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    Trapaça da Volkswagen é alerta para todas as companhias

    JOHN GAPPER
    DO "FINANCIAL TIMES"

    25/09/2015 17h00

    Michael Sohn/AP
    TLogo da Volkswagen em um fusca de ferro-velho em Berlim, Alemanha
    Logo da Volkswagen em um fusca de ferro-velho em Berlim, Alemanha

    A mais perigosa frase de três palavras no mundo dos negócios é "todo mundo faz".

    Por mais convencional que seja contornar os regulamentos que se aplicam a um setor, por mais vantagem que isso confira aos rivais, por mais pressão que você enfrente para fazer o mesmo, há um simples teste para decidir se você deve ou não sucumbir à tentação: o que aconteceria se o mundo descobrisse? Qual seria o tamanho do estrago?

    A instalação pela Volkswagen de um software que faz com que seus carros emitam mais poluentes nas ruas do que durante testes oficiais é um desastre que forçou a renúncia de Martin Winterkorn, seu presidente-executivo, e pode macular toda a indústria automobilística europeia, que investiu pesadamente na tecnologia do diesel. Mas essa está longe de ser a primeira vez que uma montadora de veículos agiu de modo sorrateiro.

    Tornou-se comum manipular os testes europeus de eficiência no uso de combustível, com truques como portas seladas por fita adesiva e pneus inflados acima da pressão recomendada para reduzir o arrasto, o que deixa claro que a maioria dos carros a diesel consome mais combustível e prejudica mais o meio ambiente do que as montadoras afirmam.

    Nos Estados Unidos, a Ford foi apanhada usando um "dispositivo manipulador" ilegal - a mesma acusação que a Volkswagen sofre - em suas vans, em 1997, e a Hyundai e a Kia foram multadas em US$ 100 milhões no ano passado por manipulação de testes.

    O setor automobilístico não está sozinho ao se comportar assim. A mesma coisa acontece em muitos outros setores, dos bancos à indústria farmacêutica.

    Algumas poucas companhias decidem contornar suavemente as regras e outras logo seguem o exemplo. Elas sabem que é um comportamento um tanto reprovável, mas isso logo se torna prática normal e as autoridades regulatórias fingem que não veem. Então, um dia, alguém vai longe demais e irrompe um escândalo.

    "Ainda que eu estivesse operando dentro de um sistema no qual fazer aquilo era normal, me comportava como um delinquente serial", declarou Tom Hayes, ex-executivo do UBS condenado a 14 anos de prisão no mês passado por manipular a taxa Libor de juros, ao Serviço de Fraudes Graves da Justiça britânica. Hayes tinha talento para isso e em alistar a cooperação de outros operadores. Uma investigação oficial terminou por surgir.

    Quando surge a reação, ela vem com toda força. Repentinamente, comportamento que era prática comum, aceito com uma piscadela e um menear de ombros, ou entendido secretamente como maneira de manter a competitividade diante de rivais, passa a ser considerado impróprio e talvez ilegal.

    "Todo mundo faz" não é defesa. Quando algo assim é exposto ao olhar do público, e as autoridades regulatórias são ridicularizadas por não terem impedido esse tipo de prática, não há perdão.

    "COMPLETA CAGADA"

    Em meio a uma busca irritadiça pelos responsáveis por delitos dentro de uma companhia, os executivos de primeiro escalão são preparados apressadamente para responder a inquéritos oficiais e à interrogação da mídia, com perguntas como "mas por que você agiu assim?"

    Não existe resposta certa para isso, ainda que Michael Horn, presidente-executivo da Volkswagen dos Estados Unidos, tenha oferecido um resumo preciso: "Foi uma completa cagada".

    A chave para escapar quando você manipula as regras é que é necessário fazê-lo de maneira sutil e discreta. Abusos podem ser comuns, mas não podem se tornar gritantes demais, ou isso alertará as autoridades regulatórias que costumam tolerar algumas áreas cinzentas.

    A indústria automobilística é um exemplo clássico: era de conhecimento público que a distância entre os números oficiais quanto ao consumo de combustível e o desempenho real dos veículos é muito grande, mas a Volkswagen estupidamente decidiu levar a trapaça a um novo nível.

    As fraudes muitas vezes começam em laboratórios, onde os resultados por definição são artificiais. Um certificado atestando que um produto funciona de determinada maneira no laboratório de uma companhia - mesmo que ninguém tenha trapaceado - não é capaz de garantir o mesmo resultado para o desempenho no mundo real.

    Inevitavelmente, o foco das empresas passa a ser reproduzir os resultados de laboratório obtidos, da mesma forma que estudantes racham para decorar matérias antes de um exame.

    A distância entre um teste bem concebido e a realidade não precisa ser grande. Mas mentes brilhantes logo descobrirão como aproximar as duas coisas, da mesma maneira que os bancos descobriram como cumprir os requisitos de capitalização com um mínimo de capital acionário nos anos que antecederam a crise de 2008.

    A Hyundai e Kia selecionaram apenas os melhores resultados em seus testes de consumo de combustível, obtidos com vento a favor e pneus especiais.

    PSICOLOGIA DE REBANHO

    A psicologia de rebanho logo se afirma. A companhia X sabe o que a companhia Y está fazendo para manipular seus resultados sem ser punida pelas autoridades regulatórias, e percebe que não poderá competir se não fizer o mesmo.

    Os testes são oficialmente sancionados, afinal, e os compradores provavelmente não os questionarão. Qualquer executivo ou engenheiro que tente resistir é contraditado e classificado como ingênuo ou difícil.

    A rivalidade cria tentativas cada vez mais ambiciosas de ganhar vantagem, um risco maior para a reputação. A Volkswagen conseguiu instalar sua engenhoca de trapacear em testes em 11 milhões de carros sob os narizes das autoridades regulatórias, antes de ser apanhada.

    Até mesmo os pesquisadores do Conselho Internacional do Transporte Limpo, que identificaram a trapaça na Europa, não acreditaram que ela pudesse ser tão gritante.

    Mais cedo ou mais tarde, uma companhia irá longe demais. Sempre haverá alguém que manipule demais a Libor, uma Volkswagen, ou uma GlaxoSmithKline na China, que contraria a lei de uma forma que não pode ser ocultada.

    Muitas companhias pagaram propinas a médicos e hospitais na China, mas o governo do país com certeza um dia tornaria exemplo uma companhia ocidental por fazê-lo de modo tão sistemático.

    O presidente de um banco de Wall Street um dia me disse que havia aprendido com os escândalos que ética é absoluta, e não comparativa. "Não nos comportamos tão mal quanto os nosso rivais" era uma atitude tentadora, mas perigosa. Muitas companhias se colocam em perigo ao adotarem esse mantra.

    A Volkswagen conquistou a dúbia honra de ser a companhia de pior comportamento em seu setor, mas a parada era dura.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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