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    Auditoria revela irregularidades em mercado de ouro de Dubai

    SIMON BOWERS
    DO "GUARDIAN"

    17/03/2014 17h53

    As barras ficavam empilhadas casualmente em uma sala dos fundos do movimentado "souk" (mercado) de ouro de Dubai e atraíram de imediato a atenção dos inspetores. Ansioso por impressionar os convidados, o gerente pegou uma delas.

    Depois de uma vida inteira no ramo, Osama Kaloti havia dado a entender que era capaz de avaliar a proveniência e pureza de cada barra simplesmente por sua aparência e peso. E a barra que ele tinha nas mãos era de prata.

    Ou assim parecia. Mas Kaloti insistia que o metal era ouro. Para provar o que afirmava, raspou o revestimento externo da barra para revelar o tesouro dourado embaixo. Havia seis barras na pilha, com peso total de talvez 75 quilos. Se fossem de ouro, aos preços atuais elas valeriam US$ 3,2 milhões; se fossem de prata, o valor seria de menos de US$ 30 mil.

    Os inspetores da Ernst & Young Dubai foram contratados para auditar o Kaloti Group, empresa da família de Osama Kaloti e maior refinadora de ouro de Dubai. O processo tinha por objetivo garantir aos clientes internacionais importantes que a empresa estava fazendo todo o possível para evitar operar com ouro oriundo de regiões em conflito.

    Processando cerca de 300 toneladas anuais do metal, o Kaloti Group alega responder por cerca de metade das operações de refino de ouro no mercado de Dubai. As autoridades regulatórias estimam que as transações com ouro tenham atingido os US$ 70 bilhões no emirado em 2012, 25% acima do ano anterior.

    "Dubai está emergindo como polo de comércio de ouro capaz de enfrentar Londres", disse Munir Kaloti, pai de Osama e fundador da empresa, ao "Middle East Economic Digest", em abril do ano passado. "Dubai hoje responde por cerca de 25% do comércio mundial de ouro, a cada ano. O principal desafio para nossa empresa é garantir que o ouro tenha fontes responsáveis... Nossas medidas de salvaguarda ficam acima do padrão mínimo estabelecido por associações setoriais e órgãos governamentais."

    Mas de volta ao souk, um mês antes, os inspetores da Ernst & Young mal conseguiam acreditar no que Osama estava lhes contando. De acordo com suas atas, "ele usou um scanner e mostrou que o conteúdo de ouro das barras era superior a 85% e que elas provinham de um fornecedor marroquino. Disse que era normal receber barras de ouro revestidas de prata, especialmente do Marrocos, devido aos limites que a alfândega marroquina impõe às exportações de ouro".

    Também surgiu a informação de que os fornecedores marroquinos haviam levado o carregamento de ouro ao Dubai pessoalmente e que haviam sido pagos em dinheiro pelas barras no escritório da Kaloti no souk. O embarque havia saído da África do Norte identificado incorretamente como prata, e foi aceito como ouro pela alfândega no aeroporto de Dubai. Parecia uma maracutaia de contrabando.

    Investigações posteriores identificaram cerca de quatro toneladas de ouro oculto sob revestimento de prata, que podem ter chegado ao Kaloti Group do mesmo modo, vindas de diversos fornecedores do Marrocos. Aos preços atuais, inferiores aos de 2012, essas quatro toneladas de ouro valem mais de US$ 170 milhões.

    Depois de derretidas, as barras terminariam por emergir da refinaria como ouro recém-cunhado, com pureza de 99,5% ou mais e destinado ao mercado internacional do metal, identificadas por um número de série e as palavras "Kaloti, Dubai".

    Depois da inspeção pela Ernst & Young, o Kaloti Group esperava poder alegar que suas barras de ouro haviam passado por verificação independente que atestasse não virem de áreas em conflito e terem sido obtidas de modo responsável. Mas os inspetores não demoraram a formar opinião muito diferente. Ficaram chocados com a admissão, pela refinaria, de que o ouro aceito por ela havia provavelmente sido contrabandeado. Essa seria apenas uma das falhas que identificaram, mas consideravam que bastaria para garantir que a refinaria não fosse aprovada na inspeção e que recebesse a pior avaliação possível da Ernst & Young para o período sob revisão, os sete meses finais de 2012: "Violação do protocolo de revisão —tolerância zero".

    SÉRIO

    Essa classificação é reservada aos mais sérios lapsos —como por exemplo sonegação de informações pelas refinarias, uso de meios antiéticos para influenciar os inspetores, aceitar ouro de áreas em conflito conhecendo sua origem ou aceitar ouro de fornecedores que a refinaria sabe terem utilizado documentação falsificada ou incorreta.

    Uma conclusão como essa teria resultado em as autoridades do Dubai privarem o Kaloti Group da certificação de que ele precisa para operar facilmente com clientes internacionais. O dano à reputação do Dubai como mercado internacional de ouro seria imenso.

    Quanto ao ouro aparentemente contrabandeado do Marrocos, os inspetores da Ernst & Young inicialmente registraram em relatórios confidenciais que havia constatado "informações incorretas e falsificação de documentos pelo fornecedor, com o conhecimento e aceitação [do Kaloti Group]".

    Havia outras sérias deficiências. Os registros do Kaloti Group mostravam mais de mil transações com clientes que chegavam da rua ao escritório da empresa no souk e vendiam ouro por pagamento em dinheiro, sem oferecer documentação. Um total de 2,4 toneladas do metal foram aceitas dessa maneira, e os registros da empresa simplesmente identificavam esses vendedores como "clientes físicos".

    A quantidade média de ouro recebida desses vendedores vindos da rua era de 2,25 quilo por pessoa, mas, em uma transação, 35 quilos de ouro —o peso médio de um menino de 10 anos no Reino Unido— foram comprados de uma pessoa que chegou da rua e cuja identidade não foi registrada. Hoje, essa quantidade de ouro valeria 850 mil libras.

    E essas transações em dinheiro eram apenas uma pequena parcela das transações do Kaloti Group que aconteciam sem passar pelo sistema bancário. "A equipe da Ernst & Young observou grande quantidade de ouro nos cofres da empresa", informam as minutas da visita dos inspetores ao escritório do Kaloti Group no souk. "A equipe do Kaloti explicou que cerca de 40% das transações da empresa, em termos de valor, eram executadas em dinheiro no escritório do souk de ouro". As constatações finais da Ernst & Young apontavam que as transações de ouro pagas em dinheiro pelo Kaloti Group haviam atingido os US$ 5,2 bilhões em 2012, ante US$ 6,6 bilhões em transações envolvendo transferências bancárias convencionais. Se o escritório funcionasse o ano inteiro, isso significaria uma média de US$ 14 milhões ao dia em pagamentos em dinheiro a vendedores.

    O Kaloti Group informou aos inspetores que clientes ocasionalmente preferiam pagamento em dinheiro porque as transferências bancárias envolviam uma tarifa de mil dirhams (163 libras).
    Mais tarde, a empresa acrescentou que as transações em dinheiro "são historicamente o modus operandi típico do cosmopolita mercado atacadista de ouro de Dubai".

    Uma vez mais, isso incomodou os inspetores da Ernst & Young. O Kaloti Group havia declarado seguir as diretrizes internacionais que recomendam que todas as empresas que negociam com ouro "evitem aquisições pagas em dinheiro, quando possível, e garantam que todas as aquisições pagas em dinheiro, quando inevitáveis, contem com documentação de apoio".

    Os inspetores também localizaram em outros lugares traços de transações do Kaloti Group com fornecedores do Sudão, país que no passado esteve vinculado à venda de ouro extraído de áreas em conflito. Em lugar de dedicar vigilância especial a essas transações, o pessoal do Kaloti se dispunha a pagar em dinheiro por ouro levado ao escritório em pessoa e originado de produtores artesanais e de pequena escala (conhecidos como ASM no jargão do setor).

    Os inspetores descobriram que o Kaloti Group não tinha um registro de licenças de mineração para os embarques, o que garantia ser impossível traçar o ouro até sua origem, em uma auditoria. Os ASM são operações de mineração de baixa tecnologia e com uso intensivo de mão de obra, altamente vulneráveis a extorsões por parte de grupos armados.

    Os inspetores da Ernst & Young registraram diligentemente todas as falhas. Menos de três meses depois de iniciado o trabalho, a lista havia se tornado tão preocupante que eles fizeram contato discretamente com as autoridades regulatórias, alertando o Centro Multicommodities de Dubai (DMCC) de que revelações embaraçosas estavam por surgir.

    A resposta os apanhou de surpresa. Um e-mail do DMCC questionou: "Gostaríamos de saber se, caso o período de revisão fosse alterado para janeiro a março de 2013, haveria diferença concreta que possa afetar positivamente a avaliação".

    Essa foi a primeira indicação, para algumas pessoas da Ernst & Young, de que as autoridades do Dubai poderiam estar dispostas a mudar suas regras caso o resultado poupasse incômodos aos protagonistas mais importantes do setor de ouro do emirado —uma inferência que o DMCC alega não ter fundamento.

    Um e-mail interno da Ernst & Young revelou preocupação com a possibilidade de que Amjad Rihan, o sócio da empresa que comandava a equipe de inspeção, "estivesse sendo pressionado pelas autoridades regulatórias, ansiosas por promover o setor de ouro do Dubai no cenário mundial".

    IRREALISTAS

    O e-mail acrescentava que "eles têm expectativas irrealistas sobre o respeito do setor às normas, que nós transmitimos a eles regularmente, e existe uma subcorrente de esforço da parte deles para usar a marca da Ernst & Young para sua vantagem, o que está sendo administrado, é claro".

    Em declaração ao "Guardian", as autoridades regulatórias do Dubai afirmam que "o DMCC refuta vigorosamente qualquer alegação de que tenha pressionado a Ernst & Young, de que tenha tentado influenciar ou interferir com o processo de revisão ou de que tenha abrandado o processo de revisão para favorecer qualquer refinador participante".

    Ao estabelecer o DMCC, 12 anos atrás, o soberano do Dubai, xeque Mohammed, disse que "a produção mundial de ouro é de 2,3 mil a 2,4 mil toneladas. Nosso principal objetivo é obter metade da produção mundial, nos próximos anos. Temos a vontade e a determinação necessárias".

    Embora as fortunas econômicas mais amplas do Dubai tenham sofrido um abalo em 2009, o DMCC prosperou, se beneficiando de uma alta no preço do ouro e da pesada demanda da Índia e China, os propulsores emergentes do crescimento mundial.

    Ao estilo típico de Dubai, no ano passado o presidente do DMCC, Ahmed bin Sulayem, celebrou o sucesso da organização anunciando que a agência regulatória havia encomendado a construção do Burj 2020, o mais alto edifício comercial do planeta, que será construído em Dubai para sediar a World Expo, dentro de seis anos.

    Enquanto isso, o Kaloti Group, maior grupo de refino de ouro do emirado, em dezembro iniciou a construção daquela que pretende ser a maior refinaria mundial de ouro, uma nova instalação de US$ 60 milhões com capacidade para refinar até 1,4 mil toneladas de ouro ao ano.

    "A construção de nossa nova refinaria é parte da estratégia geral da empresa para expandir sua capacidade a 2.000 toneladas", disse Munir Kaloti.

    No fim, o DMCC optou por não alterar o período de inspeção do Kaloti Group; em lugar disso, entre maio e junho do ano passado, as autoridades regulatórias promoveram outra mudança, menos conspícua, em suas regras.

    Removeram a recomendação de que o veredicto geral dos inspetores seja registrado em documentos públicos, ordenando, em lugar disso, que daqui por diante todas as referências desse tipo sejam confidenciais. No momento do anúncio da mudança, o DMCC argumentou, como continua a fazer, que as alterações nas regras haviam sido adotadas para "compatibilizar nossos padrões aos padrões mundialmente aceitos" —uma alegação confirmada pela consultoria londrina SGS em um relatório detalhado.

    Outras autoridades regulatórias de todo o planeta também estavam promovendo alterações em suas regras naquele momento, para assimilar os padrões internacionais adotados pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico).

    Mesmo assim, a mudança que o DMCC promoveu —e aquela não seria a última ocasião em que a entidade alteraria as regras— preocupou seriamente os sócios dirigentes da Ernst & Young Dubai, especialmente Rihan, que comandava a divisão envolvida na auditoria do Kaloti Group.

    Ele e outros importantes executivos da Ernst & Young Dubai contataram a sede mundial da auditoria, em Londres, solicitando conselhos urgentes sobre o melhor tratamento para as constatações desfavoráveis dos inspetores. "A questão dos minérios de regiões em conflito é tanto delicada quanto crítica para o nosso negócio em Dubai e, de fato, em toda a região", afirmava um e-mail de Juan Costa Climent, ex-ministro das Finanças da Espanha e diretor mundial da Ernst & Young para questões de sustentabilidade e mudança do clima. "Precisamos tomar uma posição urgentemente, e precisamos que a companhia mundial esteja plenamente ciente dos fatos e questões... lamento pressionar sobre o assunto, mas é uma questão séria e crítica".

    Passadas mais duas semanas, a questão havia chegado à atenção de Mark Otty, o diretor executivo da Ernst & Young para a Europa, Oriente Médio, Índia e África, em Londres, que montou um grupo de importantes dirigentes da empresa a fim de tratar da questão. Ele também recorreu ao escritório de advocacia Linklaters como consultoria externa. "Estamos considerando a questão com toda seriedade", escreveu Otty em um dos diversos e-mails em que trata do assunto. "Assumi a liderança em relação à nossa investigação do caso".

    Enquanto isso, em Dubai, se tornava cada vez mais claro que o Kaloti Group não via o problema. O grupo de refino começou a redigir um sumário oficial da inspeção pela Ernst & Young, documento que acreditava viria a ser o único relatório sobre o assunto que estaria disponível para o público. Não só o texto não fazia referência à conclusão geral dos inspetores como, seguindo as novas regras do DMCC, fazia escassa menção às muitas falhas identificadas pela equipe independente de inspetoria.

    Isso foi demais para a Ernst & Young, que respondeu indicando que não poderia assinar atestando a validade de um relatório tão diluído.

    Depois que o Kaloti Group recebeu instruções discretas do DMCC, porém, começou a cooperar mais com a Ernst & Young para encontrar uma formulação aceitável para as duas partes. O Kaloti Group contratou Jeff Rhodes, um dos mais experientes executivos do setor de ouro do Dubai e membro de comitês do DNCC, para tratar do assunto. A essa altura, Rihan, um profissional com 39 anos de experiência na Ernst & Young, havia se afastado do projeto, sobre o qual continuava a se sentir muito desconfortável.

    O trabalho avançou, sem ele, com os dois lados trocando rascunhos para o relatório, refinando o texto até que tanto os inspetores quanto o pessoal da refinaria chegasse a um acordo sobre um texto final que poderia ser publicado como sumário oficial da problemática inspeção.

    Algumas versões do texto vazaram, como anexos na troca de e-mails sobre o assunto, e mostram envolvimento ativo da Ernst & Young em recomendações sobre a forma que o Kaloti Group deveria adotar para divulgar os problemas publicamente.

    Em dado momento a auditoria recomendou revisões que removiam a menção a "barras de ouro revestidas de prata", substituindo a descrição por referência mais genérica a "um incidente no qual surgiram certas irregularidades de documentação". A fórmula foi rapidamente adotada pelo Kaloti Group. De uma penada, qualquer sugestão de contrabando foi substituída por uma frase mais anódina que apontava para algo mais parecido com um erro burocrático.

    Contatada pelo "Guardian", a Ernst & Young não foi capaz de responder a diversas perguntas detalhadas, devido aos seus deveres de confidencialidade para com o Kaloti Group, mas afirmou que "a Ernst & Young Dubai refuta inteiramente a sugestão de que tenhamos feito qualquer coisa que não trabalhar de modo altamente profissional, em nossa relação com o Kaloti".

    A empresa acrescentou que quaisquer deficiências encontradas haviam sido fielmente reportadas ao DMCC. O "Guardian", de sua parte, compreende que é comum para as autorias usar seu conhecimento técnico para aconselhar clientes sobre o fraseado apropriado para uso em relatórios oficiais.

    Em 8 de setembro do ano passado, o DMCC recebeu um relatório oficial cuja linguagem havia sido cuidadosamente polida e aprovada pela Ernst & Young e pelos três principais executivos do Kaloti Group.

    A expressão "violação do protocolo de revisão - tolerância zero" foi usada no texto que deveria ser publicamente divulgado, mas não havia indicação de que essa tinha sido a conclusão final dos inspetores.

    Colegas da Ernst & Young contaram a Rihan sobre um desfecho que encaravam como sucesso. Otty o aconselhou a ver as coisas pelo lado positivo. "A situação mudou dramaticamente... o mais importante é que temos agora uma equipe em Dubai que trabalhou com afinco para nos levar a um ponto em que tanto o cliente quanto a agência regulatória reportarão deficiências", ele afirmou por e-mail. "Com base nisso, sugiro que tenhamos conseguido tudo que você queria —e ainda mais". Joe Murphy, o sócio diretor da Ernst & Young Dubai, também sugeriu que Rihan não tinha mais motivo de preocupação. "Cada um desses clientes agora publicou um relatório de fiscalização que leva satisfatoriamente em conta os elementos insatisfatórios de revisão", ele afirmou em e-mail. "Podemos esperar agora que o DMCC publique o relatório de fiscalização... Não existem tensões ou preocupações quanto aos relatórios".

    Murphy talvez não soubesse, mas a verdade é que as tensões não haviam desaparecido. O Kaloti Group estava furioso.

    A companhia sentia ter sido apressada a apresentar sua prestação de contas regulatória, e havia compreendido que os controvertidos embarques recebidos do Marrocos seriam classificados como "irregulares, alto risco", mas em lugar disso foi informada de que a classificação seria "violação do protocolo de revisão - tolerância zero" apenas alguns dias antes do prazo limite para apresentação do texto.

    A despeito de estarem convictos de que a Ernst & Young estava errada, três importantes executivos do Kaloti Group assinaram o relatório —visto pela refinaria como incorreto— e autorizaram a auditoria a submetê-lo ao DMCC.

    O Kaloti Group diz tê-lo feito relutantemente e apenas para cumprir o prazo regulatório.

    De acordo com o DMCC, dúvidas quanto às constatações do relatório submetido pelo Kaloti Group foram apontadas ao órgão inicialmente pela Ernst & Young, a pedido da refinaria.

    Era incomum que uma empresa como a Ernst & Young questionasse documentos regulatórios que ela mesma preparou depois de eles terem sido submetidos, e a ação parecia duplamente estranha porque Otty e outros importantes dirigentes na sede da empresa em Londres haviam dedicado tempo considerável, anteriormente, para descobrir a melhor maneira de tratar as constatações quanto ao Marrocos, com ajuda dos advogados do Linklaters.

    A Ernst & Young Dubai havia concluído que as ações do Kaloti Group mereciam a classificação "violação do protocolo de revisão - tolerância zero". Mas agora aparentemente já não estavam tão certas.

    Em resposta, o DMCC contatou a Ernst & Young e ofereceu sua opinião sobre a avaliação dos inspetores. Isso levou a auditoria a reconsiderar suas posição e a retirar o relatório encaminhado em 8 de setembro.

    Um novo relatório foi apresentado um mês depois, desta vez com as controvertidas transações junto a fornecedores marroquinos classificadas como "alto risco, irregulares".

    O motivo exato para a mudança de classificação não está claro, mas documentos confidenciais demonstram que continua a ser incontestável que o Kaloti Group informou aos inspetores de que "ouro revestido de prata foi exportado como prata do Marrocos, mas declarado como ouro na alfândega do Dubai".

    Uma vez mais, a agência regulatória rejeita qualquer alegação de que tenha pressionado a Ernst & Young ou agido indevidamente de qualquer outra forma. A Ernst & Young refuta "inteiramente qualquer sugestão de que nosso trabalho tenha sido outra coisa que não altamente profissional".

    As circunstâncias incomuns nas quais o relatório regulatório foi retirado não são a última palavra sobre o caso. Menos de três semanas mais tarde, o DMCC alteraria suas regras sobre relatórios de inspeção uma vez mais, desta vez de forma a garantir que o segundo relatório de fiscalização do Kaloti Group, com a classificação das irregularidades atenuada, tampouco fosse a público.

    A decisão surpreendeu algumas pessoas na Ernst & Young. Com a passagem das semanas e sem a publicação do relatório que aguardavam, os membros da equipe de inspeção começaram a ficar cada vez mais intrigados por os relatórios não terem sido publicados. Àquela altura, eles estavam concluindo uma inspeção de acompanhamento para determinar se o Kaloti Group estava resolvendo os problemas apontados na primeira inspeção, e que as falhas identificadas anteriormente pela Ernst & Young não estivessem sendo repetidas.

    Como parte do processo, eles apontaram que não publicar o relatório de fiscalização deixaria o Kaloti Group exposto a novas críticas públicas. A orientação do DMCC requer que as refinarias "reportem publicamente... a fim de gerar confiança pública [quanto ao processo de inspeção]".

    Em memorandos internos, os inspetores da Ernst & Young escreveram que "a refinaria não publicou seu relatório... as revelações precisam ser feitas antes da divulgação de nosso relatório de pós-inspeção". Caso isso não acontecesse, acreditavam os inspetores da Ernst & Young, o Kaloti Group estaria sujeito a um novo incidente de questão regulatória de "alto risco, irregular".

    Mas eles não contavam que o DMCC se dispusesse a uma vez mais contornar suas regras de inspeção. Desta vez, sem anunciar as mudanças em seu site, a agência discretamente alterou os padrões para publicação de informações, introduzindo o novo conceito de "relatório consolidado de fiscalização".

    Isso remove qualquer obrigação de que as empresas de refino publiquem relatórios que apresentem conclusões embaraçosas "" desde que conduzam uma revisão adicional curta. A auditoria inicial e a revisão posterior devem, em seguida, ser resumidas em um único relatório para publicação.

    Essas discretas mudanças levaram a Ernst & Young a informar ao Kaloti Group que este não tinha mais a obrigação de publicar um relatório de fiscalização separado sobre a inspeção inicial. O DMCC consultou a Ernst & Young antes de introduzir a mudança em suas normas, e afirmou que a auditoria confirmou que uma medida como essa não comprometeria a integridade da revisão em curso e do processo de publicação.

    Em documentos confidenciais, a Ernst & Young apontou que as regras do DNCC haviam sido "emendadas" em novembro de 2013. Mas em documentos destinados ao consumo público, a empresa se mostrou mais circunspecta. Afirmou que havia avaliado o cumprimento das normas do DMCC pelo Kaloti Group "de acordo com as normas vigentes na data deste relatório". Em um e-mail interno, um inspetor da Ernst & Young reparou que não havia data e nem número de versão nas novas regras da agência regulatória.

    Quando, em dezembro passado "seis meses depois da data planejada" o Kaloti Group publicou pela primeira vez o sumário oficial de sua problemática inspeção pela Ernst & Young, não havia menções a essa mudança de última hora nas regras do DMCC. Também era difícil descobrir no texto, o único sumário disponível para o público quanto ao resultado da inspeção da Ernst & Young, os detalhes completos das falhas identificadas no Kaloti Group entre junho e dezembro de 2012.

    No relatório público consolidado, o Kaloti Group enfatiza que, ao final do período, "cumpria plenamente" os padrões do DMCC quando a fontes responsáveis para seu ouro. Não havia menção a "violação do protocolo de revisão - tolerância zero" ou mesmo a "irregularidades, alto risco" no texto. O relatório fazia menção passageira a passadas irregularidades, as definindo como "desvios".

    Quanto às transações com ouro aparentemente contrabandeado do Marrocos, o texto afirmava que "havia falta de documentação para identificar risco na cadeia de suprimentos, em um pequeno número de transações, ainda que estas respeitassem as normas da alfândega de Dubai para importações".

    Que o Kaloti Group compra ouro pagando em dinheiro como procedimento regular é algo que o texto afirma claramente, ainda que não haja indicações de que essas compras montam a bilhões de dólares. "Durante o período inicial de revisão, tivemos desvios... nos quais [o Kaloti] não identificou riscos quanto a transações pagas em dinheiro, que representam o modus operandi típico do mercado atacadista de Dubai".

    Não existe sugestão de que quaisquer das descrições no relatório do Kaloti Group, avaliado como "preciso" pela Ernst & Young, contrariam as normas regulatórias ou as práticas do setor. De qualquer forma, não importam quais tenham sido esses lapsos descritos de maneira tão elíptica, o relatório consolidado do Kaloti Group afirma que foram firmemente retificados.

    O Kaloti Group afirmou que "as constatações finais do relatório consolidado foram publicadas de acordo com os requisitos da agência regulatória e são compatíveis com as melhores práticas mundiais e com as normas setoriais para relatórios de fiscalização".

    Enquanto isso, depois de meses tentando persuadir colegas de primeiro escalão em Dubai e no escritório da Ernst & Young em Londres de que detalhes claros quanto às deficiências nas transações do Kaloti Group deveriam ser divulgados no relatório final, Rihan decidiu fornecer todos os detalhes da inspeção ao "Guardian".

    Ele estava cada vez mais isolado na Ernst & Young e executivos importantes da empresa vinham perdendo a paciência com suas incômodas intervenções. "Na opinião da empresa, uma posição satisfatória foi atingida no que tange ao envolvimento com o cliente e o DMCC", escreveu Murphy.

    "Respeitamos suas posições quanto à necessidade de que questões referentes a um cliente específico [Kaloti] sejam apresentadas, ao DMCC e de modo mais amplo, mas não concordamos com elas", escreveu um dos principais advogados da Ernst & Young em Londres, alegando que a posição de Rihan conflitava com a de "especialistas internos e externos".

    Quando advogados independentes a serviço de Rihan escreveram à Ernst & Young instando formalmente a companhia de auditoria a revelar em sua íntegra as constatações da inspeção, a resposta veio dos advogados do Linklaters, e foi áspera.

    "A posição é a de que a Ernst & Young Dubai concordou em executar certos trabalhos de fiscalização para clientes [entre os quais o Kaloti]. Nos termos desse contrato, a Ernst & Young Dubai tinha a obrigação, tanto contratual quanto em cumprimento das normas do regime de fiscalização sob o qual opera, de aplicar as diretrizes do DMCC em vigor a cada momento", a resposta afirma.

    "A Ernst & Young Dubai o fez, e entregou os relatórios requeridos aos seus clientes e ao DMCC, expondo as constatações a que chegou no curso do trabalho empreendido", o texto prossegue.

    "Portanto, a Ernst & Young Dubai cumpriu suas obrigações... O Sr. Rihan poderia preferir que as questões fossem tratadas de outro método, mas é uma decisão que não cabia a ele".

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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