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    O que importa não é o jornal, mas o jornalismo, diz diretor do 'El País'

    FERNANDA GODOY
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, EM MADRI

    09/06/2016 15h00

    Foto: Divulgacao/El Pais
    Antonio Caño, diretor de Redacao do "El Pais" Foto: Divulgacao/El Pais
    Antonio Caño, diretor de Redação do jornal espanhol "El Pais"

    Coube ao jornalista Antonio Caño, 59, que passou a maior parte de seus 36 anos de profissão como correspondente nos Estados Unidos e na América Latina, comandar a maior guinada realizada pelo diário "El País".

    Maior jornal da Espanha, ele acaba de fazer 40 anos.

    Enfrentando sangria constante na circulação em papel e nas receitas publicitárias, anunciou em março sua conversão a produto "essencialmente digital" e "cada vez mais americano".

    Metade de seu público digital está na América.

    Dos 320 jornalistas da equipe, 60 estão nos EUA e na América Latina, e a balança pesará cada vez mais para o continente americano, onde subirão os investimentos.

    Na nova Redação de Madri, inaugurada no mês passado, o grupo de profissionais que edita o jornal em papel está confinado a um espaço nos fundos, equivalente em tamanho ao núcleo de vídeo. No coração da Redação estão os profissionais que acompanham as redes sociais.

    O diretor de Redação do diário espanhol dá como certa a morte do jornal em papel, mas diz que o que importa é que continue a haver jornalismo de qualidade em espanhol e em português. "Para conseguir isso, é necessário transformar-se", acrescenta.

    *

    Folha - Qual é sua visão do futuro do jornalismo?

    Antonio Caño - Não sei, mas sei que o "El País" estará nele. Continuará a haver essa marca, e ela dará credibilidade à informação. O primeiro e mais importante compromisso do "El País" é trabalhar para que continue a haver jornalismo de qualidade em espanhol e também em português. Para conseguir isso, é necessário transformar-se. Sem transformação, não há garantia de sobrevivência.

    De que maneira está se transformando "El País"?

    É preciso responder ao desafio tecnológico. Aprender a ser um jornal digital. Tivemos um período de aprendizagem muito difícil, mas neste momento somos um bom jornal digital. Respondemos de forma acertada ao desafio digital em todas as plataformas.

    Qual é o mercado digital do "El País" hoje?

    Temos 60 milhões de visitantes únicos por mês, um crescimento médio de cerca de 50% nos últimos dois anos. Mais de metade desse volume vem da América Latina, sendo 10% do Brasil (3,3 milhões de visitantes únicos em abril).

    Nosso primeiro mercado fora da Espanha é o México, e o segundo é o Brasil. Não temos ainda um produto específico para Estados Unidos, temos a edição que produzimos para a América Latina.

    Mas está nos nossos planos elaborar um produto bilíngue (em espanhol e inglês), levando em conta que há nos EUA uma comunidade de 50 milhões de pessoas que falam espanhol, mais gente do que na Espanha [cuja população é de 46 milhões].

    Em uma carta aberta aos jornalistas do "El País" em março o senhor assumiu o compromisso de continuar a publicar o jornal em papel "durante o tempo que seja possível"? Qual é o horizonte?

    O declínio da imprensa já aconteceu, não é uma coisa do futuro. O jornal de papel está em crise agora. Os jornais de referência nos países desenvolvidos estão em crise, todos perderam circulação em proporção gigantesca.

    O "El País" perdeu 50% da circulação em menos de uma década, não?

    Cerca de 50%, está na média do que perderam os grandes jornais, o "Le Monde" perdeu muito mais, na Itália há uma catástrofe.

    O hábito da leitura em papel está desaparecendo.

    As empresas que faziam jornais têm que entender essa realidade e facilitar a informação a nossos leitores da maneira como eles a leem hoje.

    A cúpula do jornal já discute uma data para a morte do jornal em papel?

    Não. Isso não somos nós que vamos decidir. Quem dirá será o mercado.

    No momento em que seja industrialmente impossível fabricar um jornal, quando não haja gente suficiente para comprar, não se poderá mais fazer. Ou publicaremos edições semanais.

    Não me importa tanto quando vai desaparecer o jornal em papel.

    Minha preocupação é que "El País" continue a existir, a dar informação com os mesmos critérios, com as mesmas exigências de rigor e de qualidade quando o papel desaparecer.

    Qual é a estratégia empresarial do "El País" para financiar esse jornalismo de qualidade? A publicidade digital está crescendo, responde por 40% das receitas, mas o "El País" não cobra pelo acesso digital. Qual será a fórmula?

    A indústria nunca vai ser a mesma, não adianta tentar repetir o modelo, é preciso criar outro.

    É verdade que esse modelo de negócio ainda não existe. Não há garantia de sucesso com "paywall" nem sem ele, talvez uma combinação de ambos seja melhor. Teremos que improvisar, inventar.

    Há planos para implantar "paywall"?

    No momento, não. Estamos em ritmo de crescimento muito grande e penetrando em um mercado amplo e novo, como a América Latina.

    Não me parece que este momento de expansão em que muitíssimos leitores estão nos conhecendo seja o momento adequado para estabelecer um "paywall".

    Estamos desenvolvendo outras ideias, como as "newsletters". Nesta fase, o mais importante é conhecer melhor nossos usuários.

    Como se faz para encontrar dinheiro para investimentos em momento de crise da indústria?

    É difícil. Por sorte, estamos equilibrando as contas. "El País" está dando lucro, não muito, mas o suficiente. Não estamos fazendo uma operação desesperada, sem respaldo. Cada passo que damos está adequadamente financiado.

    O crescimento publicitário está sendo muito alto no digital. Nosso cálculo é que financiamos cada movimento que fazemos na América Latina com o crescimento da publicidade digital.

    Estamos montando uma estrutura cada vez mais parecida ao que "El País" pode ser. Não ao que foi o "El País" do passado, mas ao que pode ser o "El País" hoje.

    Um exemplo: crescemos na América Latina, mas perdemos 50 ou 60 jornalistas que tínhamos antes em cidades espanholas. Para nós, hoje é mais importante ter 25 pessoas no México que na Andaluzia [região sul da Espanha].

    Se fosse fundado hoje, já não se chamaria "El País"?

    Talvez se chamasse "El Globo" (risos). Não estamos acrescentando, estamos transformando. Estamos modificando a estrutura para que se pareça ao jornal do futuro.

    A exposição de 40 anos do "El País" tem muitas imagens, vídeos, realidade virtual, e quase nada de texto. Os meios vão convergir para a mesma linguagem ou um jornal continuará a ter um DNA diferente?

    Os meios podem ser parecidos, mas a linguagem, não. A mensagem, não.

    O que nós dizemos não se parece em nada ao que dizem nossos concorrentes. O produto "El País" mantém plenamente suas marcas de identidade.

    Na minha sala na nova Redação, há uma foto das pessoas lendo avidamente "El País" na noite de 23 de fevereiro de 1981 [edição histórica sobre uma tentativa de golpe de Estado na Espanha]. Botei essa fotografia aí para que eu tivesse um norte, uma referência, para que tudo isso de que estamos falando não me fizesse esquecer a razão pela qual estamos aqui.

    E essa razão é que, quando acontece algo, as pessoas recorrem a nós para se informar corretamente, de forma confiável.

    Se fazemos isso em vídeo, ou utilizando redes sociais, me importa menos.

    Dean Baquet, editor-executivo do "New York Times", escreveu carta à Redação em maio explicando que sua fórmula para o futuro conta com mais reportagens exclusivas e menos histórias que todos os veículos na internet tenham. "El País" também aposta nisso?

    As matérias exclusivas são o objetivo de todos os jornalistas. Para um meio como "New York Times" o "El País", são ainda mais importantes.

    Mas o "El País" produz cerca de 300 itens informativos [textos, vídeos etc.] por dia, é impossível que seja tudo exclusivo. Tanto como a exclusividade, o que nos distingue é a maneira de contar as coisas, a credibilidade, em última instância. É o ativo mais importante.

    Em uma entrevista à Folha há cinco anos, o fundador do "El País", Juan Luis Cebrián, disse que não acreditava que um jornal pudesse migrar para a internet. "Um jornal na internet não é um jornal, é outra coisa", afirmou Cebrián. O que mudou?

    Cinco anos é muito tempo. Estou como diretor há dois anos e mudou tanta coisa, construímos até uma nova Redação.

    O contexto é o seguinte: naquele momento se debatia se os jornais deveriam passar para a internet. Foi um erro enorme que cometeram todos os jornais, transportar suas edições, com formato, títulos, fotos, para o digital. Não entendíamos que internet era outro meio e que, portanto, era necessário utilizar outra linguagem.

    Na internet, "El País" é muito mais que um jornal.

    O que muda na relação com os leitores? Na nova Redação há mais gente dedicada, por exemplo, a acompanhar o que está "bombando" na internet?

    Há uma resistência dos jornalistas a essa mudança. Buscamos inconvenientes nos progressos. Na linha de "como agora sabemos o que as pessoas querem, fazemos o produto que as pessoas querem ler, não o que devem ler, como era antes".

    Isso é um equívoco.

    Ter mais instrumentos tecnológicos é fantástico. Conhecer melhor nossos leitores é estupendo.

    Nos anos do jornalismo de papel também fazíamos pesquisas para saber o que queriam nossos leitores. A vantagem é que agora podemos saber o que quer cada um de nossos leitores, e em tempo real.

    Se pudermos chegar a fornecer a cada leitor o que seja mais próximo do seu campo de interesse, é perfeito.

    Mas não vou fazer concessões. Conheço as fraquezas humanas. Nossos leitores terão as notícias que "El País" seja capaz de elaborar e que consideremos importantes ou interessantes, ou divertidas. Não vamos nos dedicar à frivolidade nem ao escândalo.

    Como é a relação de "El País" com o Facebook?

    Temos uma boa relação. Estamos publicando na plataforma "instant articles", do Facebook, e na do Google também.

    É uma das grandes dúvidas, e um dos grandes desafios, saber como o fato de publicar nessas plataformas tecnológicas vai afetar o jornalismo. É um fenômeno recente e difícil de analisar.

    Mas o nível de crescimento do índice de leitura das nossas notícias publicadas no Facebook ou no Google, que é altíssimo, nos faz pensar numa mudança de conceito.

    Há um temor de que isso possa roubar tráfego do "El País"?

    Sim, mas há mais gente lendo nossas notícias.

    Não se trata de bater o recorde mundial de tráfego na web, mas de que muita gente leia nossas notícias.

    Se Facebook e Google nos podem ajudar nisso, estamos encantados. Temos que ver como fazer um modelo de negócio que compense a todos.

    Quais foram as dificuldades e as surpresas que "El País" encontrou desde que montou sua edição digital brasileira, em 2013?

    É nossa edição que mais cresce em todo o mercado global, com diferença. Estamos crescendo nos últimos dois anos, em média, 50% no mundo; no Brasil, 200%.

    A acolhida que tivemos superou todas as nossas expectativas.

    Era uma operação modesta, exploratória, porque sabíamos que o mercado brasileiro é muito grande e complexo, e que competimos com títulos muito consolidados, um mercado de mídia forte.

    Foi um êxito muito superior ao esperado e creio, francamente, que nos tornamos um meio influente. Para nossa surpresa, porque não era essa nossa intenção.

    A crise do impeachment da presidente Dilma Rousseff está ajudando nessa expansão?

    Em todo o mercado americano, temos a vantagem de estar suficientemente longe para fazer um jornal que não é local, para não ter compromissos políticos nem empresariais, mas ao mesmo tempo, como um jornal espanhol com muitos anos de presença na América Latina, temos proximidade suficiente para entender o que acontece.

    Compreendemos a situação, mas não estamos demasiado implicados. Isso é muito útil, nos dá uma posição boa e nos dá influência. Reforça nossa credibilidade. Isso aconteceu no Brasil.

    A crise econômica no Brasil afeta os planos da empresa para o país?

    Não. A crise não nos dissuadiu nem nos afetou, talvez porque nossa operação fosse modesta.

    Era uma operação de longo prazo, sem objetivo de buscar rentabilidade imediata.

    Fomos surpreendidos e vamos ter que reforçar, que contratar gente. É o que nos exige o êxito que obtivemos. Vamos pensar num projeto de mais envergadura.

    Em outros países da América Latina, como a Venezuela, "El País" não é visto como imparcial. O presidente Nicolás Maduro acusa a imprensa espanhola de fazer "guerra psicológica". Como o senhor responde a isso?

    A situação na Venezuela não tem comparação com a de nenhum outro país do continente.

    Não estamos instalados na Venezuela, só temos correspondentes no país. O único delito que cometemos é informar sobre a Venezuela com certa frequência. Não mais do que informávamos sobre a ditadura na Argentina ou no Chile.

    Eu cobri o Chile para "El País" durante a ditadura Pinochet [1973-1990], e pessoas do regime me pediam que explicasse por que havia tanto interesse na Espanha sobre o que ocorria no Chile.

    É o mesmo que diz Maduro hoje.

    Felizmente, no Brasil ninguém nos acusou de informar demais.

    RAIO-X / ANTONIO CAÑO

    Idade: 59

    Nascimento: Martos (Espanha), em 1957

    Formação: graduado em jornalismo pela Universidade Complutense de Madri

    Carreira:
    * começou na agência de notícias Efe em 1980. Desde 1982, está no "El País"
    * foi correspondente nos Estados Unidos e na América Latina
    * fundou a edição América do jornal
    * assumiu o cargo de diretor de Redação em 4 de maio de 2014

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