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    Como a indústria da cerveja produziu o homem mais rico do Brasil

    ANDREW HILL
    SCHEHERAZADE DANESHKU
    DO 'FINANCIAL TIMES'

    18/06/2015 17h30

    Um litro de cerveja contém muita água, mas ainda mais dinheiro. A segunda parte dessa observação colocou Jorge Paulo Lemann caminho que o levou a se tornar um dos homens mais ricos do mundo, com fortuna de US$ 25 bilhões, de acordo com a revista "Forbes".

    "Eu estava estudando a América Latina, e quem era o cara mais rico da Venezuela? Um fabricante de cerveja. O cara mais rico da Colômbia? Um fabricante de cerveja. O cara mais rico da Argentina? Um fabricante de cerveja", disse em 1989 o financista nascido no Rio de janeiro. Foi então que ele e seus sócios brasileiros - Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira - adquiriram o controle da Brahma, uma fabricante de cerveja, ainda que pouco soubessem sobre o setor.

    Passadas duas décadas, Lemann de fato se tornou "o cara mais rico" do Brasil, graças aos seus 12,5% de participação na AB InBev, a líder mundial da cerveja em que a Brahma se tornou. O trio brasileiro comandou a transformação da Brahma em uma companhia com 21% de participação no mercado mundial de cerveja, por meio de uma série de aquisições progressivamente mais ambiciosas que culminou com a tomada de controle da Anheuser-Busch, controladora da marca Budweiser, por US$ 52 bilhões.

    Eles chegaram lá seguindo, de maneira disciplinada e tenaz, o seu mantra de "sonhar grande", acompanhado por um estilo de gestão exigente e enérgico, descrito na primeira parte desta série de artigos. Mas para onde ir depois que "sonhar grande" se torna realidade e você já se tornou o maior?

    É esse precisamente o desafio que a AB InBev enfrenta hoje. Com valor de mercado de US$ 170 bilhões, ela é maior que o HSBC, o Bank of America e a Disney. Apenas uma megafusão poderia fazer diferença para a companhia em termos de escala. Os alvos mais frequentes de especulação todos custam US$ 90 bilhões ou mais (ver box abaixo). Mas quanto maior a transação, tanto maior o risco de execução.

    A alternativa é crescer organicamente, a despeito do fato de que os consumidores não estão comprando mais cerveja, no maduro mercado dos Estados Unidos, o maior da AB InBev para esse produto. A Budweiser, cerveja que Carlos Brito, presidente-executivo da AB InBev, define como "a América em garrafa", ocupa posição central nessa tarefa.

    CONCORRENTES ARTESANAIS

    A principal fábrica da Anheuser-Busch é uma fortaleza de tijolos vermelhos em St. Louis, Missouri, perto do rio Mississipi. Construída em 1852, ela é a maior fábrica de cerveja da AB InBev nos Estados Unidos. Mais de 500 mil turistas visitam a fábrica a cada ano para descobrir como é produzida a Budweiser, e para visitar um símbolo da herança cultural norte-americana que inclui os cavalos Clydesdale, com suas patas brancas - lembrete de uma era passada.

    Em um almoço cujo cardápio consistia de hambúrguer e da recém-lançada Budweiser Signature Draught - cremosa em lugar de espumante -, Jorn Socquet, vice-presidente de marketing da AB InBev na América do
    Norte, explicou os desafios de reencontrar o crescimento para a marca.

    A marca que se define como "o rei das cervejas" está crescendo internacionalmente, mas nos Estados Unidos ela perde para a Bud Light, uma variante lançada em 1982. As vendas da Budweiser estão em declínio nos Estados Unidos há décadas, mas o que realmente irrita é que agora ela também perde em vendas para a Miller Lite, fabricada pela MillersCoor, joint venture entre a SABMiller, do Reino Unido, e a MolsonCoor, dos
    Estados Unidos.

    "Nós não nos incomodávamos em sermos vítimas do sucesso da Bud Light, porque seu crescimento mais que compensava o declínio da Budweiser. Mas no minuto em que isso muda, estamos com problemas, o que explica por que é tão importante para nós retomar o crescimento da Budweiser - mesmo que seja crescimento leve, de apenas um digito", disse o belga Socquet, 41.

    Os consumidores mais jovens optam por cervejas artesanais quase desconhecidas, bourbon e coquetéis, o que causa queda nas grandes marcas de cerveja, tendência que faz com que Socquet perca o sono. "O que não me deixa dormir é tentar descobrir como reencontrar uma conexão genuína com pessoas que não ligam para marcas", ele afirma.

    Tendo adquirido cervejas artesanais como a Goose Island e a Shock Top, em resposta à tendência, a AB InBev também está realizando seu maior investimento de marca na Budweiser até o momento, este ano. O programa inclui o lançamento da Signature Draught em todo o país, o que cria estímulo "significativo" às vendas em bares, diz Socquet.

    A mensagem de marketing também está mudando. Os mais recentes comerciais da marca para o Super Bowl enfatizavam herança e coerência -"fabricada do jeito difícil" -, a fim de encarar as cervejas artesanais, que hoje respondem por 11% do mercado norte-americano, ante 5% em 2010, de acordo com a Associação dos Fabricantes de Cerveja.

    Socquet tem grandes esperanças quanto ao lançamento recente de embalagens ousadas, que portam a imagem da Estátua da Liberdade. Outra mudança envolve transferir parte da equipe de marketing de St. Louis para Nova York, a fim de aproximá-la mais dos líderes de tendências urbanos.

    PARCIMÔNIA NA PARK AVENUE

    Os escritórios da AB InBev em Nova York ficam na Park Avenue, um endereço chique para uma empresa supostamente frugal. Mas o contrato de locação foi fechado durante a crise financeira de 2008 e o escritório sem divisórias ocupa apenas um andar, não muito grande.

    As mesas, em tom gelo, já viram dias melhores. Há pouca coisa sobre elas, e o escritório parece muito ordeiro - "somos encorajados a deixar a mesa limpa ao final do dia", diz um funcionário -, mas não há sinais das pequenas etiquetas que marcariam o lugar ideal para o telefone e o porta-canetas, uma suposta prática da empresa de acordo com um ex-funcionário. A porta do almoxarifado também está aberta, em aparente contradição à história de que a ferocidade da cultura de corte de custos prevalecente na empresa chegava ao ponto de exigir que os funcionários comprassem o papel e canetas que usam no trabalho.

    Luiz Fernando Edmond, vice-presidente de vendas da AB InBev, se levanta da mesa central que divide com Brito e os demais executivos de primeiro escalão e caminha para uma das pequenas salas de reuniões que ficam por trás de um bar e copa.

    Lá ele admite em entrevista que "não temos fórmula mágica" para reconduzir a Budweiser ao crescimento nos Estados Unidos, mas acrescenta que o declínio da marca foi contido. "Seria muito fácil para nós dizer apenas que as tendências continuarão, que isso não é nossa culpa, mas sim culpa do que quer que tenha acontecido no passado. Mas dissemos que não, isso era inaceitável. Dissemos que era preciso consertar a posição da Budweiser nos Estados Unidos".

    A necessidade de obter crescimento orgânico de vendas não afeta só a Budweiser. Em toda a sua carteira de marcas, a AB InBev está construindo "plataformas de desenvolvimento de crescimento": estratégias para estimular vendas com base na identificação de ocasiões que levam o consumidor a beber cerveja. Elas variam de campanhas de marketing em mídias sociais à participação de chefes de cozinha belgas em festivais de culinária, para falar sobre cardápios que acompanham bem uma cerveja Stella Artois. "Agora dedicamos muito mais tempo a tentar entender como promover o crescimento de nossas vendas em todo o mundo",
    disse Edmond.

    SUPREMA ADQUIRIDORA

    Mas fusões e aquisições podem representar caminho muito mais rápido para o crescimento, a julgar dos espetaculares resultados passados. Em 1992, a Brahma tinha valor de mercado de US$ 830 milhões; hoje, a capitalização de mercado da AB InBev é cerca de 230 vezes mais alta, de acordo com a FactSet. A da Coca-Cola triplicou, no período. A AB InBev é a "suprema adquiridora", de acordo com o banco Goldman Sachs, que prevê nova transação da ordem de US$ 145 bilhões até o final do ano que vem.

    Sua estratégia de fazer aquisições e cortar custos conduziu a US$ 3,5 bilhões em sinergias nas três últimas fusões da empresa - mais que o total combinado de sinergias de todas as demais transações no setor de cerveja em uma década. O resultado é um negócio eficientemente lucrativo. As margens operacionais da AB InBev estão entre as maiores do setor, em 32,5%, ante 23,3% em 2008, o ano de aquisição da Anheuser-Busch.

    Essas realizações valeram um endosso retumbante da parte de Warren Buffett, o investidor mais respeitado do planeta, aos homens que ele chama de "os brasileiros". Buffett decidiu acrescentar dinheiro aos elogios e usou seu grupo Berkshire Hathaway de investimento para investir na 3G Capital,companhia de capital privado criada por Lemann, Telles e Sicupira 11 anos atrás.

    Buffett e a 3G Capital, sediada em Nova York, parecem determinados a reproduzir no setor de comida norte-americano aquilo que a AB InBev realizou na cerveja, adquirindo a Burger King em 2010, Heinz em 2013 e Kraft Foods este ano. "A 3G faz um trabalho magnífico na gestão de empresas", disse Buffett.

    Ter Buffett como aliado tem o potencial de ampliar a gama de alvos. Até agora, porém, o trio brasileiro vem mantendo seus investimentos na 3G (uma companhia de capital fechado) separado da AB InBev, na qual os três juntos detêm 22,7% das ações. Eles formam o segundo maior grupo de acionistas, atrás apenas dos antigos investidores do grupo belga Interbrew, que detêm 28,6% das acões.

    AÇÃO NA CHINA

    Em média, a AB InBev vem realizando uma fusão a cada quatro anos, nos últimos 16. A mais recente aquisição de porte considerável aconteceu três anos atrás, e as dívidas estão sendo liquidadas rapidamente, o que permitirá em breve que a empresa comece a restituir dinheiro aos acionistas ou preparar um novo grande negócio. Brito, 55, o carioca que a comanda, insiste em que fusões e aquisições não são essenciais para o crescimento da companhia, mas é questionável que o crescimento orgânico baste, sozinho, para satisfazer os ambiciosos gestores do grupo.

    Em entrevista em Nova York, Brito disse que a companhia considerará uma fusão ou aquisição desde que o alvo, a estrutura da transação e o preço façam sentido, mas não se sente pressionada a fazer transações.
    "Não estamos construindo um sonho que tenha de envolver fusões e aquisições; estamos construindo o sonho de promover o crescimento de uma companhia", declarou o presidente-executivo.

    Perguntado se a AB InBev consideraria alvos fora do setor de cerveja - talvez refringentes (PepsiCo, Coca-Cola) ou bebidas alcoólicas (Diageo) -, Brito, que não gosta de conglomerados sem agilidade, repetiu sua preferência por "cerveja ou perto disso".

    O grupo está virtualmente ausente da África - o mercado de cerveja de mais rápido crescimento no planeta, e reduto da SABMiller -, mas Brito diz preferir a China, onde a AB InBev tem 18% do mercado.

    "A Ásia oferece uma excelente oportunidade de investimento, como a América Latina. Há mais dinâmica e ação na China do que na África", ele diz. "Acreditamos muito em foco, e por isso, se abrirmos frentes demais, fica difícil trabalhar direito".

    Declarações como essas são ambiciosas o bastante para que as especulações quanto às ambições do grupo no ramo de fusões e aquisições continuem.

    Uma certeza, porém, é que a AB InBev continuará ativa. "A forma pela qual construímos nossa companhia sempre foi a de constante insatisfação com nossos resultados e realizações", disse Brito. "Sempre acreditamos que é possível fazer mais"

    O QUE VIRÁ A SEGUIR?

    Potenciais alvos

    SABMiller (capitalização de mercado, 53 bilhões de libras)

    Prós: Adquirir a segunda maior fabricante de cerveja do planeta, controladora de marcas como Peroni e Pilsner Big, pode coroar o processo de sonhar grande, dando à AB InBev um terço do mercado mundial de cerveja. A SABMiller, sediada em Londres, tem raízes na África - o mercado de cerveja em mais rápido crescimento no planeta -, em territórios como a Zâmbia. Sua forte exposição a mercados emergentes complementa o domínio da AB InBev nas Américas.

    Contras: Questões de competição nos Estados Unidos e China. O grande número de joint ventures da SABMiller - a maior das quais com a francesa Castel na África - poderia se dissolver em caso de mudança de propriedade, o que eleva o risco de superestimar o valor da companhia.

    PepsiCo (US$ 137 bilhões)

    Prós: O desempenho ruim de suas ações em bolsa a torna vulnerável. A AB InBev opera como engarrafadora para a Pepsi e poderia passar a faca nos custos. Potencial de cindir as lucrativas operações de salgadinhos da Frito-Lay e fundi-las com a combinação Heinz Kraft da 3G Capital.

    Contras: as vendas de refrigerantes estão em queda nos Estados Unidos, o negócio tem margens menores que as da cerveja e ele não está no mercado central da AB InBev.

    Coca-Cola (US$ 173 bilhões)
    Prós: Como a cerveja Budweiser, A Coca-Cola é um ícone dos Estados Unidos com a vantagem, ante a Pepsi, de um grande sistema de distribuição internacional, potencialmente valioso para a cerveja. Warren Buffett, parceiro de investimento do 3G Capital, já detém 9% das ações da empresa. A Coca é vista como uma organização inchada, o que a torna bom alvo para medidas de cortes de custo.
    Contras: Vide PepsiCo, acima - e acrescente o fato de que a empresa é tão grande que é quase impossível bancar uma aquisição. O fato de a AB InBev ser engarrafadora da Pepsi é um complicador.

    Diageo (47 bilhões de libras)

    Prós: Dona da Guinness, que realiza um terço de suas vendas na África, o que pode significar um caminho barato para aquele mercado. A Diageo é a maior fabricante mundial de destilados, controlando o uísque Johnnie Walker, a vodca Smirnoff e o gim Gordon's.

    Contras: Bebidas alcoólicas podem estar longe demais da estratégia central da empresa, a menos que a AB InBev mantenha as cervejas da Diageo e venda as demais marcas.

    Transações de oportunidade e crescimento orgânico

    Prós: A AB InBev poderia ser operada para maximizar o caixa, e para buscar transações de oportunidade como a aquisição da Oriental Breweries por US$ 5,8 bilhões, no ano passado. O trio brasileiro recebeu US$ 1,7 bilhão em dividendos da AB InBev no ano passado, e pode saciar seu apetite por fusões e aquisições com a 3G Capital no setor de comida norte-americano.

    Contras: Pouco inspiradoras para uma equipe ambiciosa.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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