• Mercado

    Thursday, 02-May-2024 12:35:51 -03

    'O grande profissional se motiva antes do dinheiro', diz Tite

    VINICIUS PEREIRA
    DE SÃO PAULO

    29/11/2015 02h00

    Liderar um grupo de jogadores ao título nacional mesmo sob a pressão de milhões de torcedores. Manter uma equipe unida e motivada mesmo quando o campeonato já estava ganho e administrar o ego de jovens com altos salários.

    Além dos desafios dentro de campo, o técnico Tite, 54, também conhece os desafios que enfrenta diariamente fora dele. Em entrevista à Folha, o comandante do Corinthians fala sobre gestão, liderança e reciclagem profissional.

    "O principal desafio em qualquer área está na qualificação profissional, em ser conhecedor de forma profunda do metiér, daquilo com que se trabalha", afirma o treinador.

    Após vencer a Libertadores e o Mundial de Clubes da Fifa em 2012, Tite resolveu tirar um ano sabático para se reciclar. E deu certo.

    Campeão brasileiro neste ano com três rodadas de antecedência, ele é aclamado pela torcida e querido pelos jogadores. Tite afirma que tudo isso é resultado da paixão que nutre pela atividade profissional.

    "O grande profissional se motiva antes do dinheiro; pela satisfação do fazer bem feito", diz.

    Folha - Qual o principal desafio em administrar um grupo de pessoas?

    O principal desafio em qualquer área está na qualificação profissional, em ser conhecedor de forma profunda do metiér, daquilo com que se trabalha. No meu caso, saber de treinamento, sistema, é fundamental. O outro é conduta pessoal, é fazer aquilo que tu prega [sic] e se tu não tiver [sic] coerência, não tiver uma relação de respeito, a relação de confiança não se estabelece, ai não adianta. É conduta pessoal e qualificação profissional.

    Uma das suas bandeiras é a transparência com os jogadores. Como um gestor deve fazer mudanças na equipe?

    Ai está um pouquinho do ex-atleta que fui. É fundamental a transparência, dizer ao profissional o que está certo o que está errado pra ele, na frente dele. A relação de confiança acontece ai, mesmo que tenha que chamar a atenção, ser duro em algum momento, na proporção exata também elogiar quando as coisas dão certo, quando elas acontecem, mas antes de tudo ela tem que ser direta. Nunca, nunca expô-lo de forma pública.

    Como conviver com a pressão do trabalho no dia a dia?

    Eu digo que o amor pelo trabalho tem que ser maior, tem que ser infinitamente maior para superar essa pressão. Se você faz aquilo que gosta, não tem outra forma. A exposição pública nossa é muito grande, tua [de jornalista] também. Uma assinatura tua em cima de uma reportagem, ou ela te credencia ou não.

    É o meu trabalho, então o tempo também vai te dando um pouco mais da naturalidade, a preparação deve ser constante, entender que nós somos humanos e erramos também é muito importante, se não você fica com aquela obsessão de fazer tudo certo e nós não somos perfeitos.

    Para o atleta também é muito importante, porque ele vai errar em algum momento. Eu tenho uma frase que o Paulo André (ex-jogador do Corinthians e zagueiro do Cruzeiro) que me marcou muito. Ele diz que a gente pode errar na execução, mas não pode errar na ideia. Eu digo sim Paulo, se tu errar, um erro técnico, já já você acerta com um pouco de aperfeiçoamento, mas a ideia tem de estar bem executada.

    A gente vai errar, no meu caso, no seu, mas a ideia tem que ser correta.

    O erro leva a derrota. Como lidar com ela?

    Um número de erros de uma equipe leva a derrota. Não é um erro isolado de um que nos leva a derrota. Não é um erro do técnico que te leva a derrota. É um conjunto, um contexto. Até porque em um trabalho em equipe eu tenho que ter um suporte para que esse erro possa ser corrigido.

    O erro do lateral pode ser corrigido por uma boa saída do goleiro, um erro do zagueiro pode ser corrigido pelo outro zagueiro, pelo lateral que fecha e pelo volante que sai, então a compreensão do trabalho coletivo é importante.

    A motivação é algo importante aos profissionais. Como um líder pode motivar a equipe?

    Uma conscientização mais do que motivação. Diversas são as motivações que cada um de nós temos e ela difere de um para outro. Eu tenho uma certeza, que aquela pessoa que coloca o aspecto financeiro a frente da realização pessoal, do prazer pela atividade, do brilho no olho de fazer as coisas bem feitas, ela tem aí uma escala de importância que está errada nesse contexto todo.

    O grande profissional ele se motiva antes do dinheiro pela satisfação do fazer bem feito. Eu não consigo conceber de outra forma. A excelência ela prima por essa paixão por aquilo que tu faz.

    [Também motivo] No treinamento. A conscientização e a preparação são fundamentais, ou melhor, elas são essenciais. Estão em um degrau acima do importante.

    Se eu treinar, e eu não tiver uma metodologia específica que aproxime o treinamento do jogo, eu não consigo preparar a equipe. Se eu não colocar uma pressão psicológica e uma competitividade parecida com a de jogo, eu não consigo preparar o atleta para o jogo. A conscientização de que o treinamento deve ser levado a um nível parecido- porque igual não tem como- é essencial para o sucesso.

    A última goleada do Corinthians [ante o São Paulo, por 6 x 1] foi feita com um time praticamente reserva. Como manter todos dispostos?

    Em termos de motivação, há uma equipe, um staff, uma comissão técnica que da atenção a todos. E isso é fundamental para um atleta se manter motivado. Ele pode até não me escalar, mas me treine e me dê a condição igual aos titulares. Por isso, eu e os auxiliares damos muita atenção a todos. Se eu jogo domingo, segunda-feira eu estou lá para dar atenção para o trabalho dos atletas que ficaram de fora.

    Se eu ficar fora nesse momento, só conversando com diretores ou dando entrevista coletiva, o atleta vai pensar, e eu pensava assim: o cara nem acompanha o meu trabalho, como ele vai me avaliar?

    Então esse acompanhamento mantém o atleta com o sinal de alerta ligado do tipo 'olha, estamos cuidando de ti, a oportunidade vai aparecer e ai é contigo. Ai é contigo eim, presta atenção, que já já vai cair no seu colo e ai eu passo para ti a responsabilidade'.

    Aí vai da pessoa?

    Exatamente. Ele precisa estar sempre em sinal de alerta. Eu tiro ele da zona de conforto. Isso a gente faz.

    O Corinthians perdeu peças que eram consideradas fundamentais, mas mesmo assim se sagrou campeão. Como você repõe essas peças à equipe?

    Manter as peças em harmonia. Durante a semana tenho três trabalhos da equipe que vai para o jogo no domingo. Nesse início de trabalho, eu faço as três com a equipe que vai para o jogo. Passando o tempo, eu faço dois trabalhos da equipe que vai para o jogo e uma eu mesclo.

    Chega no outro estágio, agora por exemplo, que eu divido que vai para o jogo, lado direito dela, por exemplo, e o lado esquerdo que não vai para o jogo. Por quê? Porque dou a ela a chance de se adaptar, fora que eu deixo o cara de fora mobilizado. Eu deixo ele pensando: 'olha eu estou fora do time, mas estou integrado também. Estou melhor preparado.

    Assim é possível minimizar as perdas?

    Assim a oscilação é menor e o grau de entrosamento, confiança é maior. Ele pensa: 'eu também estou treinando com o time de cima, eu também posso jogar'. Esses são fatores gerados que eu trouxe esse ano. [Arséne] Wengér (técnico francês) faz muito isso no Arsenal.

    Consultores afirmam que uma das suas grandes habilidades é trabalhar o grupo e o individual. Como fazer isso?

    Eles não são incompatíveis e dá para se trabalhar paralelamente, dá para evoluir e ter meus objetivos pessoais próprios e os objetivos da equipe abordados no mesmo local. O que a gente faz é uma abordagem bem individual, eu também converso com os atletas individualmente.

    Eu também dou a oportunidade de os atletas falarem, eu dou a eles a oportunidade de eles falarem o sentimento que têm e o que eles buscam e o comprometimento deles no trabalho. O que eles querem, qual é o treinamento que dá e que permite ter um comprometimento deles em cima do trabalho.

    Buscamos também os aspectos de vídeo para melhorar as necessidades de cada um. Então a comissão técnica trabalha nesse aspecto e de ter essa liberdade da relação individual também se faz necessária.

    Daqui a pouco você está em um momento de grau de confiabilidade mais baixo, você também precisa conversar pra ver o que está errado e o que fazer para melhorar. Nem sempre o atleta tem a consciência em que melhorar.

    Essa relação individual e depois coletiva eu vejo como importante.

    Há sempre um planejamento feito por você e pela diretoria. Como ele deve ser feito?

    O planejamento geral passa pelo nível de investimento, a dificuldade financeira faz com que o planejamento passe pelas finanças.

    E o planejamento não era para ser campeão esse ano, era para ser campeão no ano que vem. Só que no potencial, a equipe cresceu muito rápido a ponto de achar que ela seria campeã paulista. Eu não sabia da Libertadores porque não tinha a dimensão, mas a dimensão estadual me frustrou muito, porque pelo futebol apresentado a gente podia ser campeão paulista. Um jogo, pênaltis, acabou sendo o fator saída.

    Ela [a equipe] continuou crescendo, tendo atuações que empolgavam na Libertadores. Ela fez um jogo errado, ficou pressionada, ficou nervosa e não conseguiu reverter o placar, não transformamos em gol contra o Guarani.

    Na sequência, decidimos que ninguém saia mais e eu cheguei para os atletas e disse 'olha, vamos retomar o nível de atuações do campeonato paulista e da Libertadores gente'.

    E a gente vai aprendendo com as experiências, vamos se tornando uma equipe mais calejada, mais cascuda, mais emocionalmente estável eu diria. Eu só não sabia que ela tinha um potencial de crescimento o quanto que ela teve. Acabou que ela cresceu muito e foi campeã batendo os números que bateu- fora do padrão de uma curva normal de campeão.

    Você evoluiu profissionalmente neste ano sabático. Qual a importância da reciclagem profissional?

    Fundamental! Fundamental. Ninguém nasce pronto e ninguém vai estar pronto qualquer que seja o momento. Eu digo que a inquietude do saber é o meu combustível. A hora que eu não tiver mais o tesão do saber, do novo, do de buscar novas informações, e de observar novidades, intercâmbio, é importante fazer outra atividade que não a minha.

    Um aspecto importantíssimo: adaptação da equipe e a forma dela jogar e o jeito de liderança de acordo com o que a equipe precisa e não de acordo com que eu entendo e quero.

    A abordagem do Tite para este grupo é totalmente diferente da do grupo de 2013. Minhas palestras, minhas cobranças. Eu era mais caçador do nível competitivo: porra, vamos pra dentro dos caras, a gente já teve experiência, eles já nos atropelaram, vamos para dentro atropelar agora. Era uma linguagem para Guerrero, para Chicão e eles iam para dentro.

    Esse era um perfil é um modo de orientação diferente, é mais didático. Malcom, Arana, 18 anos, eu não posso desafiar eles, porque isso faz com que eles arregalem o olho e inibe. Aqueles que não foram campeões também. O próprio Gil, você olha e pensa é forte pra caramba, mas ele responde a uma orientação e a um tom de voz mais de professor, mais educativo.

    E o comando de uma forma geral nós precisamos regular essa voltagem. Se você não regular isso, não vai ter sucesso na equipe, tu não vai dar a ele nível de confiança e orientações para que o nível aumente.

    Como, em situações de crise, descobrir novos talentos ou valores?

    Eu tenho comigo uma convicção para ter dois atletas qualificados para uma mesma função. A competição real, eleva o nível. Se eu tiver uma equipe onde meu reserva não for de alto nível, inconscientemente você abaixa o nível.

    Vou ser específico. O Elias. O Rodriguinho entrou no jogo contra a Ponte, depois ele e ganhamos o outro jogo por 3x0 se não me engano [o jogo foi 2x0]. O Elias então externou, claro que brincando, dizendo chega, chega, a seleção já me tirou e o negócio é comigo, já deu Rodrigo, já deu.

    O que que isso representou? 'bom, o cara está concorrendo comigo e eu tenho que elevar meu nível técnico'. Se eu não elevar? Depois do jogo, ai o Elias voltou e quem foi o destaque do dia seguinte? Elias. Por que? Porque ele pensa: se eu não produzir hoje, o cara vai me tirar a titularidade.

    Essa competição dentro, sadia e real, ela tem que existir. Assim você eleva o nível técnico individual e coletivo.

    Jogadores, no geral, são jovens, com grandes salários e muita visibilidade. Como administrar egos?

    Em qualquer ramo de atividade, em qualquer classe, há mais ou menos, mas há. No Corinthians então, tudo é mais, tudo é menos. Então eu digo, você joga um jogo bem, tu já virou bonito, já virou craque da rodada, então cuida disso, porque se você deixar isso te levar, no outro jogo, se a gente perder, você vai ser um perna de pau, crucificado como culpado. Tu não é nem uma coisa, nem outra.

    Nós temos que ter a consciência de não se vislumbrar e ao mesmo tempo, quando as coisas não acontecerem, você também não é o culpado. Então ter essa maturidade, essa naturalidade de enfrentar os dois lados opostos, de ser o cara, ou de ser o culpado, o responsável.

    Quanto o psicológico pode interferir no trabalho?

    Muito, muito e muito. Em um segundo, o nível de concentração pode baixar e ai toda a coordenação vai junto, o nível técnico também, ainda mais em uma equipe em que são 11 integrantes, então a complexidade e o nível de harmonia tem que ser muito grande, uma peça ela falha ela pode ser fatal.

    Quais os objetivos para o ano que vem?

    As pessoas têm me perguntado bastante e eu tenho respondido o que eu falei contra o São Paulo: vamos curtir esse momento, que é um momento mágico, vamos curtir a nossa amizade. Vamos retratar tudo de bom que a gente fez até agora, depois a gente vê o amanhã (risos).

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024