• Ilustríssima

    Thursday, 02-May-2024 05:34:53 -03

    'Elza Soares é o norte da bússola do enegrecimento', escreve Celso Sim

    CELSO SIM

    24/12/2017 02h00

    Alexandre Eça
    Celso Sim e Elza Soares no estúdio, preparando o álbum "A Mulher do Fim do Mundo", de 2015

    Cheguei atrasado, no sábado de aleluia da Páscoa de 2015, para o almoço que Elza Soares oferecia ao núcleo criativo do CD "A Mulher do Fim do Mundo" em seu apartamento de frente para o mar de Copacabana.

    Sentei na cabeceira da mesa, de frente para Elza, e atrás dela vi o mar. Atrás de mim, Elza via, refletidos na parede de espelhos, o mar, minhas costas, a sala, os convidados e a si mesma. Elza e seus duplos, sendo ela o centro do mundo naquele instante, como uma ilha rodeada de sons e sentidos.

    De chofre ela pergunta: "Celsinho, o que pensa de Getúlio Vargas?". Pensei, o que falar?

    "Elza, sou fascinado por Getúlio. Acabei de ler o terceiro volume da biografia escrita por Lira Neto."

    Ela ficou em silêncio por instantes e começou: "Me lembro de papai quando Getúlio foi visitar a pedreira, papai era 'blaster' [detonador]". E contou histórias da sua vida que são parte da história do Brasil eterno, em perspectivas giratórias como se ela fosse um farol iluminante. Viajei com Elza e pensei: "Estamos em pleno mar".

    Ela contou sobre quando seus pais se conheceram: seu pai, ferido em uma batalha de rua entre integralistas e getulistas nos anos 1930, é encontrado na calçada por sua mãe, que o leva para casa e cuida de seus ferimentos. O pai explodia pedras para fazer delas peças usadas no saneamento da cidade do Rio de Janeiro.

    Senhora dos tempos, Elza cortou, deliciosa: "Mas eu não tinha nascido nessa época."

    Removendo memórias e girando perspectivas, saí do seu apartamento e lá deixei o poema "Nocaute", que havia pedido para a dramaturga e atriz Grace Passô escrever, com o intuito de que Elza gravasse como faixa falada do CD.

    Caminhando sozinho entre o bairro de Laranjeiras e o teatro no Catete, fui acometido por uma lembrança da minha infância esquecida que me fez chorar convulsivamente: minha mãe, Ivete, rodava e sambava, alegre e potente, ouvindo Elza Soares —a rainha do samba— cantar até o fim sem fim do encanto.

    Aquele girar da minha mãe, mestiça brasileira mais para preta que para branca, era o que se chama hoje de empoderamento feminino e negro.

    Penso que chorava ao me lembrar dessa cena pois naquele instante tomei consciência da importância de uma artista gênia e destemida como Elza para outras mulheres negras e para seus filhos no Brasil que negaceia o racismo.

    Elza é, sempre foi e será um norte dessa bússola do enegrecimento. É preciso enegrecer!

    O país que mais traficou pessoas negras no planeta passou os últimos 500 anos querendo embranquecer. São as mulheres negras a vanguarda desse poder.

    Parafraseando Angela Davis, citada por Grace Passô no espetáculo "Preto", da Companhia Brasileira de Teatro: "Se e quando uma mulher negra for livre, todos e todas seremos".

    Assim como esta outra, da mesma peça: "Fazer com que o enegrecimento seja maior, mais potente no lugar onde estamos".

    Girando memórias que são perspectivas, nomeio aqui mulheres negras brasileiras poderosas: da mítica caymmiana e humana mãe Menininha do Gantois (Maria Escolástica da Conceição Nazaré) a Clementina de Jesus, de Ruth de Souza a Elizeth Cardoso, de Aracy de Almeida a Zezé Motta, de Alaíde Costa a mãe Stella de Oxóssi, das poetas Stela do Patrocínio e Maria Tereza às artistas Denise Assunção (imensa atriz e cantora), a poeta e atriz Roberta Estrela D'Alva, Grace Passô e as mulheres inflamáveis deste presente quase futuro, a trans-cadeirante Anita Silvia do Grupo Mexa e da poeta-profeta e cantora Linn da Quebrada, somos todos e todas Elza Soares.

    *

    Nocaute (Grace Passô)

    arrancou os dois olhos, pôs
    na mão, fez em si a escuridão.

    como ela não se vê, na maré não
    se descrê, tirou o homem pra
    dançar, mas não era, era o mar.

    dançou por noites inteiras tanto,
    brilhante, cega, camuflou-se plâncton.

    fez discurso para yemanjá,
    exigiu do mar um altar.

    tocou a terra, a mão decifrou o
    chão, a era, era ela,
    o mar enfim se fechou.

    a áfrica aqui em braile no chão
    de todos os altares seus olhos,
    nocaute, revelou.

    *

    CELSO SIM, 48, cantor, compositor e ator, foi diretor artístico do álbum "A Mulher do Fim do Mundo", de Elza Soares.

    Edição impressa

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024