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    Leia texto nunca publicado de Décio Pignatari, expoente da poesia concreta

    DÉCIO PIGNATARI

    19/11/2017 02h00

    SOBRE O TEXTO O datiloscrito reproduzido nesta página é uma obra inédita de Décio Pignatari, tradutor, ensaísta e um dos maiores representantes da poesia concreta no Brasil. Datada de 1954 e nunca exibida —o texto tampouco havia sido publicado—, a peça integra a exposição "Décio Pignatari "" Na Arte Interessa O Que Não", que começa na terça (21) na Galeria Millan. O curador João Bandeira selecionou clássicos do autor, trabalhos menos conhecidos, documentos e cartas.

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    Divulgação/Galeria Millan
    Datiloscrito original de Décio Pignatari, datado de 1954 e escrito em Paris, com texto nunca publicado

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    letras de merda! cagas pra cima ( uÓdio ) onde outras toneladas-de
    creto de concreto de bosta soltam o barro para baixo o bairro e se
    alatrinam na justiça ( uÓdio ) ou bem cagas no campo e adubas o im
    pulso de tôdas as raivas contra tôdas as covardias? o ódio ( uÓdio )
    letrasdemerda ( uÓdio ) o ódio ( uÓdio ) não a paciência que se ca
    rcome na subserviência e escancara as duas abas da bunda malemolen
    te ao subôrno em forma de salário legal! os intestinos dêste povo
    iletrado estão cheios de ar bombado à fôrça de êmbolos de açúcar e
    o seu dedo lê tartamudo meia coluna de jornal em meia-hora ( uÓdio )
    ao fim da qual êle decifra a sua escravidão! pois hão de preparar
    lhe um texto que ( uÓdio ) ao decifrar-se ( uÓdio ) exploda ( uÓdi
    o ) arrebente no outubro bastilhondo de um peido vulcânico e subte
    rrâneo que vire pelo avêsso as tenras terras-carnes de brasilville
    ( uÓdio ) a vil ( uÓdio ) desde interlagos até à rue de la boétie e d
    esde copacabana até à avenue montaigne! as letras & artes se trans
    formaram na solitária punheta do mêdo. ninguém tem pulso para dize
    r uma verdade fora da hierarquia ( uÓdio ) contra todos ( uÓdio )
    de preferência contra os probos magistrados à daumier ( uÓdio ) qu
    ando não fôsse só para ver até onde vão as suas lições de democrac
    ia e as suas citações de voltaire. letrasdemerda ( uÓdio ) enquant
    o os bons alunos preparam as suas teses acadêmicas para garantir u
    m emprêgo de assistentes nas faculdades ( uÓdio ) enquanto as pédi
    bundas filhas das puras eminências de alto nome vão galinhando até
    que a morte as descabace ( uÓdio ) enquanto os poetas de pele bran
    ca como barriga de sapo empoeirado compõem nas repartições - horas
    vagas ( uÓdio ) vago chefe - poemas sensuais de imagens levantinas
    e as suas bonitas espôsas os esperam em casa atrás da porta para e
    strangulá-los com suas calcinhas de nylon ( uÓdio ) enquanto os ge
    nerais sentem pruridos quinquenais de restaurar as pás sociais e o
    país sem alegria cada vêz mais ( uÓdio ) puritano e bárbaro cada v
    êz mais ( uÓdio ) enquanto os que podem fogem para citera e os que
    não [f]podem planejam [f]poder ( uÓdio ) enquanto a burrice velhaca enra
    ba a supersticiosa ignorância popular ( uÓdio ) enquanto isso ( uÓ
    dio ) tu ( uÓdio ) letrasdemerda ( uÓdio ) o teu barulho não dá pa
    ra encher nem um supositório que provoque um riso goyesco pela cul
    atra! quanto mais uma revolução social ( uÓdio ) ou uma reforma cu
    ltural ( uÓdio ) quanto mais! Mas por via das dúvidas ou por via an
    al ( uÓdio ) considera que só o ódio ( uÓdio ) letrasdemerda ( uÓd
    io ) o ódio e nada mais: encherá a barriga do pobre ( uÓdio ) aleg
    remente.

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    DÉCIO PIGNATARI (1927-2012), poeta e ensaísta, foi um dos principais nomes do movimento concretista brasileiro.

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