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    Entenda a disputa tributária entre Apple e União Europeia

    DO "FINANCIAL TIMES"

    30/08/2016 12h42

    Philippe Huguen/AFP
    Arranjos ajudaram a Apple a pagar alíquota ultrabaixa sobre lucros auferidos nos últimos 10 anos
    Arranjos ajudaram a Apple a pagar alíquota ultrabaixa sobre lucros auferidos nos últimos 10 anos

    Na terça-feira, a Irlanda será instruída a recuperar bilhões de euros da Apple, deflagrando uma das maiores disputas tributárias do planeta e um duelo político entre a Europa e os Estados Unidos.

    Com base em uma obscura decisão tributária da Irlanda com relação à Apple em 1991, período de dificuldades para a fabricante de computadores, a ordem das autoridades de defesa da competição em Bruxelas tem o potencial de transformar a maneira pela qual as manobras das grandes empresas para evitar impostos são policiadas na Europa.

    A ordem de recuperar impostos atrasados tem o potencial de ser grande o bastante para ricochetear na campanha presidencial dos Estados Unidos, deixar na sombra o próximo lançamento de produtos da Apple, na semana que vem, e dar início a uma batalha judicial histórica.

    A Irlanda e a Apple negam veementemente qualquer irregularidade, e consideram a decisão como exemplo gritante de interferência excessiva da parte do braço executivo da União Europeia, e que ela não sobreviverá ao escrutínio dos tribunais.

    O cerne da questão são arranjos tributários que ajudaram a Apple a pagar uma alíquota ultrabaixa, de apenas 4%, sobre quase US$ 200 bilhões em lucros internacionais auferidos nos últimos 10 anos.

    As imensas, e pouco tributadas, reservas de caixa da Apple no exterior são as maiores entre as multinacionais norte-americanas.

    Os US$ 187 bilhões que a companhia detinha fora dos Estados Unidos no fechamento de suas contas em 2015 respondem por uma grossa fatia do US$ 1,2 trilhão que multinacionais norte-americanas mantêm como reservas fora do país, na esperança de que uma reforma tributária nos Estados Unidos venha a reduzir o custo de repatriação desses lucros.

    Até agora, os lucros internacionais da Apple vêm sendo tributados levemente.

    Qual é a queixa da Comissão? Por que a subsidiária europeia da Apple é tão importante?
    Cerca de 90% dos lucros internacionais da Apple são atribuídos às suas subsidiárias irlandesas, que são altamente lucrativas porque detêm os direitos sobre a propriedade intelectual da empresa.

    Mas essas entidades irlandesas pagam poucos impostos porque não são consideradas residentes fiscais de qualquer jurisdição —uma estrutura comum, que explora as diferenças entre as definições de residência fiscal da Irlanda e dos Estados Unidos.

    A Comissão Europeia está tentando contestar esse arranjo com a alegação de que oferece vantagem tributária desleal à companhia, e assim distorce a competição. A Comissão afirma que isso equivale a assistência estatal ilegal, e representa violação das restrições da União Europeia à assistência estatal a empresas.

    Embora tome por base decisões tributárias recentes da comissão contra arranjos tributários da Starbucks na Holanda e da Fiat no Luxemburgo, o caso da Apple é o maior e o mais significativo até o momento.

    Qual é a posição da Apple quanto à investigação?
    Os investigadores da União Europeia examinaram de que maneira a Apple pôde pagar alíquota tributária de menos de 1% sobre suas vendas na Europa, em determinados anos. Mas a empresa insiste em que paga rigorosamente todos os impostos que deve, em todas as jurisdições.

    Tim Cook, o presidente-executivo da Apple, disse ao jornal "Washington Post" no mês passado que a estrutura tributária adotada na Irlanda se aplicava a todas as empresas e não era exclusiva da Apple. Em outras palavras, a Apple não obteve tratamento especial na Irlanda, e portanto não desfrutou de assistência estatal especial.

    Com alguma veemência, ele defendeu pessoalmente a posição da empresa junto a Margrethe Vestager a comissária de defesa da competição da União Europeia, em janeiro. Ele também disse que sua empresa é o maior contribuinte dos Estados Unidos. "Ou seja, não sonegamos impostos. Pagamos o que devemos, e até mais".

    Como a Irlanda reagirá?
    A posição da Irlanda é que qualquer arranjo que confira vantagens tributárias à Apple que não estejam disponíveis para outras companhias representaria violação da lei do país. O regime tributário irlandês para empresas se provou controverso junto à França e Alemanha.

    Ainda assim, as autoridades de Dublin tomaram diversas medidas nos últimos anos a fim de remover os aspectos mais contenciosos desse regime. Essas medidas incluem a eliminação da estrutura tributária "apátrida" adotada pela Apple a fim de minimizar sua carga tributária na Irlanda. Como a Apple, a Irlanda está determinada a recorrer da decisão junto à Justiça europeia.

    Por que o caso irrita tanto os Estados Unidos?
    Isso é mais que uma disputa entre Bruxelas, a Apple e a Irlanda. A raiz da preocupação política em Washington é a ansiedade por lucros de empresas norte-americanas serem mantidos por elas em forma de reservas no exterior. Em teoria, ao menos, forçar a Apple a pagar impostos atrasados na Irlanda reduziria o montante que poderia no futuro vir a ser tributado nos Estados Unidos.

    Na semana passada, o Tesouro dos Estados Unidos acusou a Comissão de se comportar como "uma autoridade tributária supranacional", e de ameaçar acordos internacionais de reforma tributária por conta de seus inquéritos. Isso veio se somar a um apelo direto do secretário do Tesouro norte-americano Jack Lew a Jean-Claude Juncker, o presidente da Comissão Europeia, para que reconsiderasse a investigação. Meses atrás, o Comitê de Finanças do Senado dos Estados Unidos instou Lew a considerar dobrar a alíquota de imposto paga pelas empresas europeias no país se a Apple fosse a ordenada a pagar impostos atrasados em Dublin.

    Quais são as implicações mais amplas?
    Os recursos contra a decisão demorarão anos a ser decididos. Mas se a Comissão por fim prevalecer nos tribunais, a decisão redefinirá o balanço de poder na política tributária europeia.

    Embora os governos venham a manter o direito de estabelecer suas alíquotas, a Comissão se terá posicionado como um árbitro vigilante da implementação de regras nacionais.

    E o exemplo da Apple —e seus bilhões de dólares em impostos atrasados na Europa— servirá de alerta para que as grandes empresas coloquem seus negócios em ordem, ao menos na Europa.

    Caso os recursos da Apple ou da Irlanda obtenham sucesso, essa pressão seria ao menos um pouco aliviada, e os governos nacionais teriam mais margem de manobra.

    Mas até lá o caso ameaça causar abalos ao relacionamento entre os Estados Unidos e a União Europeia, o que pode dificultar ainda mais as já complicadas negociações para um acordo de comércio. E por enquanto, a decisão da Comissão será um severo golpe contra as estratégias exóticas de redução de impostos.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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