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    Jornalismo aprofundado tem mercado, diz editor do 'Washington Post'

    RAUL JUSTE LORES
    DE WASHINGTON

    02/05/2015 19h49

    Desde que o bilionário Jeff Bezos, criador e dono da Amazon, comprou o "Washington Post", no final de 2013, Marty Baron, 60, tornou-se um dos editores mais invejados (e acompanhados) do mundo. Apenas no último ano, Baron contratou 100 repórteres e 40 engenheiros para modernizar a redação de 680 jornalistas e viu a audiência na internet crescer 60% (a 50 milhões de visitantes únicos/mês).

    Em fevereiro, o jornal foi considerado a empresa "mais inovadora da mídia" americana pela revista "Fast Company". Na última segunda, ainda ganhou mais um Pulitzer, o maior prêmio do jornalismo do país.

    Com quase 40 anos de carreira, Baron diz que há um "enorme mercado" para jornalismo sério e aprofundado, diz que produzir histórias "frívolas" para aumentar a audiência na internet "destruiria a identidade do jornal e alienaria nosso leitor de sempre" e que não "precisa ser o Buzzfeed". Mas que só 2% dos leitores chegam ao final de cada texto do jornal.

    Ele recebeu a Folha em seu escritório envidraçado no centro da capital americana.

    David L. Ryan/Boston Globe
    Marty Baron, editor do "Washington Post", jornal comprado pelo dono da Amazon, Jeff Bezos
    Marty Baron, editor do "Washington Post", jornal comprado pelo dono da Amazon, Jeff Bezos

    *

    Folha - O que mudou desde que Bezos comprou o jornal?
    Marty Baron - Bezos trouxe perguntas sobre como fazemos as coisas, estratégias, processos, que não eram questionados. Ele trouxe ideias em várias áreas, nós tínhamos as nossas e ele foi muito receptivo. E trouxe capital, o que é muito importante, nessa transição complicada do impresso para o digital. Precisamos fazer investimentos no futuro e experimentos digitais custam dinheiro.

    Que ideias Bezos apresentou?

    Bezos nos permite um tempo para ver se as coisas funcionam. Para decolarmos, não para pousarmos. Ele tem uma visão diferente para o jornal. Nos últimos anos, estávamos focando em Washington e na região metropolitana, estreitando nossas ambições. Desde que Bezos comprou, em outubro de 2013, ele quer expandir essa visão. Ele quer que sejamos um grande ator nacional e talvez um ator internacional no futuro.

    O aplicativo do "Washington Post" já vem instalado no Kindle Fire. Mais parcerias com a Amazon estão por vir?

    Não somos parte da Amazon. O jornal é um investimento pessoal de Bezos. Por outro lado, o fato de ele estar por dentro da Amazon traz muitas oportunidades. Mas se a Amazon não gostasse do nosso aplicativo, não teriam colocado no seu produto. Foi um benefício mútuo. Mas nosso futuro não está ligado na relação com a Amazon.

    Bezos acha que o jornal pode dar dinheiro? Muita gente acha que ele comprou pelo prestígio.

    Ele disse no início que tinha três pontos a pensar na aquisição. O primeiro era a importância da instituição. O segundo era se ele poderia ser otimista e concluiu que sim. Se não fosse, ele sentiria muito por nós, mas não se juntaria. E, três, se ele teria algo a contribuir, a oferecer. Dado seu conhecimento de internet, ele achou que sim. Bezos não estava vindo com uma poção mágica. Explicitamente ele disse não ter uma. Mas ainda não achamos a resposta absoluta em como fazer dinheiro.

    A Amazon mudou todo o ambiente do varejo, mas levou anos e anos para fazer sucesso. Houve várias previsões de que ele fracassaria. Bezos teve alguns tropeços lá. Ele só é dono do jornal há um ano e meio. Se formos espertos e tivermos sorte, seremos bem-sucedidos também.

    O sr. já falou que há um investimento enorme em medir o comportamento do leitor digital do "Washington Post", do que ele lê, do que ele ignora, de quanto tempo gasta por reportagem. Qual foi a maior surpresa?

    Vários clichês foram confirmados. A porcentagem de quem lê um texto até o final é muito menor do que a gente pensa. Uma típica reportagem é lida até o final por 1%, 2% dos leitores. Se você tem um grande fecho no final do seu texto, uma maravilhosa última linha, não digo que você não deva escrevê-la bem, mas pouquíssima gente vai ler.

    Mas há dois lados da moeda. Várias reportagens longas, bem-feitas, investimentos para nós, estão entre as mais lidas. Há um enorme número de gente que gasta muito tempo em narrativas aprofundadas. Não é verdade que texto longo afaste leitor.

    Assuntos popularescos que fazem barulho na internet espantam o leitor tradicional? Ou assuntos sérios têm menos audiência mesmo?

    Há um enorme mercado para assuntos sérios. Mas não é porque sejam sérios, que precisem ser chatos. Na nossa profissão, se a história parecer interessante demais, tem gente que acha que está sacrificando a seriedade. Não é contraditório. Contar uma história séria de forma envolvente e entretida é um enorme desafio. Essas são as mais lidas.

    Não há a pressão de se competir com o "Buzzfeed" [site famoso por criar listas]?

    Não queremos só histórias frívolas. Seria destrutivo com nossa marca, com nossa identidade. Não queremos ser o "Buzzfeed", nem somos. Eles fazem coisas interessantes, usam técnicas e dados que acompanhamos, escrevem títulos e manchetes de um jeito muito interessante. Não precisamos ser o "Buzzfeed", ele já existe. Não temos equipe para isso e estaríamos alienando o leitor de sempre.

    Além da tecnologia, o que pode melhorar no jornalismo e na maneira como as histórias são contadas?

    A narrativa mudou muito com a interatividade. O mais interessante é a integração das ferramentas em um único texto, nos lugares apropriados, dar o contexto. Se você está no meio de uma reportagem e se fala da gafe de um político ou da violência policial, e você tem o vídeo que alguém fez na hora, você pode mostrar ali, na hora. Coloque o gráfico ali, a cópia do documento para quem quiser se aprofundar. Não separado, em outro lugar, como acontecia muito no passado. Tem que estar tudo bem trançado. É para isso que investimos tanto em tecnologia.

    O "Washington Post" tem 47 engenheiros trabalhando na redação com os jornalistas e o sr. chamam essa relação de "simbiótica". Como funciona?

    Eles estão na nossa redação, se sentam lado a lado com os jornalistas. Estão na editoria de Política, no time de infográficos, por todas as partes. Contar uma história hoje acontece em um ambiente digital. Se você quer tirar o máximo de proveito, eles precisam estar por perto, você precisa de engenheiros que saibam programar, fazer apresentações complicadas, interativas. O repórter sabe apurar, escrever, mas não programar. A relação simbiótica de jornalistas e engenheiros é fundamental.

    Eles não têm experiência com mídia, muitos aprendem aqui, mas têm interesse em trabalhar conosco.

    A soma da publicidade e dos assinantes digitais bastará para pagar os custos dessa operação tão cara?

    Sempre haverá demanda por notícias, pelo trabalho que fazemos. Não tenho a resposta de como fazer dinheiro agora, sinto muito (ri). A receita do impresso é dominante ainda, mas é declinante, o número de leitores declina, não será uma queda gradual, será uma queda acelerada, até cair de vez. Fazer o impresso e o digital ao mesmo tempo é um desafio.

    Ao mesmo tempo, temos que investir no nosso futuro, ter as capacidades digitais que assegurem nosso sucesso nesse ambiente. Se fôssemos apenas digital, as receitas e os custos seriam menores. Não ter que imprimir, ter gráficas, papel, caminhões de entrega levando para as casas, a produção teria menos gente. Até menos design que no papel, não se importar com a geometria dos anúncios na página, dos títulos que precisam caber naquela página.

    Mas ainda não sabemos se a receita será suficiente para pagar as contas da equipe que sobra. Também não sabemos o tipo de publicidade de hoje será o tipo que será no futuro. A publicidade está mudando também. Também há um esforço em inovar na arena publicitária digital.

    O "New York Times" faz conferências pelo mundo, viagens com leitores, edições em outros idiomas, como a "The Economist" vai fazer na China e na Índia. O "Washington Post" também vai entrar nesses negócios, além de já fazer conferências?

    Eu torço que você me ajude a organizar a viagem ao Brasil (ri), nunca estive lá e quero muito ir. Falo espanhol e já estive na Argentina, Chile, Guatemala, Colômbia, Venezuela, Costa Rica, falta o Brasil. Nem sei se essas viagens do "New York Times" são lucrativas e ainda não temos ideia de fazer edições em outros idiomas. Ainda é cedo. Queremos crescer nos EUA primeiro.

    Com esses investimentos todos, como o conteúdo está mudando?

    Olha, falei muito de negócios com você, preciso estar a par disso, mas a minha paixão, o que me mantém nesse negócio é o jornalismo e a reportagem, e temos muito do que nos orgulhar nesses últimos tempos. O Pulitzer deste ano foi para uma reportagem nossa sobre as falhas do Serviço Secreto e, como o nome diz, é secreto, e nossa repórter conseguiu desvendá-lo.

    As revelações do Snowden sobre a NSA foram revolucionárias. Temos feito reportagens sobre pobreza e dependência de drogas, de saúde mental, temas ainda evitados na mídia e na sociedade. No "Boston Globe", conseguimos mostrar como uma das organizações mais poderosas do mundo, a Igreja católica, encobria e protegia padres acusados de pedofilia.

    O que eu gosto é do jornalismo que explica o mundo, que explica assuntos com nuances, mais profundos. Tudo que puder para fugir de slogans de políticos, de comentaristas com frases feitas.

    O que mudou na relação entre o governo Obama e o "Washington Post" após as reportagens com as revelações de Edward Snowden?

    Decidimos publicar porque tinha interesse público e se tratava de política pública. Demos a oportunidade do governo de falar e de inclusive defender a não publicação, mas jamais deixaríamos de publicar porque o governo pediu. Às vezes concordamos que um ou outro detalhe pode colocar algum agente em risco, mas nunca demos para trás em qualquer reportagem.

    A publicação nos colocou em posição de conflito com o governo, o que é normal em um país de imprensa livre. Não nos vemos como inimigo do governo, nossa missão é servir o público. O governo nem sempre concorda com o nosso julgamento. Mas forçamos o governo a se explicar, abriu-se um importante debate e fizemos um serviço para cidadãos daqui e do mundo.

    O governo americano tem tentado censurar mais a imprensa?

    Não diria censurar, mas as capacidades e os poderes do governo são maiores que nunca, nessas áreas de vigilância e espionagem, por causa da tecnologia. Eles podem monitorar comunicações de uma forma que seria impossível no passado. Temos a Lei de Acesso à Informação (FOIA, na sigla em inglês), que dá direito à imprensa e ao público de requerer informação do governo, mas frequentemente ele é relutante em passar a informação, resiste e leva um tempo enorme para divulgar o que é pedido.

    O governo Obama também é bastante agressivo em investigar vazamentos, o que acaba afugentando muita gente do governo que falava com a imprensa antes. Autoridades hoje são mais relutantes em conversar com jornalistas com medo de se tornarem objetos de investigação.

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