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    Política externa chinesa busca criar uma nova 'Rota da Seda'

    CHARLES CLOVER
    LUCY HORNBY
    DO "FINANCIAL TIMES"

    20/10/2015 02h00

    Li Tao/Xinhua
    O presidente chinês e comandante das forças armadas do país, Xi Jinping, faz pronunciamento em Pequim
    O presidente e comandante das forças armadas da China, Xi Jinping, faz pronunciamento em Pequim

    "Os paióis grãos de todas as cidades estão repletos de reservas, e os cofres cheios de tesouros e ouro em valor de trilhões", escreveu Sima Qian, historiador chinês do século 1 a.C. "Há tanto dinheiro que os cordões usados para manter moedas unidas apodrecem e se quebram, uma quantia inimaginável. Os paióis de grãos da capital estão tão cheios que os grãos se espalham pelas ruas, apodrecem e não podem ser comidos".

    Ele estava descrevendo os lendários superavits da dinastia Han, uma era caracterizada pela primeira expansão chinesa rumo ao oeste e sul, e pelo estabelecimento de rotas comerciais que mais tarde se tornariam conhecidas como "Rota da Seda", que se estendiam de Xi'an, a capital chinesa do período, a Roma.

    Passado um milênio ou dois, a conversa sobre expansão volta a surgir, em um período de alta dos superavits chineses. Não há cordões para organizar os US$ 4 trilhões em reservas do país —as mais altas do planeta— e além de silos repletos de alimentos a China também tem superavits de imóveis, cimento e aço.

    Nova rota da seda China amplia caminhos para comércio exterior

    Depois de duas décadas de rápido crescimento, Pequim uma vez mais volta a buscar oportunidades de investimento e comércio longe de suas fronteiras, e para fazê-lo está recuando à sua antiga grandeza imperial e à familiar metáfora da "Rota da Seda". Criar uma versão moderna dessa antiga rota comercial se tornou a principal iniciativa da política externa da China na presidência de Xi Jinping.

    "É um dos poucos termos que as pessoas recordam de suas aulas de História e que não envolve poder bélico... são exatamente essas associações positivas que os chineses desejam enfatizar", diz Valerie Hanson, professora de História da China na Universidade de Yale.

    A GRANDE IDEIA DE XI

    Se todos os compromissos assumidos por Xi forem computados pelo valor de face, a nova Rota da Seda deve se tornar o maior programa de diplomacia econômica desde o Plano Marshall, que os Estados Unidos conduziram para promover a reconstrução da Europa no pós-guerra, cobrindo dezenas de países com população total de mais de três bilhões de pessoas.

    A escala demonstra as imensas ambições em jogo. Mas diante de um pano de fundo de crescimento hesitante e do crescente poderio de suas forças armadas, o projeto assume importância imensa como forma de definir o lugar da China no planeta e suas relações —ocasionalmente tensas— com os países vizinhos.

    Em termos econômicos, diplomáticos e militares, Pequim usará o projeto para afirmar sua liderança regional na Ásia, dizem os especialistas. Para alguns, isso expõe o desejo de estabelecer uma nova esfera de influência, uma versão moderna do Grande Jogo do século 19, quando Grã-Bretanha e Rússia disputavam o controle da Ásia Central.

    "A Rota da Seda foi parte da história chinesa, datando das dinastias Han e Tang, dois dos maiores impérios da China", diz Friedrich Wu, professor da Escola S Rajaratnam de Relações Internacionais, em Cingapura. "A iniciativa é um lembrete oportuno de que, sob o Partido Comunista, a China está construindo um novo império".

    EFEITO CHINÊS - Variação do PIB da China ante igual trimestre do ano anterior, em %

    De acordo com antigos funcionários do governo chinês, a grande visão para uma nova Rota da Seda surgiu modestamente, dos escalões inferiores do Ministério do Comércio chinês. Em busca de uma maneira de enfrentar o grande excesso de capacidade dos setores siderúrgico e industrial, as autoridades do comércio começaram a desenvolver um plano para elevar as exportações. Em 2013, o programa recebeu endosso inicial da parte do primeiro escalão, quando Xi anunciou a nova Rota da Seda, em uma visita ao Cazaquistão.

    Desde que o presidente dedicou um segundo grande discurso ao plano, em março —quando as preocupações quanto à desaceleração econômica estavam em alta—, ele ganhou força como iniciativa política, e um nome mais desajeitado: "Um cinturão, uma estrada". O cinturão se refere à rota terrestre que liga Ásia Central, Rússia e Europa. A estrada, estranhamente, é uma referência a uma rota marítima, pelo oeste do Pacífico e Oceano Índico.

    Em alguns países, essa pressão de Pequim encontra só portas abertas. O comércio entre a China e os cinco países da Ásia Central - Cazaquistão, Quirguízia, Tajiquistão, Turcomenistão e Uzbequistão - cresceu dramaticamente desde 2000, atingindo os US$ 50 bilhões em 2013, de acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI). A China agora deseja construir as estradas e oleodutos necessários a facilitar o acesso aos recursos de que necessita para manter seu desenvolvimento.

    Xi começou a oferecer mais detalhes sobre o plano alguns meses atrás, ao anunciar US$ 46 bilhões em investimentos e linhas de crédito para um corredor econômico China-Paquistão, com terminal em Gwadar, um porto no Mar da Arábia. Pequim anunciou planos para injetar US$ 62 bilhões de suas reservas cambiais em três bancos estatais que financiarão a expansão da nova Rota da Seda. Alguns dos projetos, que já estão em estudos, parecem ter sido adotados como parte do novo esquema por burocratas e empreendedores que correm para enquadrar seus planos à política de Xi.

    "Eles estão aplicando um novo slogan a coisas que desejavam fazer há muito tempo", diz um diplomata ocidental.

    "É como uma árvore de Natal", diz Scott Kennedy, diretor assistente do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais, em Washington. "Pode-se pendurar muitos objetivos de política externa nela, mas ninguém conduziu a análise econômica necessária. O dinheiro do governo que eles estão investindo não é suficiente; eles esperam atrair capital privado, mas será que o capital privado está interessado? Os projetos darão dinheiro?"

    Além de oferecer um vislumbre das ambições da China, a nova Rota da Seda oferece uma janela que revela como Pequim conduz sua política macroeconômica —muitas vezes de improviso, com os burocratas correndo para dar substância a declarações vagas e ocasionalmente contraditórias vindas dos escalões superiores. "Parte acontece de cima para baixo, parte de baixo para cima, mas por enquanto no meio não existe nada", disse um antigo funcionário do governo chinês.

    "O resto da burocracia está tentando recuperar o atraso e chegar aos lugares em que Xi fincou a bandeira chinesa", diz Paul Haenle, diretor do Centro Carnegie-Tsinghua, em Pequim. "Quando Xi anuncia alguma coisa, a burocracia precisa levar a ideia diante. Precisam revestir de carne aquele esqueleto".

    Surgiram algumas pistas em março quando a poderosa Comissão Nacional de Desenvolvimento e Reforma, a organização chinesa de planejamento central, publicou um desajeitado documento, "Visões e Ações para a Construção Conjunta do Cinturão Econômico da Rota da Seda e da Rota da Seda Marítima do Século 21".

    O texto oferece profusão de detalhes quanto a algumas coisas —como por exemplo a realização de feiras de livros— mas é vago quanto a outras, por exemplo os nomes dos países incluídos. Peru, Sri Lanka e até o Reino Unido constam de algumas versões dos mapas semioficiais do projeto, mas não constam de outras.

    No entanto, ao que parece existe uma lista completa. Em 28 de abril, o Ministério do Comércio anunciou que os países da Rota da Seda respondem por 26% do comércio internacional chinês, uma estatística notavelmente precisa. No entanto, um pedido do "Financial Times" de detalhes mais específicos sobre a lista de nações não foi atendido.

    Tampouco existe indicação de como o sistema será operado —por meio de uma burocracia própria ou de departamentos separados em diferentes ministérios e bancos de desenvolvimento. Com os governos estrangeiros e bancos multinacionais acompanhando atentamente os pronunciamentos oraculares de Pequim a fim de tentar compreender o que significam, a confusão e indefinição não passaram despercebidas.

    "Se queremos conversar sobre a Rota da Seda", disse um diplomata de um país vizinho, "não sabemos a quem telefonar".

    À medida que os interesses econômicos internacionais do país se expandem, seu imenso aparato de segurança e suas forças armadas provavelmente se verão atraídos a desempenhar papel regional mais importante.

    A China não tem bases militares no exterior e insiste firmemente em que não deseja interferir na política interna de qualquer outro país. Mas um anteprojeto de lei de combate ao terrorismo pela primeira vez torna legal o envio de soldados chineses a bases no exterior, com o consentimento do país anfitrião.

    As forças armadas da China também estão ávidas por seu quinhão nos generosos recursos reservados para a campanha da nova Rota da Seda. Um antigo funcionário do governo norte-americano diz ter sido informado por generais de alta patente nas forças armadas chinesas de que a estratégia de "um cinturão, uma estrada" precisa ter um componente de segurança.

    Projetos em áreas instáveis inevitavelmente representarão um teste para a política chinesa de evitar envolvimentos externos quanto a questões de segurança. O Paquistão dedica 10 mil soldados a proteger projetos de investimento chineses, enquanto no Afeganistão soldados norte-americanos até o momento vêm protegendo uma mina de cobre que conta com investimentos chineses.

    A construção de portos em países como o Sri Lanka, Bangladesh e Paquistão levou alguns analistas a questionar se o objetivo último da China não seria desenvolver instalações logísticas de duplo uso que poderiam ser colocadas em serviço para permitir que o país controlasse rotas de navegação —uma estratégia que leva o apelido de "colar de pérolas".

    Conquistar a confiança de vizinhos cautelosos, entre os quais Vietnã, Rússia e Índia, não pode ser considerado como automático, e as exibições de poderio bélico de Pequim em outras áreas não ajudam. No Mar do Sul da China, por exemplo, os confrontos navais vêm crescendo, diante das agressivas reivindicações marítimas chinesas.

    EXCESSO DE CAPACIDADE

    A teoria de Lênin de que o imperialismo é causado por excedentes de produção em países capitalistas parece ser confirmada, estranhamente, por um dos últimos países (ostensivamente) leninistas do planeta. Não é coincidência que a estratégia da Rota da Seda coincida com o pós-jogo de um boom de investimento que resultou em vasto excesso de capacidade de produção e na necessidade de encontrar novos mercados no exterior.

    "O crescimento do setor de construção está se desacelerando, e a China não precisa construir muitas vias expressas, ferrovias e portos novos, o que significa que precisam encontrar outros países nos quais fazê-lo", disse Tom Miller, da Gavekal Dragonomics, uma consultoria de Pequim. "Um dos objetivos claros da campanha é obter mais contratos para construtoras chinesas no exterior".

    Como o Plano Marshall, a iniciativa da nova Rota da Seda parece concebida para empregar agrados econômicos como forma de resolver outras vulnerabilidades. A região da fronteira oeste da China e os vizinhos do país na Ásia Central abrigam vastas reservas de petróleo e gás natural. A região de Xinjiang, que abriga uma das maiores reservas de energia da China e é crucial para a nova Rota da Seda, também é o lar de uma irrequieta minoria uigur, que tem raízes culturais turcas, é muito mais pobre que a população da região costeira chinesa e gostaria de romper seus elos com Pequim. A região registrou severas erupções de violência nos últimos anos.

    Um avanço para a Ásia Central ocupará em parte o vácuo deixado pela retirada de Moscou depois da guerra fria, e pela retirada militar de Washington, que abandonará o Afeganistão no ano que vem. Já que Pequim afirma que está enfrentando crescente ameaça terrorista, estabilizar a região como um todo é prioridade.

    Mas, ao fazê-lo, a China terá de resolver o mesmo dilema que prejudicou os Estados Unidos em seus esforços de "construção de nações": decidir se segurança e estabilidade são pré-requisitos para o desenvolvimento econômico ou se, como Pequim parece acreditar, é possível pacificar conflitos locais por meio de um mar de investimentos e gastos com infraestrutura.

    ISLAMISMO RADICAL

    Se essa abordagem não funcionar, a China terá de encarar alternativas desagradáveis —ou bem abandonar o projeto ou bem correr o risco de se ver aprisionada por compromissos de segurança e envolvida em questões de política local.

    O país já deixou claro que não deseja substituir os Estados Unidos no Afeganistão e nem se vê como polícia regional. "A China não comentará os mesmos erros", diz Jia Jinjing, especialista em questões do sul da Ásia na Universidade Renmin, de Pequim.

    O desenvolvimento econômico, argumentam os estrategistas de Pequim, removerá os atrativos do islamismo radical, na China, Paquistão, Afeganistão e Ásia Central. Mas os críticos apontam que políticas culturalmente insensíveis, forte presença de segurança e políticas que beneficiam as comunidades de etnia chinesa em detrimento das comunidades locais até agora só serviram para agravar as tensões em Xinjiang, região desértica que abriga 22% das reservas internas de petróleo e 40% dos depósitos de carvão da China.

    Estradas e oleodutos atravessando o Paquistão e Mianmar permitirão, no futuro, que a China evite outra vulnerabilidade estratégica —o gargalo do Estreito de Malaca, pelo qual 75% de suas importações de petróleo têm de passar. Metade do gás natural chinês já chega ao país da Ásia Central, graças a uma dispendiosa estratégia dos predecessores de Xi para reduzir a dependência do país quanto a importações marítimas.

    Embora alguns vizinhos devam receber o investimento positivamente, é menos claro que desejem absorver o excedente da capacidade de produção chinesa. Muitos desses países têm desemprego elevado e siderúrgicas deficitárias, ou ambições de desenvolver a indústria nacional, em lugar de importar produtos alheios.

    Investimento em larga escala também poderia causar preocupação sobre a abertura das portas ao domínio econômico chinês —como aconteceu em Mianmar e Sri Lanka—, e com ele influência política. Mas a China espera que a atração dos grandes investimentos se prove um incentivo forte demais para que os vizinhos desejem resistir.

    "Eles [Pequim] não têm muito poder brando, porque poucos países confiam neles", diz Miller. "E ou não podem ou não querem usar a força militar. O que eles têm é muito dinheiro".

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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