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    Crítica: Autor aponta traço medieval na geografia do dinheiro atual

    ELEONORA DE LUCENA
    DE SÃO PAULO

    29/11/2014 02h00

    "A política pública é cada vez mais pressionada a se adaptar ao que os mercados desejam, quer isso coincida ou não com as preferências das autoridades eleitas."

    "A autoridade monetária dos governos está sendo cada vez mais desafiada por uma ampla série de poderosas forças do mercado. Em um mundo de uso transnacional acelerado, nenhum governo pode se permitir ignorar as preferências dos agentes do mercado."

    "A menos que os governos estejam dispostos a tolerar virtualmente a instabilidade ilimitada da moeda, eles precisam moldar suas políticas para evitar provocar movimentos de capital maciços ou repentinos."

    As afirmações são do economista Benjamin J. Cohen, 77, e estão em "A Geografia do Dinheiro", que será lançado neste ano no Brasil. O livro é de 1998, mas muitas de suas constatações permanecem como pontos de discussão. Professor de política econômica internacional da Universidade da Califórnia em Santa Barbara, ele se especializou no estudo das moedas.

    Eduardo Anizelli/Folhapress
    Benjamin J. Cohen, professor de política econômica da Universidade da Califórnia em Santa Barbara
    Benjamin J. Cohen, professor de política econômica da Universidade da Califórnia em Santa Barbara

    Nessa obra, Cohen observa que o avanço da globalização provocou a existência de "moedas desvinculadas de territórios", derrubando o conceito em vigor desde meados do século 19. Naquele tempo, a afirmação de poder de Estados nacionais levou ao modelo em que cada país deveria ter sua moeda.

    Para ele, a dinâmica está se esfarelando. "As moedas estão cada vez mais desterritorializadas, não ligadas ao Estado, e intricadamente vinculadas em uma hierarquia complexa de diferentes relacionamentos de autoridade."

    Percorrendo a história das moedas, ele compara esse desenho com o que ocorria no mundo na Idade Média e até o século 19, quando moedas circulavam "em toda parte, sem considerar fronteiras".

    "A geografia monetária refletia e replicava a difusa e permeável ordem política que associamos com a era pré-moderna –o mundo heterônimo da Idade Média e antes dela. Até o século 19, as moedas eram efetivamente desterritorializadas e a competição internacional era a regra, não a exceção", defende.

    Para Cohen, como nos séculos anteriores à era do dinheiro territorial, também "a nova soberania tem se tornado cada vez mais contestada; as noções de autoridade e legitimidade cresceram de uma maneira tão sutilmente intrincada e ambígua quanto sempre foram durante a Idade Média", afirma.

    Não é uma tese pacífica. Cohen escreve no auge do discurso da globalização e do neoliberalismo. As crises das empresas pontocom e, mais importante, a hecatombe iniciada em 2008 ainda não estavam no radar das análises econômicas predominantes.

    Expondo a audácia dos mercados desregulados, o economista norte-americano constrói seu raciocínio deixando pouco espaço para críticas e desafios à ordem que, até então, navegava de forma magnânima. Nesse afã pró-globalização, diz que as políticas que fazem concessões importantes no sentido do mercado são muito mais bem-sucedidas.

    VISÃO HISTÓRICA

    O problema é que o seu exemplo é a Argentina do tempo em que o governo indexou o peso ao dólar. Segundo ele, o plano de conversibilidade do então presidente Carlos Menem (1989-1999) "tornou-se uma fonte de orgulho nacional". Pode até ter sido fato no início.

    Mas como esquecer a ruína das famílias, os protestos furiosos que tomaram conta do país por anos, a derrubada de sucessivos governos? Até hoje, com a crise dos fundos abutres, a Argentina ainda encara a herança daqueles tempos de dolarização (projeto que chegou a ser defendido no Brasil).

    Preocupado com modelos talvez estáticos em demasia, o autor não se aprofunda na análise do poder crucial do dólar (fabricado também pela força militar, além da econômica e política). Quando da elaboração do texto, o euro ainda era uma ideia. A China é ignorada na obra.

    Pode ser fácil avaliar, com os desdobramentos de hoje, uma obra do final dos 1990. Sim, o trabalho tem falhas e é discutível. Mesmo assim, vale como reflexão para os dias que correm.

    Por exemplo, quando o livro levanta, ainda que rapidamente, o problema do deficit de democracia criado pelos mercados que conseguem impor seus interesses a governos, distorcendo o poder do voto democrático.

    "A globalização econômica pode ameaçar uma crise de legitimidade na regra política. Ninguém que acredite na equidade ou na responsabilidade política deve se sentir contente com tal estrutura de autoridade [dos mercados]." Fica o alerta.

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    A GEOGRAFIA DO DINHEIRO
    AUTOR Benjamin J. Cohen
    EDITORA Unesp
    AVALIAÇÃO Regular

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