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    Falar abertamente sobre sexo pode ter benefício comercial, diz publicitária

    MARIANA BARBOSA
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

    20/07/2016 12h57

    Jonathan Grassi
    Cindy Gallop, a fundadora do 'Make love no pornt
    Cindy Gallop, a fundadora da rede social Make Love not Porn

    A expressão "sexo vende" [sex sells] é tão antiga quanto a propaganda. Acredita-se que teria surgido em 1870, quando uma marca de cigarros colocou uma imagem de mulher em pose sugestiva na embalagem. Porém, para a publicitária e grande defensora da igualdade de gênero Cindy Gallop, as marcas estão fazendo tudo errado ao enxergar sexo pela ótica do homem branco ocidental.

    "Todo mundo faz sexo no automóvel, mas nenhuma montadora investe em tecnologia de design de produto para melhorar a experiência de quem faz sexo no automóvel", diz Gallop, fundadora da rede social Make Love not Porn (Faça amor e não pornografia), que estimula as pessoas a compartilharem vídeos de sexo em situação realista. "A indústria nem começou a ter noção do potencial de vendas quando você fala sobre sexo a partir da ótica feminina", diz.

    Estrela das conferências TED, Gallop causou furor no Festival Cannes Lions de propaganda no mês passado, em Cannes, ao defender que as marcas deveriam romper o tabu e falar abertamente sobre sexo de verdade.

    "As marcas que conseguem superar e falar abertamente sobre sexo podem obter um tremendo beneficio comercial", diz.

    "Sempre que falo isso, as pessoas logo pensam que estou falando de algo que não pode ser exibido antes das 21h", diz. "Não, não e não. Estou falando sobre utilizar os mesmos insights e a mesma psicologia usadas para compreender o comportamento do consumidor para estudar o fato de que somos todos seres sexuais. Nossa sexualidade nos move mais do que qualquer outro aspecto da vida."

    Bastante influente no meio publicitário, tendo trabalhado por 30 anos em cargos de destaque, Gallop é autora de um comentário no Twitter que causou o maior escândalo do festival de Cannes este ano e levou a agência brasileira AlmapBBDO a devolver dois leões de uma campanha para a Aspirina, sob acusação de incentivar a cultura do estupro.

    Para ela, problemas como assédio sexual só serão resolvidos quando as mulheres forem efetivamente bem representadas nas lideranças executivas e nos conselhos das empresas.

    A seguir os principais trechos da entrevista concedida por Skype.

    TABU

    Gostaria de ver na propaganda, e em todas as formas de cultura popular, uma atitude mais honesta, aberta e saudável em relação a sexo. Após oito anos de MLNP (Make Love not Porn), está claro pra mim que a questão não é pornográfica. É que não falamos sobre sexo no mundo real. E na falta de conversa sobre sexo, a propaganda e a cultura popular, como o cinema, contribuem para que a gente tenha uma compreensão absolutamente equivocada sobre como devemos operar em relação a sexo.

    MISSÃO DO MLNP

    Tudo o que a gente faz é para facilitar as conversas sobre sexo. Precisamos falar aberta e honestamente. Pais com filhos, professores nas escolas, todo o mundo com todo o mundo. E, igualmente importante, que as pessoas falem sobre sexo de forma privada dentro de seus relacionamentos.

    INSEGURANÇA

    As razões pelas quais as pessoas não falam são varias: sexo é uma área de insegurança rampante para todos nós. Ficamos muito vulneráveis quando ficamos pelados e os egos sexuais são muito frágeis. As pessoas têm medo de falar de sexo com as pessoas com quem fazem sexo, enquanto estão efetivamente transando. Você fica apavorado de falar sobre algo que esteja acontecendo e eventualmente machucar os sentimentos da outra pessoa. Ao mesmo tempo, você quer agradar o parceiro.

    INICIAÇÃO PELA PORNOGRAFIA

    Todo mundo quer ser bom na cama, mas ninguém sabe exatamente o que isso significa. As pessoas estão sendo iniciadas pela pornografia, pois os pais nunca falam sobre isso, e a escola não ensina.

    Outra fonte de aprendizado é Hollywood. Na falta de uma discussão aberta e saudável sobre sexo, o cinema nos ensina que o sexo bom não tem fala. As pessoas se juntam, ninguém fala, cortinas balançam ao vento, eles vão devagar para a cama e ninguém fala: "não, você está me machucando"; "Ei, o que você gosta, o que te dá prazer?". Eles se juntam e, no mesmo instante, o orgasmo acontece. Isso é um grande problema.

    BOA COMUNICAÇÃO

    Make Love not Porn é um acidente na minha vida. Mas o que não é acidente é o fato de eu ter passado 30 anos no negócio de comunicação. Sei bem que tudo de maravilhoso, na vida e nos negócios, depende de um boa comunicação. E sexo não é diferente. Sexo fantástico vem com uma boa comunicação. Há anos venho militando para que a minha indústria entenda isso e aceite que temos uma responsabilidade em ajudar os consumidores a normalizar essa área universal de experiência humana.

    RETORNO COMERCIAL

    As marcas pagam para as agências trabalharem em todo e qualquer aspecto do comportamento do consumidor, menos a sua sexualidade. Mas as marcas que conseguem superar e falar abertamente sobre sexo podem obter um tremendo beneficio comercial. Em todos os setores, com implicações para qualquer marca e produto, incluindo aquelas que acham que sexo não tem nada a ver com elas.

    MONTADORAS

    As pessoas fazem sexo no carro. Muita gente faz, em todos os países do mundo, mas as montadoras falham espetacularmente em incluir isso no design de produto e no marketing.

    Outro exemplo óbvio é o da indústria de colchões. Todos fazemos sexo na cama, mas as fabricantes de colchão só falam sobre a fantástica nova tecnologia para se dormir melhor. Ninguém está desenvolvendo inovação em design de produto para as pessoas se divertirem mais na cama fazendo sexo.

    SEX SELLS

    Estou cansada de ser procurada por repórteres que estão escrevendo sobre pornografia ou publicidade e me perguntam: "Cindy, sexo vende? Qual a sua opinião?" Não. Sexo não vende dessa forma que todo mundo entende quando faz essa pergunta, que é pela ótica masculina –e é resultado do fato de que 97% dos diretores de criação são homens, só 3% são mulheres. A indústria nem começou a ter noção do potencial de vendas quando você fala sobre sexo a partir da ótica feminina.

    ÓTICA FEMININA

    Ninguém tem ideia do que é isso pois ninguém jamais viu. Sugiro que as pessoas assistam ao filme "Magic Mike XXL", que é a continuação do original "Magic Mike". É um filme sobre strippers masculinos e eu garanto que todo homem, bem como toda mulher, vai adorar. Tem sexo, amor, romance, relacionamento. O diretor [Gregory Jacobs] é homem, mas é um filme que mostra a ótica feminina, o que faz dele um filme incrível para homens e mulheres. Só vendo esse filme para entender.

    SERES SEXUAIS

    Quando falo que a propaganda tem de se abrir para o sexo verdadeiro, as pessoas instantaneamente pensam: "mas só pode mostrar isso depois de tal hora". Não, não, não. Não estou falando de nada nem próximo a algo patético como mostrar sexo em propaganda. Estou falando sobre utilizar os mesmos insights de psicologia usados para compreender o comportamento de consumidor para estudar o fato de que somos todos seres sexuais. Isso produziria uma comunicação muito mais cheia de nuances, mais humana e mais relevante socialmente. Nossa sexualidade nos move mais do que qualquer outro aspecto da vida.

    ESTEREÓTIPO

    Não é por acaso que apenas 3% das mulheres em comerciais sejam percebidas como inteligentes, uma vez que 97% dos criativos são homens. Quando você só tem 30 segundos ou um outdoor, estereótipos são úteis. Mas quando você tem uma agencia totalmente dominada por homens brancos conversando com homens brancos no topo da indústria, você produz estereótipos não apenas de mulheres, mas também de homens.

    Por que quando a propaganda retrata a família, a menina está com a mãe na cozinha e o menino jogando bola com o pai? Não pode ser o contrário, o menino na cozinha e a menina jogando bola? Não custa nada a mais fazer isso. Não vai deixar o cliente chateado. Nossa indústria perpetua estereótipos diariamente, e aqui está uma pequena ação, sem custo algum, que pode ajudar a mudar as coisas.

    NUANCE

    Só quando tivermos mais mulheres do que homens nos departamentos de criação é que veremos as mulheres sendo melhor retratadas, e homens, também. Fico bestificada com a profusão imoral de jovens do sexo masculino nas propagandas de cerveja, estou por aqui de pais que não ajudam na casa, de pais desajeitados: esses estereótipos são objetificantes e um insulto aos homens. Quando tivermos mais mulheres na criação, vamos ver mais nuances na comunicação. Quando você faz isso, as famílias se relacionam com empatia e vão correr para comprar os produtos.

    TOLERÂNCIA ZERO

    30 homens estupraram uma menina de 16 anos e jogaram o vídeo nas redes sociais no Brasil. O anúncio da Aspirina feito pela AlmapBBDO resumiu a cultura do estupro em uma casca de noz. Tem que ter tolerância zero com esse tipo de campanha. Se você acha que pode filmar sem consenso, foda-se essa merda!

    BAIXO PARA CIMA

    As mudanças vão acontecer de baixo para cima, não do topo para baixo. Nada vai mudar se depender de quem está no topo. O sistema funciona para eles muito bem, com todos os bônus que eles recebem. Pra que que vão querer chacoalhar o barco? Se a gente for esperar a mudança acontecer de cima para baixo, vai demorar muito. Eu acredito que as mudanças acontecem quando cada um, a cada dia, fizer micro-ações para mudar as coisas. Se todos fizerem um pouquinho a cada dia, cumulativamente isso ganha escala e é capaz de gerar mudanças.

    Como mudar o mundo por meio da propaganda? Muito fácil, basta refletir o mundo como ele realmente é. Ao fazer as pessoas se sentirem melhores sobre as coisas pelas quais todos nóss temos que lutar no nosso dia a dia e ao inspirar as pessoas a viverem as vidas que eles podem viver, a gente pode mudar o mundo. Os relacionamentos hoje são uma parceria entre iguais –esse é o novo modelo aspiracional. Hoje, é absolutamente ok a mulher ganhar mais do que o homem e o homem dividir o cuidado das crianças.

    DIVIDINDO A CARGA

    Amo a campanha #sharetheload da marca de sabão Ariel na Índia [em que os homens são incentivados a dividir a carga do trabalho doméstico, como lavar a roupa]. Traduz muito bem o que eu defendo: o futuro está em fazer o bem e ganhar dinheiro simultaneamente. Ariel tem uma razão para fazer essa campanha pela natureza do produto e conseguiu a integração perfeita de responsabilidade social em uma campanha comercial, o que faz o produto ainda mais desejável. Amo!

    ASSÉDIO

    Não estamos progredindo suficientemente rápido em termos de igualdade de gênero. Precisamos mudar os números rapidamente. De baciada. Não basta ter uma mulher no conselho ou em posição de liderança. Um organismo isolado tem que se adaptar à cultura na qual está inserido para sobreviver. Precisamos de três ou mais. Em um ambiente com igualdade de gênero, instantaneamente você altera as dinâmicas e resolve todos os problemas. Acaba o assédio sexual. Quando tem muita mulher por perto, os homens não se sentem confortáveis para assediar.

    PATERNIDADE

    Muito importante que sejam introduzidas novas políticas em relação à maternidade para os dois gêneros, não só para a mãe. Hoje, é como se a maternidade fosse algo de responsabilidade só das mulheres. A diferença de tempo de licença leva diretamente a uma desigualdade de responsabilidades no cuidado com as crianças que dura para toda a vida. Mesmo pais que ajudam, quando chegam em casa do trabalho, é mais fácil para a mulher sair fazendo do que ter que explicar para o marido como as coisas funcionam.

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    RAIO-X - CINDY GALLOP
    56 anos

    Carreira
    Entrou na BBH em Londres em 1989. Em 1998, fundou o escritório da BBH em Nova York e atuou como presidente do Conselho.
    Fundadora do portal de microações IfWeRanTheWorld e da rede social de compartilhamento de vídeos sobre sexo MakeLoveNotPorn. É também palestrante e consultora na área de publicidade.

    Formação
    Formada em literatura inglesa pela Universidade de Oxford, com mestrado em língua e literatura inglesa pela mesma universidade e mestrado em teatro da renascença europeia pela Universidade Warwick.

    Prêmio
    Em 2003, foi eleita Advertising Woman of the Year pela Advertising Women of New York. Sua palestra de 4 minutos no TEDTalk em 2009 foi descrita como uma das mais comentadas daquele ano

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