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    Cineastas portugueses da nova geração colecionam prêmios em festivais

    MARCOS GRINSPUM FERRAZ

    03/11/2017 15h29

    Fabrizio Bensch/Reuters
    O cineasta português Miguel Gomes (esq.) recebe o prêmio Alfred Bauer no Festival de Berlim, em 2012

    RESUMO Nova geração de cineastas portugueses se destaca nos principais festivais de cinema do mundo. Dezenas de filmes, em sua maioria curtas-metragens, de produção mais barata, foram selecionados neste ano, com prêmios em Cannes, Berlim e Locarno.

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    Com dezenas de prêmios, menções honrosas e intensos elogios de crítica e público, o cinema português ganhou, nos últimos anos, cadeira cativa nos principais festivais internacionais. De modo ainda surpreendente para os próprios cineastas, curtas e longas são selecionados ano a ano para Cannes, Berlim, Veneza ou Locarno —entre outros— e retornam para casa muitas vezes com Palmas, Ursos, Leões ou Leopardos de Ouro.

    Por trás desse boom não estão apenas diretores já estabelecidos e renomados –como Miguel Gomes, João Pedro Rodrigues, Teresa Villaverde e Pedro Costa–, mas diversos jovens com produção iniciada depois dos anos 2000. Com poucos recursos e muita iniciativa, eles têm protagonizado um momento especial do cinema português, com epicentro em Lisboa.

    Apenas neste ano, o longa "A Fábrica de Nada", de Pedro Pinho, 40, ganhou prêmios em Cannes e Munique; o documentário "Ama-San", de Cláudia Varejão, 37, foi laureado na República Tcheca; o curta "Cidade Pequena", de Diogo Costa Amarante, 35, levou o Urso de Ouro em Berlim; "Verão Danado", de Pedro Cabeleira, 25, recebeu menção especial em Locarno; e dezenas de outros filmes foram selecionados e premiados em mostras pelo mundo.

    Na grande maioria, são produções de baixo orçamento, por vezes realizadas com algum financiamento do Instituto do Cinema e do Audiovisual (órgão público de Portugal ) ou de instituições privadas, em outras feitas no estilo "do it yourself". Algo tornado possível, também, pelas tecnologias digitais cada vez mais acessíveis.

    "Nós não temos uma indústria, mas um artesanato, e acho que isso tem atraído os olhares", afirma o crítico português Jorge Mourinha, que ressalta também a diversidade de temas e linguagens dos trabalhos, por vezes bastante pessoais.

    A cineasta Leonor Teles, 25, segue a mesma linha: "Acho que os jovens têm uma vontade enorme de fazer e não ficam à espera das melhores condições. Pegam a câmera e vão à rua."

    Assim como outros cineastas ouvidos pela Folha, Teles ressalta que o "deficit de condições dá origem a uma grande criatividade que está impressa nos filmes, e talvez essa urgência desperte a curiosidade internacional." A falta de dinheiro resulta também em uma maioria de curtas-metragens, de produção mais barata, e que proliferaram principalmente na última década, em anos de apuros econômicos.

    Hoje, passada a crise e com Portugal assumindo o posto de novo "lugar da moda" na Europa, o cinema se beneficia de um momento em que o mundo observa com mais atenção a cultura do país.

    "Este olhar para o nosso cinema já vem de alguns anos, mas é preciso ter cuidado com as modas", diz a cineasta Salomé Lamas, 30. "Aconteceu com o cinema argentino, o chileno e o romeno. É bom porque realmente coloca determinadas produções no mapa, mas não se deve tomar a coisa por garantida."

    João Salaviza, 33, é menos cauteloso: "Acho que, proporcionalmente, para a dimensão de Portugal, é onde está se fazendo o melhor cinema do mundo".

    OUROS

    A primeira grande surpresa veio em 2009, quando Salaviza, então com 25 anos, levou a Palma de Ouro em Cannes com o curta "Arena". Dois anos depois, ganhou o Urso de Ouro em Berlim o curta "Rafa".

    Os filmes, que se passam em bairros periféricos de Lisboa, procuram mostrar um universo distante do que se vê no centro histórico e turístico da capital. Salaviza também busca subverter a lógica de centro e periferia no filme que está acabando de produzir no Brasil (em parceria com Renné Nader) com os índios Krahô, no Tocantins.

    Outro nome destacado da geração, o luso-angolano Carlos Conceição, 38, estreou neste ano em Cannes o curta "Coelho Mau", situado em um universo que remete aos contos de fadas, com toques de violência e sexualidade. Ele prepara dois longas para 2018.

    Assim como outros realizadores de sua geração, Conceição mantém um pé nas artes visuais, tendo produzido no início da carreira instalações e trabalhos de videoarte.

    "Penso que há uma desconstrução quase geracional do conceito clássico de cinema, que tem a ver também com uma experiência de formação humana depois da existência da internet", diz. "O 'streaming' e as redes sociais, por exemplo, são plataformas que reinventaram formalmente o cinema."

    Gabriel Abrantes, 33, é outro nome de destaque neste universo híbrido e multidisciplinar. Esteve na Bienal de São Paulo de 2016 com "Os Humores Artificiais" e já exibiu seu trabalho em museus como o Centre Pompidou em Paris e o Centro de Arte Contemporânea de Genebra, além de receber prêmios em Berlim, Locarno e Toronto.

    Salomé Lamas, que também transita entre o cinema e as artes visuais, recebeu nos últimos anos bolsas de importantes instituições: Universidade de Harvard, Fundação Rockefeller e Fundação Calouste Goulbenkian, entre outras.

    A realizadora mostrou este ano em Berlim o curta "Coup de Grâce". Em 2016, já havia participado do festival com o documentário "Eldorado XXI". Filmado na cidade de La Rinconada, nos Andes peruanos a 5.000 metros de altitude, o longa explicita tanto o extremo cuidado estético e formal da diretora quanto seu trabalho quase etnográfico.

    "Por vezes sinto que vale mais o processo que o resultado final", diz Lamas, que no filme registrou a vida dos trabalhadores das minas de ouro e suas famílias. "Nestes trabalhos, você acaba por ver e captar coisas diante das quais é completamente impotente. Talvez seja uma forma de colecionar experiências."

    NOVÍSSIMA GERAÇÃO

    Os casos de Pedro Cabeleira e Leonor Teles, ex-colegas na Escola Superior de Teatro e Cinema de Lisboa, são os que mais chamam a atenção, dada a idade de ambos: 25 anos.

    Em 2016, Teles levou o Urso de Ouro em Berlim com "Balada de um Batráquio", curta que critica, de modo livre, o costume português de pôr sapos de louça nos estabelecimentos comerciais para afastar os ciganos.

    O trabalho, premiado também em Belo Horizonte, foi lançado quatro anos depois de "Rhoman Acans", curta rodado em uma comunidade cigana portuguesa e que problematiza o papel das mulheres naquela sociedade.

    "Os dois refletem a minha visão da cultura cigana, nem sempre a favor, nem sempre contra", diz Teles, cujo pai é cigano. "Acho que é importante ter uma visão abrangente. E é engraçado ver como os filmes têm movimentos contrários, mas se complementam."

    Pedro Cabeleira, por sua vez, é um caso raro, pois decidiu ir direto para o longa-metragem sem nenhum curta no currículo. Após se formar, filmou "Verão Danado" durante três anos, quase sem verba.

    Contou com a ajuda de amigos e colegas (Teles é a diretora de fotografia), algo comum para os cineastas desta geração que acabam dependendo uns dos outros para produzir. No fim, teve a obra selecionada neste ano para Locarno, onde recebeu menção especial.

    "É quase um filme de escola", diz Cabeleira, "mas feito com a liberdade de não precisar seguir conselhos de professores ou qualquer tipo de obrigação acadêmica". O longa adentra o universo de jovens lisboetas através de encontros de amigos e de festas regadas a drogas, sexo e música eletrônica.

    PÚBLICO RESTRITO

    "Verão Danado", exibido no Festival do Rio, estreia nos cinemas portugueses ainda neste mês, mas Cabeleira sabe da dificuldade de conquistar público fora das mostras. "Em Portugal, é difícil as pessoas jovens irem ver os filmes que fazemos, o que é um bocado frustrante", diz.

    Se alguns diretores portugueses conseguiram chegar a um público maior —dos consagrados Manoel de Oliveira (1908-2015) e João César Monteiro (1939-2003) até nomes que despontaram já nos anos 90—, as gerações mais novas ainda sofrem para sair de circuitos restritos. Os filmes —especialmente curtas, formato pouco visto fora de mostras– acabam dependendo do reconhecimento nos festivais, e só então da mídia.

    "Não é um problema só de Portugal, mas de um tipo de cinema. Há gente interessada em ver, mas acho que se devem pensar formas alternativas de distribuição e políticas culturais mais inteligentes", defende Salomé Lamas.

    De qualquer modo, João Salaviza ressalta o incentivo que o acesso a festivais e mostras tem gerado. "Há uma geração nova que percebeu que, mesmo com as dificuldades, os filmes podem encontrar seu caminho em um circuito alternativo, e não só em Portugal. E acho que isso deu um tipo de motivação."

    A longo prazo, porém, os cineastas não veem o quadro como ideal. "Quem corre por gosto não cansa, mas uma hora cansa", brinca Lamas. "É muito bom fazer filmes, ser artista, mas chega uma hora que você também quer ter família, comprar uma casa, ter uma vida funcional como outras pessoas."

    Para Jorge Mourinha é preciso aumentar os subsídios à área cinematográfica para que ela seja sustentável a longo prazo.

    Ainda assim, o crítico destaca o fenômeno em curso: "Em um momento em que não existe uma política bem definida de apoio estatal ao cinema português e em que as produtoras vivem como podem, o simples fato de haver tantos filmes, e estes filmes, é por si só um ato político de resistência. É quase um milagre", conclui.

    MARCOS GRINSPUM FERRAZ, 31, é jornalista residente em Lisboa.

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