• Ilustríssima

    Wednesday, 01-May-2024 23:52:23 -03

    Leia dois poemas ainda não publicados do escritor e psicanalista Luiz Meyer

    LUIZ MEYER
    ilustração MARIANA SERRI

    03/12/2017 02h00

    Mariana Serri
    Ilustração de Mariana Serri

    SOBRE O TEXTO Nesta página são reproduzidos poemas inéditos que farão parte do livro "Sujando o Ninho", ainda em preparação. O psicanalista e poeta, de 79 anos, é autor de "Réu Confesso: Poemas Reunidos (1968-2010)", publicado pela Ateliê Editorial.

    *

    POEMA DIDÁTICO

    Confrangido, curvei-me
    à evidência: este é meu tempo
    e agora o que abraço
    é só carcaça.
    (com ela me entrelaço).
    Espelha a voz interna
    monturo articulado
    descarnada estrutura indicando
    feitos desfeitos
    largados pela estrada.
    Carcaça é resto
    ferro carcomido
    forma sem contorno
    sombra devassada
    corpo feito de lacunas
    mexilhões se encrustando
    no casco naufragado
    na ossada do edifício inacabado
    "cadaveri eccellenti".

    Neste meu tempo
    esfumou-se a promessa de horizonte;
    sequer há pranto funerário
    Escárnio, refugo, sorvedouro,
    uma desfeita feita após a outra
    calcinou o compromisso.
    E o que abraço é
    esta pilha de carcaças.

    Assim descrevo o arcabouço
    -mamilo sem auréola-
    revelado em sua transparência:
    carcaça é legado de propina.

    *

    FILHO

    Avança na piscina
    com braçadas vigorosas.
    É homem feito,
    escolheu o seu caminho:
    vê-se pelo modo como nada,
    pelo jeito cuidadoso com que trata
    o próprio filho.

    Corta a água
    segue em frente
    constrói seu destino.
    Chegando à borda
    mergulha recurvado,
    retorna ao ponto de partida.
    Seu trabalho, na água e fora dela,
    é diuturno.

    Tenho um filho
    provedor de quem carece
    e o modo como nada na piscina
    mais o zelo que dispensa à sua prole
    mostram um ser posto no mundo
    sereno na labuta,
    afeito aos termos do embate.

    Mistério da origem!
    Como pode alguém por mim gerado
    possuir este senso de justiça?
    Se o pai é apenas ardiloso
    e fácil se acomoda ao consumo do conforto
    de onde vem a batida destes braços
    -consistente, ritmada-
    a consciência do perigo,
    a coragem do confronto?

    Lá está ele, atento ao que se passa:
    enche o peito, resfolega,
    amassa o pão que ao voltar
    coloca sobre a mesa da cozinha.
    O esforço concentrado
    deixa um rastro de borbulhas.

    Findo o dia, sentado no seu colo
    seu próprio filho lhe interroga:
    sorri, baixa a cabeça
    atende à sua fala.

    (É um alivio vê-lo assim,
    imune à minha herança)

    Mariana Serri
    Ilustração de Mariana Serri

    *

    LUIZ MEYER, 79, psicanalista, é autor de "Rumor na Escuta: Ensaios de Psicanálise" (Editora 34).

    Edição impressa

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024