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    Cifras & Letras

    Crítica

    Livro mostra lado cruel da crise das hipotecas nos EUA

    TONI SCIARRETTA
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

    02/07/2016 02h00

    Lisa Epstein, uma enfermeira que cuida de pacientes terminais de câncer, descobre um dia que vai ser despejada de sua casa, em Palm Beach, na Flórida (sul dos EUA), devido à falta de pagamento do financiamento imobiliário por um banco cujo nome nunca tinha ouvido falar: o US Bank.

    Ela tinha financiado a casa com uma instituição, a DMI Mortgages. Não sabia exatamente por quê, mas pagava as prestações nas agências do Chase.

    O que ela não sabia era que o empréstimo, na verdade, era do JPMorgan, que comprou a dívida que fora "originada" (quer dizer: concedida) pela DMI. Depois, essa dívida foi "securitizada" (quer dizer: se tornou uma aplicação financeira) e foi parar num veículo de investimento (um truste, figura que não existe no Brasil) de outro braço do JPMorgan encabeçado pelo US Bank. O US Bank contratou os serviços do Chase para fazer as cobranças.

    Confuso? Imagina para quem, prevendo dificuldades financeiras adiante, pretende renegociar a dívida antes de ficar inadimplente? Era o caso de Lisa, que durante meses procurou o Chase. Obviamente, nenhum atendente do Chase conseguia nem sequer localizar seu prontuário; ela não era cliente do banco.

    À época, um em cada quatro mutuários da casa própria estava inadimplente na Flórida, um dos epicentros da crise. Em meio ao caos no setor imobiliário, Lisa se deu conta de que só iria ganhar a atenção dos credores se ficasse com a dívida atrasada.

    Foi o que aconteceu. Mas ela acabou numa emboscada das empresas especializadas em despejo na Flórida, chamada de Fraude do Despejo.

    O crime teria prejudicado milhões de mutuários da casa própria, segundo o livro "Chain of Title", que considera a fraude o maior atentado contra o direito do consumidor já ocorrido nos EUA.

    Para recuperar rapidamente os imóveis hipotecados, os credores contratavam empresas que, muitas vezes, forjavam documentos e colocavam data retroativa nos comunicados para acelerar os processos na Justiça. Foi o caso de Lisa, que se deu ao trabalho de ler toda a papelada desde a concessão do financiamento. Descobriu várias inconsistências, além de documentos fraudados.

    Com mais duas vítimas da fraude, Lisa estudou o assunto a fundo, se tornou especialista na cadeia americana de financiamento imobiliário e fundou um movimento contra despejos ilegais que chegou aos tribunais da Flórida.

    O livro, do jornalista David Dayen, exibe o lado cruel das hipotecas "subprime" (segunda linha) visto pelas pessoas que perderam suas casas por falta de pagamento.

    VERGONHA

    Além de explicar, didaticamente, o funcionamento do crédito imobiliário americano, o ponto alto do livro é discutir a vergonha que o americano de classe média sente de ficar com o nome sujo na praça e de ser despejado.

    Em determinado momento da narrativa, Lisa percebe que a maioria dos seus pacientes, todos doentes terminais, estavam passando pelo mesmo problema. Ninguém, porém, falava abertamente sobre o assunto. Nem ela.

    "América tem um nome para pessoas que deixam de pagar a hipoteca: deadbeat", escreve o autor, referindo-se ao adulto ainda sustentado pelos pais, que não estuda nem trabalha nem procura emprego.

    O livro descreve o silêncio dos moradores da Flórida diante de caminhões de mudança circulando pelas ruas, levando as coisas de famílias inteiras para campings ou para a casa de parentes que não tinham como recebê-las.

    A história de Lisa e do seus colegas deu fim ao silêncio. Os três superaram a vergonha, a sensação de fracasso e o isolamento causado pelo despejo para lutar pelos direitos desses consumidores.

    Chain of title
    AUTOR David Dayen
    EDITORA New Press
    QUANTO R$ 64,20 na amazon.com.br (320 págs.)
    AVALIAÇÃO bom

    Edição impressa
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