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    Meu batismo na forma única de jornalismo inaugurado pela 'New Yorker'

    ZECA CAMARGO
    COLUNISTA DA FOLHA

    22/02/2015 07h32

    O telefone tocou pouco depois da meia-noite - e eu já sabia quem era. Ele nunca ligava antes de o dia virar. A voz - inconfundível desde os tempos em que eu era um simples revisor do seus textos, com a tarefa inglória de sugerir pequenas alterações práticas (nunca de estilo ou de informação) ao original - era sempre convidativa, mas naquela madrugava tinha algo de inquisitório: "Você leu a última 'New Yorker'?", me perguntou Paulo Francis. E foi por causa deste telefonema que eu assinei pela primeira vez a revista.

    Eu morava em Nova York em 1989 - quando a revista somava tenros 64 anos. Era correspondente "júnior" desta "Folha", uma vez que Francis era o "sênior". Como ele fez com todos os correspondentes da minha geração, fui imediatamente adotado por ele - e por sua viúva, Sônia Nolasco. Uma adoção afetiva, mas também intelectual - e aquela ligação no meio da noite era mais uma prova disso.

    O artigo que Francis me perguntava se eu havia lido era assinado por Janet Malcolm e tornou-se um clássico do jornalismo mesmo antes de ser publicado num formato de livro. Chamava-se "O jornalista e o assassino" - e examinava a estranha relação entre um repórter e o objeto de sua reportagem: um assassino convicto que acabou por processar o autor que escreveu sobre ele.

    Eu não tinha lido aquela "New Yorker". Até então, eu era leitor esporádico da revista, que comprava mais por uma bela capa - ou um eventual artigo sobre cinema ou música - do que pelas suas reportagens de fôlego. Francis recebeu minha negativa com uma decepção contida, mas logo tratou de reparar a minha falta. "Vou ler o artigo para você", disse ele sem nenhum tom de pergunta. Era algo imperativo: ele ia ler e eu iria escutar!

    Mais de duas horas depois, absolutamente fascinado pelo que tinha ouvido - Francis tinha lido, claro, no original em inglês, com sua entonação peculiar -, ouvi a primeira interrupção: "Gostou?". Respondi imediatamente que sim, e ele então disse para eu me acomodar que ele leria então a segunda parte do artigo. Foi uma das madrugadas mais fascinantes da minha formação como jornalista.

    Este artigo (lançado no Brasil pela Companhia das Letras) foi meu batismo nessa forma tão única de jornalismo que a "New Yorker inaugurou há 90 anos, sob o comando - e a tutela - de Harold Ross. Preciso, cheio de detalhes, inspirador, sedutor, inquisitório, perspicaz, eventualmente bem-humorado, e acima de tudo inteligente. Resumindo em um só elogio, um texto bem-escrito.

    Desde então, não me lembro se passei uma semana sequer sem a companhia da "New Yorker". Olhando para seu 90 anos, comemorados da última edição, sou relativamente novato nessa leitura - e talvez, como o próprio Francis diria, eu não tenha pego a "época de ouro" da revista. Mas, como Woody Allen nos ensina em "Meia-noite em Paris", olhar para um passado procurando algo mais interessante que nosso presente é um exercício não apenas frustrante como fútil. Esses anos que acompanhei então religiosamente a revista, me trouxeram prazeres tão grandes - ou ainda maiores - do que os que descobri com Janet Malcolm em 89.

    Ela mesma me deixaria totalmente hipnotizado com outras reportagens - por exemplo, uma outra investigação sobre um crime, também lançada no Brasil, com o título "Anatomia de um julgamento - Ifigênia em Forest Hill" (Companhia das Letras). Mas para citar outros favoritos, tenho que lembrar aqui do artigo mais incrível que já li naquelas páginas: "Random family" (ou "Uma família qualquer"), assinado pela jornalista Adrian Nicole LeBlanc.

    Este era um trecho de um livro lançado em 2003 (que infelizmente nunca ganhou uma tradução para o português) que, apesar de não ter sido escrito especificamente para a revista, só poderia ter sido publicado em primeira mão por ela. Trata-se de uma reportagem desenvolvida ao longo de mais de dez anos com duas mulheres de uma família com problemas no Bronx nova-iorquino. O nível de intimidade é impressionante, bem como a clareza com que essas vidas - tão distantes dos leitores da própria "New Yorker" - são expostas.

    Também foi na "New Yorker" que eu li o melhor artigo já escrito sobre o impeachment de Fernando Collor de Mello: "Obsessed in Rio", escrito por Alma Guillermoprieto. Publicado na edição de 16 de agosto de 1993, o texto entrelaça de forma brilhante e original a nossa crise política da época com um crime que parou o Brasil no início dos anos 90: o assassinato de Daniela Perez. O resultado é um retrato bizarro da nossa cultura e como nós, de uma maneira excepcional, temos a capacidade de misturar realidade e ficção.

    Esse texto sobre o Brasil é típico também da "New Yorker" no sentido em que ele joga uma luz sobre um assunto complicado, cuja cobertura cotidiana da mídia muitas vezes mais confunde do que elucida. Só fui entender a recente crise financeira da Islândia quando li o artigo de Ian Parker, "Lost" (publicado em 9 de março de 2009). E mesmo aquele "nó cego" que foi a catástrofe imobiliária americana dos últimos anos, só fez sentido para mim depois de ler "The Ponzi state", de George Pecker (9 de fevereiro de 2009). Para dar um exemplo mais recente, se você também faz parte do grupo de espectadores indignado com "American sniper", o último filme de Clint Eastwood, recomendo aqui a leitura de "In the crosshairs", de Nicholas Schmidle (3 de junho de 2013).

    Mas eu estaria blefando se dissesse que abracei a "New Yorker" nesses últimos anos apenas para poder ler esses artigos de profundidade. Eu gosto mesmo é dos cartoons! Ou melhor, é pelos perfis de música pop de Sasha Frere-Jones! Quer dizer, é pelas descobertas literárias que James Wood me proporciona. Ou talvez pela acessível erudição dos textos do crítico de arte Peter Schjeldahl. Espera, honestamente, eu só leio a "New Yorker" para ter o prazer de gargalhar com os primeiros parágrafos - e todos os seguintes - das críticas de filmes de Anthony Lane...

    Eu mesmo já nem sei se é só por um motivo que eu tenho a "New Yorker" como uma referência tão forte. Mas sei que tenho que agradecer a Paulo Francis pelo seu longo telefonema naquela madrugada de 1989. Com medo de ser pego de surpresa novamente, assinei no dia seguinte a revista - que desde aqueles tempos até hoje é a melhor coleção de bons textos que alguém já conseguiu juntar. E seguirá sendo pelos próximos 90 anos - seja num tablet como o que escrevo este texto ou num suporte que a tecnologia ainda vai criar até 2105...

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