Antônio Ermírio de Moraes, homem público brasileiro falecido no domingo, deixou uma herança que merece ser relembrada. Foi um dos maiores empresários brasileiros de seu século. Trabalhando a vida inteira na empresa da família, construiu prodígios.
O maior deles talvez seja a Companhia Brasileira de Alumínio, cuja direção recebeu do pai assim que voltou dos EUA formado como engenheiro metalúrgico, em 1949.
As condições do projeto eram boicote internacional de tecnologia, pois a metalurgia do alumínio era então considerada estratégica para grandes nações –e sofisticada demais para brasileiros; pouco capital (o disponível ele deveria arrancar de uma fábrica de fósforos e de uma oficina mecânica, afora algumas duplicatas duvidosas de outros negócios da família).
Com essas bases ele montou sua receita. A única oportunidade estratégica disponível era a possibilidade de aproveitar a energia elétrica do rio Juquiá. Não era exatamente um grande presente: nem mapas do vale existiam. Para deslindar as possibilidades, montou ele mesmo em mulas e foi abrindo picadas pelo mato, com topógrafos.
As questões de recursos humanos ele resolveu transformando office-boys em técnicos, analfabetos em office-boys. Arrancou tecnologia onde podia (a Itália derrotada na guerra) e fez uma fábrica. Assim que a inaugurou, descobriu que o todo era antieconômico. Demoliu tudo e refez do zero.
No fim, sua equação estava mais que certa: o modelo mundial da produção de alumínio é hoje o da alocação da usina ao lado das fontes de energia –e a fábrica de Votorantim segue sendo uma das mais produtivas do mundo.
Com um pouco mais de capital ele replicou o processo do esforço estrênuo para construir uma usina de níquel, depois de aço e outros metais –e para transformar a empresa da família numa das grandes do mundo.
A essa altura, tive contato pessoal com Antônio Ermírio de Moraes. A distinção é necessária porque o contato aconteceu num ponto específico de sua organização de vida. Ele separava suas horas de trabalho entre as 40 semanais que dedicava à empresa e as 12 de trabalho voluntário para a Beneficência Portuguesa, cuja história me contratou para escrever.
Distinguia os horários com clareza. As reuniões do trabalho voluntário precediam as da atividade empresarial. Como iniciava a jornada para a Votorantim às 6h30, marcava as conversas sobre o hospital às 5h45, pontualmente.
Tinha todos os números do hospital (e todos de uma centena de empresas do grupo empresarial) na cabeça –e isso incluía detalhes como o número de salas de cirurgia ou refeições servidas a cada dia num dos mais avançados centros de saúde do Brasil.
Nessas condições testemunhei algo do homem. Sim, vivia uma vida espartana. O pouco tempo restante da semana passava em casa, com dona Regina e seus nove filhos. Nunca viu sentido em gastar dinheiro de maneira ostensiva; usava mesmo o terno do noivado cinco décadas depois; guiava o próprio carro; jamais retirou dividendos da empresa. Tratava todos, do doente pobre na fila ao presidente da República, exatamente do mesmo modo. Trabalhava a cada dia sonhando com um país melhor. Aprendi lições de vida e agradeço pela oportunidade.
JORGE CALDEIRA, 58, é escritor e editor, autor de "Mauá, Empresário do Império" (Companhia das Letras) e "História do Brasil com Empreendedores" (Mameluco)