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    Corsaletti faz crônica sobre churros e poema sobre Scarlett Johansson; leia

    FABRÍCIO CORSALETTI
    ilustração CARLA CAFFÉ

    17/12/2017 02h00

    SOBRE O TEXTO Os textos nesta página integram "Perambule", novo livro do poeta Fabrício Corsaletti que intercala crônicas longas com poemas e prosas curtas. Seu lançamento, pela Editora 34, é previsto para janeiro.

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    Carla Caffé
    Ilustração de Carla Caffé

    Se dependesse de pessoas acomodadas como eu, a humanidade ainda estaria se locomovendo em lombo de burro, ou pior: os burros é que estariam andando por cima da gente. Mas, graças ao caos, não há um ser humano igual a outro neste mundo — e já faz um bom tempo que a sociedade se deu conta de que a diferença é legal, meu.

    Então não vou pedir desculpas. E nem teria por que fazer isso, pois desde a semana passada me juntei, por obra do acaso (se se pode chamar de acaso o fato de uma maçã ter caído na cabeça de Newton...), a essa diminuta parcela da população conhecida como Clã dos Inventores. (Se Augusto de Campos jamais pensou em me chamar de inventor, segundo a velha classificação de Ezra Pound, que dividia os poetas em inventores, mestres e diluidores, doravante o augusto Augusto vai ter que me chamar de inventor de qualquer jeito, se um dia me chamar de alguma coisa, claro.)

    É que tive uma ideia genial — modéstia, aparte-se! Aviso aos invejosos de plantão (como tem invejoso por aí, é impressionante) que ela já foi devidamente registrada em cartório e recebeu o selo de "patente especial AA" — pra quem não sabe, AA corresponde ao A+ escolar, ou A com estrelinha, a depender da escola e do professor.

    Ei-la, minha pepita: chama-se "rocambole de churros", e tenho que admitir que o nome é um pouco confuso. Mas e daí? O povo se acostuma. Não existe palavra mais estranha que "gentrificação", e no entanto todo mundo sabe o que ela quer dizer — é um liquidificador de gente, oras.

    O rocambole de churros é, como o nome, embora precário, diz, um churro em forma de rocambole, isto é, um longo churro enrolado feito uma mangueira de molhar o jardim ou, melhor, feito um pirulito colorido de criança, daqueles bitelões. Não sei se me faço entender: o "rocachurro" (é só uma hipótese de abreviação; aceitamos sugestões) é composto de um único churro comprido enrolado sobre si mesmo, como — finalmente uma imagem iluminadora! — um espeto de linguiça calabresa das churrascarias tradicionais.

    Agora o golpe de mestre: o "churrobole" (outra hipótese) será recheado com doce de leite argentino e/ou Nutella. E o "e/ou", aqui, não é uma afetação de estilo: o consumidor pode escolher se quer o seu "rocanchu" (mais uma) só com doce de leite por dentro e nada por fora (além do clássico açúcar e da opcional canela), com doce de leite por dentro e Nutella por fora (mamilos de doçura respingados ao léu na circular iguaria), só com Nutella por dentro (como os olhos da mulher amada, quando amada), ou com Nutella por dentro e doce de leite (argentino!) por fora.

    Não sei se é fácil preparar o rocambole de churros — como injetar o doce de leite ou a Nutella dentro do tubo sinuoso constitui um mistério —, nem sei muito bem como deve ser servido, se num saquinho de papel, como pipoca, ou se num prato com garfo e faca. Mas boto fé que o pessoal do MasterChef, ou algum cozinheiro do quilo da esquina, vai dar um jeito.

    Se eu não ficar famoso agora, não fico mais. Mas pelo menos nóis se diverte. Ou, como diz o ditado sexista, todos sonham com a Glória, mas a Martinha também bate um bolão.

    *

    Cinema

    dói o dia, dói a vida
    doer – meu único dom
    não há cerveja que preste
    nem há dose de bourbon
    que anestesie os meus olhos
    que ajuste da luz o tom
    que leve pra longe as lágrimas
    que encharcam meu moletom
    só uma coisa me salva —
    é ver Scarlett Johansson

    no filme pode ser ruim
    o filme pode ser bom
    as fotos, sempre perfeitas
    ainda que sem o som
    da sua voz cobreada
    dourada por um sol com
    raios lunares — trançada —
    voz da turma de Oberon
    enfim, quando vejo e quando
    ouço Scarlett Johansson

    dormir com ela (divago)
    debaixo de um edredom
    depois da grande batalha
    verdadeiro Armagedom
    acordá-la ronronante
    na boca, nenhum batom
    servir seu café na cama
    e ovos, claro, com bacon
    que talvez ela recuse
    ela — Scarlett Johansson

    a carne é pura alegria
    minha bike é sem guidom
    ninguém sabe o que é poesia
    será Scarlett Johansson?

    *

    FABRÍCIO CORSALETTI, 39, é escritor, poeta e colunista da Folha.

    CARLA CAFFÉ, 52, é arquiteta, diretora de arte e desenhista.

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