• Mercado

    Saturday, 05-Oct-2024 17:39:12 -03

    'Plano Real é uma obra inacabada', diz ex-ministro Delfim Netto

    ÉRICA FRAGA
    DE SÃO PAULO

    11/02/2014 03h00

    O Plano Real é uma obra inacabada. Isso ajuda a explicar por que o Brasil enfrenta o risco de rebaixamento pelas agências de classificação de risco em 2014.

    A opinião é do economista e ex-ministro da Fazenda Antonio Delfim Netto.

    Para ele, embora seja injusto incluir o Brasil no grupo de mercados emergentes vulneráveis, a perspectiva do país é ruim.

    A situação seria diferente se os governos das últimas duas décadas tivessem perseguido o equilíbrio fiscal previsto no Plano Real.

    "O governo nunca terminou o Plano Real. Sempre se tergiversou, sempre se procurou a reeleição."

    Apesar da ameaça de rebaixamento, o ex-ministro acredita que o pessimismo em relação ao país é exagerada.

    *

    Folha - O senhor está preocupado com a economia?

    Antonio Delfim Netto - Eu acho que há muito mais pessimismo do que o justificado pela realidade. A situação é muito delicada no mundo. O mundo está melhorando lentamente. Sinto que há um desânimo, um pessimismo que é muito maior do aquilo que seria justificado pelo que está acontecendo no Brasil.

    Agora você tem um novo grupo, o grupo dos vulneráveis. Os indicadores do Brasil são muito superiores aos dos outros, da Índia, da Indonésia, da Turquia.

    Na minha opinião, é um absurdo, um exagero juntar o Brasil a esse grupo. Nós não temos mais o pecado original de ter a dívida em dólar. Nossa dívida é em reais. O Brasil não tem o menor risco de quebrar. O câmbio é flutuante.

    E o México? Está, de fato, muito melhor do que o Brasil?

    Karime Xavier - 2.jul.13/Folhapress
     Delfim Neto, economista e ex-ministro da Fazenda
    Delfim Neto, economista e ex-ministro da Fazenda

    O México está construindo condições melhores que o Brasil. Por que o México recebeu uma promoção na nota de rating e o Brasil está ameaçado de perder a nota?

    O México cresce menos do que o Brasil, mas está fazendo as reformas que são necessárias. Está usando melhor os instrumentos de mercado.

    O Brasil está numa situação bastante razoável. Nosso deficit fiscal é 3% do PIB, nossa dívida é 60% do PIB. Nada disso é trágico. Mas a perspectiva é ruim.

    Vi que a Dilma fez um acordo com o Congresso que, pelo menos em 2014, não vai pôr em votação nenhum projeto que aumente a despesa.

    Por que a perspectiva é ruim?

    Porque o que tem de acumulado de maluquice no Congresso em matéria de despesa é para acabar com o mundo, não é para acabar com o Brasil. Essa perspectiva é que dá esse mal-estar. A inflação está batendo no teto mesmo, tem um pouco escondida. Mas não tem nada de trágico, que você diga que vai perder o controle.

    O câmbio está flutuando. O mercado fez o que o governo estava acovardado. O câmbio subiu porque o mercado impediu que o governo continuasse a usá-lo como instrumento de combate à inflação.

    Esse câmbio destruiu o setor industrial brasileiro.

    Tem volta isso?

    Claro que tem. Vai demorar 14, 15 meses, mas o câmbio vai ter o seu efeito.

    Se você olhar direito a questão da valorização do câmbio, isso começou no governo Fernando Henrique. Você valorizou, você roubou a demanda externa da indústria brasileira. Depois, você valorizou tanto que roubou a demanda interna.

    O senhor acha que seria justo o Brasil sofrer rebaixamento da nota soberana?

    O rebaixamento não é que seria justo, você está com a mania do governo [risos]. O governo quer preço justo. O governo tem alguns encostos. O novo encosto é o preço justo. Ele quer agora na Copa controlar o preço dos transportes, controlar o preço da hospedagem, controlar o preço das passagens. Como se isso fosse possível.

    Voltaram para são Tomás [de Aquino]. Só que no século 13 não tinha concorrência. É por isso que era preciso princípios éticos para impedir o abuso nos preços. Aqui não, aqui tem competição.

    Como é que se divide um bem finito cuja demanda é maior do que ele? Se a demanda de metro quadrado de hospedagem é maior do que a oferta de metro quadrado de hospedagem, quem é o sortudo que vai ficar?

    Só tem dois jeitos de dividir. Um é pela força. Vai a polícia e diz: "Você vai entregar para ele". Só que pela força nós já sabemos que não funciona porque ou vai ter corrupção ou vai reduzir a oferta.

    A outra é o mercado. A gente pode discutir a ética disso, se é eticamente razoável o sujeito que tem um pouco mais de renda poder assistir ao jogo de futebol ou não. Isso é possível. O que é impossível é decidir quem vai assistir ao jogo de futebol, a não ser que eu tenha a polícia na frente.

    É uma característica desse governo querer controlar tudo?

    Deixa eu te dizer, é uma característica de todo governo. Eu fui professor de planejamento na Idade Média [risos]. Era um planejamento sem preço. Eu não gostava muito daquilo. O poder é uma coisa terrível quando não dá certo sempre quem está errado é o outro. Por isso que o planejamento leva necessariamente ao poder absoluto.

    Eu planejo e não dá certo porque foi ele que perturbou. Eu preciso de mais poder para obrigá-lo agora a se comportar como eu quero. Eu dou o segundo "round" e não dá certo de novo, está faltando poder, até chegar ao poder absoluto e ver que não funciona.

    Todo governo tem, infelizmente, essa inclinação. Você tem que chegar com 86 anos para saber que isso é um erro.

    Voltando ao rebaixamento, ele seria justificável?

    Se viesse, seria uma grande perturbação. As agências de rating são um oligopólio construído pelo Estado americano. Uma agência de controle de aplicação de fundos nos EUA decidiu que os fundos de pensão só podem aplicar seus recursos naquelas empresas, ou naqueles fundos que tenham grau de investimento. Foi isso que deu para as agências grande poder. Mas as agências sabem muito pouco. Tanto é verdade que, na crise de 2008, você viu o fracasso total delas.

    Mas não adianta brigar. Funciona desse jeito. Se esses projetos que estão no Congresso tivessem alguma chance de avançar, acho que não escaparíamos de um rebaixamento. Mas acho que a Dilma acertou com o Congresso que esses projetos não vão avançar.

    E se algum desses projetos avançar?

    A combinação do rebaixamento com o fim do estímulo monetário americano é aquilo que eu chamo de a tempestade perfeita. Seria realmente uma amolação do arco da velha.

    O importante é compreender o seguinte: as agências não valem absolutamente nada em matéria de prevenção de risco, só que o mercado acredita nelas.

    Por que o México está conseguindo implementar reformas importantes?

    Durante 70 anos, o PRI (Partido Revolucionário Institucional) destruiu o México. Um homem eleito pelo PRI agora, o [Enrique Peña] Nieto, foi eleito com um programa de desfazer toda a porcaria que o PRI tinha feito e está fazendo. Precisa de uma decisão que convença a sociedade de que aquilo é necessário.

    Por que esse ímpeto para avançar em reformas não ocorre no Brasil?

    Porque nós nunca decidimos fazer de verdade a coisa certa. Nós fizemos um brilhante plano de estabilização brilhante, que é o Real. O Plano Real é uma joia do ponto de vista da teoria econômica aplicada no combate à inflação
    .
    Mas nunca o governo terminou o Plano Real. Nunca o governo ousou pôr o equilíbrio fiscal que ele exigia. Nunca se fez isso, sempre se tergiversou, sempre se procurou a reeleição. O Plano Real nunca terminou.

    Esse é um negócio que nos acompanha por todos os últimos governos.

    RAIO-X
    ANTÔNIO DELFIM NETTO

    IDADE
    85 anos

    OCUPAÇÃO
    Professor emérito da USP

    FORMAÇÃO
    Economia (USP)

    CARREIRA
    Ministro da Fazenda (1967-1974), da Agricultura (1979) e do Planejamento (1979-1985). Dep. federal (1987-2007)

    Folhainvest

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024