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    Estados e municípios estão acumulando dívidas, diz economista

    MARIANA CARNEIRO
    DE SÃO PAULO

    28/06/2016 02h00

    Leo Pinheiro/Valor
    Jose Roberto Afonso, economista da FGV, fotografado na cobertura da FGV em Botafogo
    José Roberto Afonso, economista da FGV, fotografado na cobertura da FGV em Botafogo

    Mal fechou a negociação da dívida dos Estados com a União, o governo federal terá outra crise a resolver com governadores e prefeitos.

    Eles estão acumulando dívidas com fornecedores e servidores, alerta o economista José Roberto Afonso, 55.

    O colapso desses financiadores informais do setor público é um risco e pode piorar o já ruim quadro de desemprego do país.

    "O 'não pagar' [dos governos locais] talvez seja hoje um dos maiores bancos do país", afirma Afonso.

    Especialista em contas públicas, um dos formuladores da Lei de Responsabilidade Fiscal, Afonso aponta falhas na regra proposta pelo governo federal para reduzir os gastos no futuro.

    Folha - A calamidade financeira é exclusividade do Rio?

    José Roberto Afonso - Várias prefeituras, antes do Rio, já tinham decretado o mesmo, como Teresópolis (RJ) e Betim (MG). Entre os Estados, temo que o Rio seja apenas um precursor. Há uma grave crise estrutural, que vai da [queda de] receita –com excessiva guerra fiscal e desindustrialização, que tornaram o ICMS um imposto obsoleto– até uma expansão desmedida das despesas. E houve um crescimento forte dos financiamentos, como alternativa à baixa geração de receita própria. A depressão só agravou esse problema.

    Como avalia o teto de gastos proposto pelo governo?

    A direção é correta, que é colocar um norte para as despesas. Mas a desaceleração das despesas e, por consequência, a redução da dívida só vai ser alcançada se tivermos um crescimento muito acelerado. É um bom plano para um país que cresce como a China.

    Como assim?

    Está se tentando colocar uma trava na expansão do gasto, mas essa trava tem como referência um ano de pico [de despesas], que ainda está em aberto. Isso é um pouco inusitado. E se o governo detonar gastos até o fim do ano?

    Outra coisa que é preciso saber é se a base será a despesa pública empenhada, a liquidada ou a paga. Parece detalhe, mas entre o empenhado e o pago vão dezenas e dezenas de bilhões de reais.

    Poderia explicar?

    Veja o que está acontecendo nos Estados. Como eles não têm financiamento bancário, estão se endividando junto a seus fornecedores e servidores. Como isso é feito? O Rio, por exemplo, manda construir um trecho do metrô ou uma rua do Parque Olímpico e empenha a despesa. A construtora entrega a obra.

    Como está pronta, o governo teria que liquidar e mandar pagar. Mas o "não pagar" talvez seja hoje um dos maiores bancos do país. Os que vendem ou trabalham para o governo e não recebem são os maiores financiadores do setor público, depois dos títulos da dívida. Então, voltando à definição, estamos falando do quê? Do empenhado ou do pago? Não sabemos o ponto de partida.

    Pode ter sido uma estratégia de negociação no Congresso?

    Não sei, mas há de convir que é algo estranho. Desde o anúncio das medidas na área fiscal, nenhum documento foi apresentado. Ainda não conhecemos os pormenores.

    Imaginamos que o governo quer fazer uma regra restritiva, mas, para ela funcionar, o país precisa crescer muito. Se tiver um PIB caindo, como hoje, a regra é flexível demais.

    A arrecadação atualmente cai 11% em termos reais, ou seja, abaixo da inflação. Se a regra estivesse valendo, a despesa cresceria pela inflação. A regra, portanto, permitiria que as despesas crescessem mais do que as receitas.

    Para que a despesa caia como proporção da receita, é preciso que a receita cresça mais do que a inflação. E, se ela cresce junto com a economia, o crescimento tem que ser superior à inflação [hoje em 9,3%]. Ou seja, um crescimento chinês.

    A regra, como está, não está desenhada para a situação de hoje. Então fica a pergunta: como sairemos do fundo do poço? De certa forma, essa discussão do gasto é um luxo.

    A dívida pública pode esperar até o teto fazer efeito?

    O problema da dívida não será resolvido só contendo despesa. É preciso voltar a crescer, e, para voltar a crescer, é preciso convencer quem quer dívida pública a investir em outra coisa. Não é só o governo que quer se endividar, os investidores querem títulos públicos.

    Agora, se o objetivo é reduzir dívida pública, o que tem que ser feito é aprovar o limite da dívida pública, que já está no Congresso. E não ir pelo atalho, tentar chegar lá pela [redução da] despesa.

    Quando não se consegue aumentar o endividamento, o gasto cai. É isso que está acontecendo com Estados e municípios. O gasto está caindo porque eles não têm como se financiar. Ainda assim, estão se financiando de uma forma a descoberto.

    Como assim?

    Prefeituras e Estados não têm acesso a crédito, só podem tomar empréstimos junto ao Tesouro. No passado recente, o Tesouro flexibilizou, deu garantias para operações de crédito externas e internas. Fez isso de uma maneira desordenada, o que ajudou a empurrar os Estados para a crise em que estão.

    Agora, o governo diz que acabou o dinheiro, que não tem nada a ver com isso, que os Estados façam seus ajustes. Mas eles não têm como se ajustarem sozinhos. Porque o ajuste deles é o endividamento forçado junto a seus fornecedores e servidores.

    De quanto seria essa dívida?

    Só para ter uma ideia, o Rio de Janeiro, entre janeiro e abril, empenhou R$ 23,65 bilhões e deixou de liquidar quase 20% disso. Certamente pagou menos ainda.

    É um equívoco acreditar que a crise dos Estados é só a dívida com a União. Antes fosse. Os fornecedores e servidores de Estados e municípios, que estão com seus pagamentos atrasados, estão sofrendo uma moratória maior ainda. E isso não está acontecendo por sadismo de governadores e prefeitos.

    A União terá que se endividar para resolver isso. Entre 2011 e 2014, a União estimulou Estados e municípios a se endividarem de maneira absurda, irresponsável. O que aconteceu? Estão todos no fundo do poço. Mas os governadores estão mais no fundo do que o presidente da República.

    Se é uma federação, a União terá que resolver de maneira conjunta. Pode-se argumentar que, para isso, o governo federal terá que se apertar mais. Vai, sim. Por que os Estados e municípios deveriam se apertar sozinhos? O ajuste tem que ser para todos e o maior desajuste foi feito pelo governo federal.

    Dá para tirar os Estados da crise sem aumentar imposto?

    Não dá para sair da crise sem que quem os colocou na crise não interfira. O governo federal pode achar que não tem nada a ver com isso e deixar como está. Mas só vai agravar a crise, porque haverá problemas crescentes nos serviços públicos essenciais prestados por Estados e municípios: educação, segurança e saúde.

    Além disso, se os seus fornecedores entrarem em colapso, o desemprego vai ficar mais alto ainda. Especialmente na construção e em outras áreas que são altamente empregadoras de mão de obra, como coleta de lixo e serviço de água e esgoto.

    Ou o governo federal faz de uma maneira ordenada, ou será obrigado a fazer isso da pior maneira, pela intervenção federal, que é a falência do Estado ou município.

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    RAIO-X

    Formação
    Economista com mestrado pela UFRJ e doutor pela Unicamp

    Atuação
    Pesquisador da FGV/Ibre e professor do IDP (Instituto Brasiliense de Direito Público). Foi consultor técnico do Senado e faz consultorias independentes para organismos internacionais, como FMI e Banco Mundial. Foi um dos formuladores da Lei de Responsabilidade Fiscal e superintendente da área fiscal do BNDES; deixou o banco em 2013. Mantém um blog com publicações econômicas (joserobertoafonso.com.br)

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