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    crítica

    Livro narra história do 'JB' em ritmo de conversa de botequim

    PLÍNIO FRAGA
    DE ESPECIAL PARA A FOLHA

    08/03/2016 02h00

    Rafael Andrade/Folhapress
    O prédio que pertenceu ao jornal foi projetado por Henrique Mindlin; atualmente é um hospital
    O prédio que pertenceu ao jornal foi projetado por Henrique Mindlin; atualmente é um hospital

    O livro decepciona naquela que deve ser a missão número um do bom jornal: dimensionar os acontecimentos

    O "Jornal do Brasil" era uma das muitas obsessões do escritor Nelson Rodrigues (1912-1980). "Daqui a 200 anos, os historiadores dirão do nosso tempo: a época do "Jornal do Brasil."

    Pois o velho órgão, acima de qualquer dúvida ou sofisma, é um momento da vida brasileira. Assim como houve a época do fraque, outra do espartilho, uma terceira do charleston, há a do "Jornal do Brasil", observou em crônica de 1968.

    Rodrigues trabalhara a maior parte de sua carreira nos jornais "O Globo", "Última Hora" e "Correio da Manhã". Em meados de 1960, conversara com Manuel Francisco do Nascimento Brito, diretor do "JB", para transferir-se para o jornal.

    Brito teria apalavrado sua contratação e combinara que o editor-chefe ligaria para o escritor para ultimar os detalhes. A ligação nunca ocorreu. Sem revelar a mágoa pessoal, Rodrigues escreveu que tinha pena de Brito porque, em seu próprio jornal, mandava menos do que a "estagiária de calcanhar sujo".

    O "Jornal do Brasil", batizado na infância de "jornal das cozinheiras", propagandeava ser o diário da inteligência brasileira em seu período áureo, que pode ser circunscrito a pouco mais de três décadas a partir de 1959.

    Entrou em acelerada decadência nos anos 1990. Endividado, deixou de ser impresso em 2010, quando a tiragem reduziu-se a menos de 20 mil exemplares por dia.

    A marca "Jornal do Brasil" será leiloada nesta terça (8) para o pagamento de dívidas trabalhistas. Está avaliada em R$ 3,5 milhões, lance mínimo do pregão a ser conduzido, às 11h30, pelo leiloeiro Nacif, na rua do Lavradio, no centro do Rio de Janeiro.

    O diário carioca foi o laboratório da mais bem-sucedida reforma gráfica e jornalística da imprensa brasileira. A repaginação havia sido timidamente esboçada por Odylo Costa, filho, em 1956. Coube a Janio de Freitas, hoje colunista da Folha, radicalizar a reforma gráfica, complementando-a com a modernização e a qualificação da produção jornalística, a partir de 2 de junho de 1959.

    Basta comparar a edição dessa terça-feira com a que havia circulado no domingo, 31 de maio. Parecem jornais produzidos em séculos diferentes, colocando o "JB" à frente de seu tempo.

    Um exemplo simples: Freitas criou a chamada de primeira página adotada hoje por todos os jornais brasileiros. Um resumo em poucas linhas da reportagem completa que está no corpo do jornal, em vez da internacionalmente consagrada forma de iniciar o texto na primeira página e concluí-lo internamente, levando leitor ao exercício de ir e vir à capa um sem número de vezes.

    Os 119 anos de vida impressa (1891-2010) do "Jornal do Brasil" são assim vasto campo para análise do desenvolvimento do jornalismo e da reconstrução das relações de poder no país.

    O recém-lançado "Jornal do Brasil "" História e Memória", da jornalista Belisa Ribeiro, promete os "bastidores das edições mais marcantes de um veículo inesquecível". Decepciona naquela que deve ser a missão número um do bom jornal: dimensionar os acontecimentos, atribuindo-lhes importância maior ou menor ao investigar por que ocorreram e demonstrar como se desdobraram. Acumula descrições e narrativas sem hierarquizá-las, contrapô-las ou criticá-las.

    Tenta deslindar a construção de diversas reportagens e primeiras páginas sem aventurar-se ao olhar severo da história. Bastidores de reportagens desimportantes desenrolam-se por páginas –um traficante esquecido aqui, um delegado corrupto acolá, um personagem fofo mais adiante. Mas omite, por exemplo, o magistral obituário de Carlos Lacerda, escrito por Elio Gaspari. Ou a edição do caderno especial, do mesmo autor, com a íntegra de todas as restrições oficiais de temas a serem abordados pelo jornal, assim que a censura à imprensa foi abrandada.

    O livro troca a investigação esmiuçada e a exposição encandeada dos fatos por uma prosa que se aproxima muito da conversa de botequim tão associada à categoria, justa ou injustamente. Não à toa, tem origem em encontros de bar dos "jotabetianos". A opção pelo coloquial faz com que a obra tenha leveza, buscada intencionalmente em era dominada pelas redes sociais, mas perde o rigor condizente com a história do seu objeto.

    FLAUBERT COPIDESQUE

    Nelson Rodrigues dizia que a Redação do "JB" tinha uma frota de estilistas. "Há sempre um Flaubert que redige ou faz o copidesque de sua primeira página", caçoava. Pois o copidesque flaubertiano espantar-se-ia com o aparecimento de uma frondosa cedilha na grafia de "cacei" (na pág. 180 do livro) e torceria o nariz para o uso frequente de pontos de exclamação ("Que surpresa!", "Um bafafá!").

    Riscaria com caneta vermelha e tons de crueldade o erro no nome de antiga coluna do jornal, batizada de "Segunda Seção". O mal afamado trocadilho com a seção militar de informações é tratado no livro como "Segunda Sessão" (pág. 367), como se caso de cinema fosse.

    Ex-assessora de Fernando Collor, a autora não erra quando, por duas vezes, aponta a "farsa" protagonizada pelo ex-patrão, evitando, no entanto, estender-se no tema.

    Dar voz a uma parcela dos jornalistas que fizeram a história do "Jornal do Brasil" é mérito do livro. Deixa os jornalistas falarem de si mesmos, em longas explanações. Ao construírem seus discursos, endossam ações, silenciam vozes, ampliam ou atenuam dissonâncias, promovem esquecimentos, recortam as lembranças despidos da objetividade profissional. Eles exercem assim o poder de contar sua história. Tornam protagonista quem foi criado para ser observador.

    BRANCO CONCEITUAL

    As lacunas, no entanto, impõem-se como o branco conceitual implantado em suas páginas por Amilcar de Castro. As quatro sedes que o "Jornal do Brasil" ocupou em sua vida centenária, por exemplo, refletiram momentos de ascensão e decadência.

    Do sobrado da rua Gonçalves Dias, no centro, nos tempos iniciais, ao suntuoso prédio da avenida Brasil que marcou época, o jornal construiu sua imagem pública, dialogando com o panorama urbano do Rio de Janeiro.

    Financiado em dólar em 1973, às vésperas da crise mundial de petróleo, o projeto do arquiteto Henrique Mindlin (1911-1971) imaginava suportar a expansão da empresa por 70 anos, até 2040. Podia abrigar cerca de 1.500 pessoas, engalanadas em vidro e mármore.

    O jornal que construiu o prédio virou ruína 30 anos antes de suas vigas começarem a se desgastar. O edifício da avenida Brasil, 500, sedia hoje um hospital de traumato-ortopedia. Exemplo de gestão familiar desastrosa, quase estúpida, o jornal da inteligência brasileira morreu de traumatismo craniano.

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    JORNAL DO BRASIL "" História e memória

    Autora Belisa Ribeiro

    Editora Record (404 págs., R$ 52)

    Avaliação regular - 

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