• Ilustríssima

    Thursday, 02-May-2024 07:07:39 -03

    Revolução russa, 100

    Opinião

    Comemorar? O verbo está errado; não há nada para comemorar

    JOÃO PEREIRA COUTINHO
    COLUNISTA DA FOLHA

    05/11/2017 02h00

    Alexis de Tocqueville, no clássico "O Antigo Regime e a Revolução", deixou uma das observações mais luminosas sobre 1789: os revolucionários começaram por destruir as iniquidades da monarquia absoluta, mas, em poucos anos, tornaram-se tão ou mais absolutistas do que Luís 16.

    A observação de Tocqueville, com poucas alterações, pode ser aplicada à Revolução de Outubro de 1917: destruindo a grande revolução patriótica de fevereiro daquele ano, Lênin regressou à autocracia czarista –e levou-a a extremos de desumanidade que a Rússia e o mundo nunca tinham conhecido.

    É importante começar com esta observação para desarmar a primeira mentira: a ideia generosa de que Lênin e seu bando corrigiram as injustiças do Império Russo. É falso.

    O que não significa que as injustiças não fossem verdadeiras.

    Nicolau 2º, que nunca se notabilizou particularmente pela inteligência (ou pela prudência), foi cavando a sua sepultura no primeiro quartel do século 20.

    Duas guerras definem o seu talento suicidário: a primeira, ruinosa, contra o Japão (1904-05); a segunda, apocalíptica, contra a Alemanha e a Áustria-Hungria (1914-17).

    Não foram só 2 milhões de russos que tombaram em combate. Nicolau 2º interrompia o incipiente desenvolvimento industrial e agrário do império para condenar um povo à miséria extrema.

    É desses charcos infectos que nascem revoluções. Mas, em fevereiro de 1917, era ainda possível pensar uma transição de regime tolerável: liberais, social-democratas e até socialistas revolucionários uniam-se à soldadesca e ao povo para terminar com a secular dinastia dos Romanov.

    O governo provisório, apostado em trazer a Rússia para "o grande concerto das nações europeias", abolia a pena de morte, garantia direitos políticos e civis básicos e preparava eleições para uma Assembleia Constituinte.

    A Revolução de Outubro não se faz contra uma autocracia; faz-se contra a legalidade e o pluralismo de fevereiro, destroçando qualquer vestígio de "democracia".

    Dizer que as liberdades mais básicas –de expressão, consciência, manifestação etc.– foram abolidas é um eufemismo.

    Com Lênin, a Assembleia Constituinte, que ele foi incapaz de conquistar democraticamente, era dissolvida (Adolf Hitler, nesse quesito, foi pouco original); os opositores políticos eram presos ou fuzilados; o campesinato era pilhado e aterrorizado; os velhos campos de trabalho czaristas eram convertidos e alargados para receber os novos presos políticos; e a polícia secreta –a Tcheka– intimidava, sequestrava e matava como a arcaica Okhrana (polícia secreta do regime czarista) nunca se atreveu.

    Revolução Russa, 100: mais

    E se a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) provocara 2 milhões de mortos, a guerra civil de 1918-1922 na Rússia multiplicava esse número por cinco.

    Quando morreu, em 1924, Lênin atingira o seu objetivo fundamental: uma ditadura de partido único com os recursos institucionais, policiais e militares que Stálin limitou-se a herdar e aprofundar durante seu governo, até 1953.

    Eis a segunda mentira que importa também corrigir: Josef Stálin não atraiçoou a teoria e a prática do mestre. Seguiu-a com redobrado esforço sanguinário.

    "Comemorar" a Revolução de Outubro de 1917? O verbo está errado.

    Não há nada para comemorar. Exceto a evidência –temporária?– de que o comunismo, tal como o nazismo, é hoje uma aberração minoritária.

    Edição impressa

    Revolução russa, 100

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024