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    Crítica: Autor premiado decepciona ao descrever cotidiano do FMI

    ELEONORA DE LUCENA
    DE SÃO PAULO

    21/03/2015 02h00

    O tema da festa era o Expresso do Oriente. No salão, os convivas podiam degustar comidinhas das cidades relacionadas com o trajeto do trem: Paris, Estrasburgo, Munique, Viena, Budapeste, Istambul. Na face mais extravagante do evento, uma montanha de sorvete imitava o perfil dos Alpes.

    O regabofe foi oferecido por um banco aos participantes da reunião anual do FMI, no início dos anos 1980, nos salões da galeria de arte Corcoran, em Washington. O anfitrião depois quebrou e reforçou a piada entre os frequentadores dessas reuniões: instituições com problemas dão festas extravagantes e caras. Para checar a saúde financeira de um grupo, basta dar uma passada nas festas que promove.

    A historinha está em "Money and Tough Love" [Dinheiro e amor autoritário, em tradução livre], de Liaquad Ahamed, que faz um recorte sobre o cotidiano do Fundo Monetário Internacional (FMI). Durante algumas semanas, em 2012, o autor acompanhou algumas reuniões da entidade, trafegando entre EUA, Irlanda, Japão e Moçambique.

    Ahamed mistura um relato impressionista dos encontros com algumas pinceladas da história da instituição. O livro faz parte de um projeto da organização "Writers in Residence", que tem entre seus organizadores Alain de Botton, o polêmico autor de autoajuda (ou de filosofia do cotidiano, segundo seus admiradores).

    A ideia aqui é tratar de rotinas de lugares -um navio norte-americano ou uma corporação como a Alcatel-Lucent- com olhar de um escritor renomado. No caso do FMI, o escolhido foi ganhador do Prêmio Pulitzer em 2010 com "Os Donos do Dinheiro", livro sobre a crise
    de 1929.

    O resultado do trabalho de Ahamed, porém, decepciona. Próximo de uma peça promocional, o livro tem o objetivo de mostrar a multiplicidade das tarefas que envolvem o Fundo. Como uma "reportagem" sob encomenda, o autor descreve superficialmente as atividades e incorpora o pensamento econômico que norteia a organização.

    Proliferam comparações de receitas econômicas com procedimentos médicos: remédios amargos, austeridade, cortes de gastos, promessas de "cura" depois de apertos. Há países bons e ruins; os que fazem a lição de casa e os que gastam demais.

    Até que surgem os bons "médicos" do Fundo, muitas vezes incompreendidos, para tentar salvar os pacientes. Nem sempre acertam. Como numa boa biografia autorizada, Ahamed cita erros de avaliação do FMI e fala da polêmica sobre a eficácia da austeridade radical. Nada, porém, ganha profundidade.

    Numa narrativa vaporosa, o autor tenta entender a Irlanda ouvindo um motorista de táxi que culpa as mulheres que forçaram seus maridos a comprar casas luxuosas em tempos de bonança. Afinal, a culpa da crise recai sobre gastadores compulsivos e suas mulheres em busca de ostentação.

    Sim, bancos negligentes também tiveram parte na bolha, diz ele. Mas a coisa se resume, na sua análise, ao inverso do axioma de Liev Tolstói na abertura de "Anna Karenina": As famílias felizes são parecidas; cada família infeliz é infeliz da sua própria maneira.

    Para o autor, países "infelizes" (como a Irlanda) são iguais (seriam relapsos?). Países "felizes" têm diferentes formas de sucesso (via tecnologia, força de trabalho barata). Como se não houvesse relação de poder e dominação entre países; como se o sucesso de uns não dependesse da exploração de outros.

    Com seu raciocínio falacioso, o autor coloca o Brasil na lista dos "felizes" -por causa das commodities. Pouco citado, o país aparece numa observação sobre o excessivo número de participantes nas reuniões anuais do Fundo. Em 2012 compareceram 73 brasileiros -"uma estranha anomalia", afirma. A delegação da Índia, em comparação, tinha apenas 13 pessoas.

    HISTÓRIAS

    O sobrevoo oficioso do livro não deixa de trazer algumas curiosidades sobre a história do FMI. Como uma rocambolesca trama de espionagem nos primórdios da Guerra Fria, que resultou na indicação de um europeu para a chefia da instituição.

    Ahamed mostra como, a partir dos anos 1970, as reuniões do Fundo começaram a ser tomadas por banqueiros, que aproveitavam os encontros para buscar clientes na América do Sul e no Sudeste Asiático. Lembra que foi por essa época que o FMI passou a ser visto como associado aos interesses dos grandes bancos internacionais.

    E aconteciam as tais festas. Na descrição econômica do autor, elas parecem, com suas montanhas de sorvete, ter sabor até infantil. Principalmente se comparadas às orgias de Dominique Strauss-Kahn, que comandou o FMI no início desta década. Aliás, o escândalo sexual do ex-chefe é ignorado na obra.

    É compreensível. Afinal, esse é só um livro de marketing. Daqueles que, com edições de luxo, descansam em salas de espera.

    "MONEY AND TOUGH LOVE"
    AUTOR Liaquad Ahamed
    EDITORA Visual Editions
    QUANTO R$ 96 na Amazon (208 págs.)
    AVALIAÇÃO Ruim

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