a plutocracia nacional e a oligarquia política.

    Assim, a Lava Jato parece ser um caso único (ainda que incompleto e parcial) de ataque à relação umbilical entre Estado e plutocracia, com o potencial de abalar o caráter extrativo das nossas instituições -isso se a operação não for interrompida, como quer Jessé Souza, fazendo eco não só a Lula mas também a Michel Temer, Romero Jucá e Aécio Neves.

    A esperança —que pode muito bem se frustrar— de que a Lava Jato represente o início de uma relação menos incestuosa entre nossas elites políticas e econômicas não significa ignorar os numerosos erros e abusos cometidos pelos investigadores e juízes nem pensar que a prisão de corruptos resolverá os problemas nacionais.

    Precisamos de mais política e de menos polícia para garantir que a redistribuição promovida pelo Estado realmente produza equidade.

    THIAGO KRAUSE, 31, doutor em história pela UFRJ, é autor de "Em Busca da Honra" (Annablume) e professor de história da América na Uerj.

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