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    CRÍTICA

    Autor inspira pedidos de cancelamento de débitos gerados da crise global

    CELSO ROCHA DE BARROS
    COLUNISTA DA FOLHA

    21/02/2016 02h00

    "Dívida: os Primeiros 5.000 Anos" é um dos livros da crise de 2008, como "O Capital no Século 21", de Thomas Piketty. Mas seu autor, David Graeber, é mais ambicioso do que Piketty em todas as dimensões possíveis.

    O leitor ficou impressionado com os 200 anos de estatística de Piketty? Graeber oferece 5.000 anos em estudos históricos e etnográficos.

    Achou a equação r > g uma generalização excessiva? Graeber tem uma teoria geral da dívida e uma visão de ciclos históricos que duram milênios. E, se um pouco mais de imposto sobre herança lhe parece chocante, Graeber é anarquista, participou ativamente do Occupy Wall Street e seu trabalho inspira movimentos que pedem o cancelamento de dívidas causadas pela crise e seus desdobramentos.

    Para Graeber, dívidas são obrigações sociais que podem ser quantificadas. A dívida é bastante diferente das obrigações sociais que todos os membros da sociedade, de uma forma ou de outra, têm um com o outro.

    Esse elemento de quantificação e impessoalidade da dívida torna difícil administrar uma sociedade em que o endividamento se torne um problema de grande escala; há sempre o risco de que a obrigação de pagar a dívida se sobreponha a outras obrigações sociais que mantêm a sociedade coesa.

    REVOLTAS

    Um dos pontos altos do livro é a história das revoltas de devedores, recorrentes na história humana, e frequentemente resolvidas através de anistias. É fácil perceber como essa história sensibilizaria leitores no pós-2008.

    Graeber é convincente quando defende o campo da cultura das explicações exclusivamente econômicas. Por exemplo, quando refuta a tese, proposta por economistas, de que o dinheiro surge como evolução do escambo. Na verdade, o dinheiro surge em um processo complexo que envolve "moedas sociais" (que serviam para celebrar casamentos ou alianças, entre outras coisas), relações de crédito baseadas em confiança e, finalmente, a violência estatal (na utilização de moeda metálica para pagar soldos,
    por exemplo).

    O livro também tem análises muito interessantes de processos históricos de longo prazo. Graeber vê nos últimos milênios uma alternância entre períodos de dinheiro metálico e períodos de dinheiro creditício (ou virtual). Cada uma dessas formas costuma estar associada a diferentes tipos de sociedade.

    O dinheiro metálico está associado a períodos de centralização estatal, escravidão e guerra (como nos grandes impérios da antiguidade ou no imperialismo moderno).

    Quando prevalece o dinheiro virtual, tendem a prevalecer a descentralização e uma menor militarização (como na Idade Média). Desde o fim do padrão-ouro estaríamos diante de uma nova era de dinheiro virtual, mas (ainda?) não é possível ver sinais de uma mudança para sociedades mais descentralizadas e menos militarizadas.

    ECONOMIA MODERNA

    Se Graeber convence quando diz que nem tudo na sociedade humana se explica economicamente, por vezes acaba por negar que a economia se explique, em alguma medida, por suas próprias razões. Na sociedade moderna, isso é um erro grave.

    Quando Graeber se aproxima da discussão da economia moderna (que, em uma história de 5.000 anos, é um intervalo muito curto), o nível de sua argumentação cai. Sua visão sobre o entrelaçamento entre os EUA e a
    China, vista como tributária do império americano, não é bem sustentada; sua compreensão de como o Fed ou o mercado financeiro funcionam é pouco sofisticada.

    A falta de uma boa análise da sociedade contemporânea dificulta a articulação do trabalho de pesquisa com as propostas políticas de Graeber. Na verdade, é possível aceitar a narrativa histórica e antropológica de "Dívida" sem apoiar nenhuma das propostas políticas do autor. E é claramente possível apoiar ao menos alguns esforços de anistia das dívidas pós-2008 sem descrevê-las como um desdobramento de uma violência original ancestral e tomando o cuidado de não propor nada que exclua os pobres do mercado de crédito.

    Enfim, faça com o livro de Graeber o que devíamos ter feito com Marx: não transforme seus insights em um sistema, não o use para aprender economia, mas não deixe de usá-lo quando achar que seu quadro teórico lhe inspirará boas ideias, para livros ou para protestos.

    DÍVIDA: OS PRIMEIROS 5.000 ANOS
    AUTOR David Graeber
    EDITORA Três Estrelas
    QUANTO R$ 84,90 na livrariadafolha.com.br (702 págs.)

    Edição impressa

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