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    Cifras & Letras

    Crítica

    Livro analisa paradoxos na trajetória de Alan Greenspan

    JOHN PLENDER
    DO "FINANCIAL TIMES"

    26/11/2016 02h00

    J. Scott Applewhite/Associated Press
    Alan Greenspan, ex-presidente do BC americano, em seu escritório em Washington (EUA)
    Alan Greenspan, ex-presidente do BC americano, em seu escritório em Washington (EUA)

    Quando um jornalista perguntou ao presidente Bill Clinton qual era a sensação de ser o homem mais poderoso do mundo, sua resposta ficou famosa: ele apontou para Andrea Mitchell, correspondente da rede de TV NBC na Casa Branca, e disse: "Pergunte a ela. Ela é casada com ele". O marido em questão era Alan Greenspan, então chairman do Federal Reserve (Fed, o banco central dos Estados Unidos).

    Perto do final de seu reinado de 18 anos no banco central, o desajeitado estudioso de estatísticas econômicas havia conquistado uma reputação de onipotência e onisciência que fazia dele um astro pop entre os dirigentes de bancos centrais. A verdade é que o status reverenciado de Greenspan era como que um convite aos estragos do destino, em um período no qual a economia, e mais especialmente o sistema financeiro, estavam mudando do modelo pesadamente regulamentado do pós-guerra para o capitalismo turbo, muito mais livre, dos últimos anos. E não deu outra: depois de um longo mandato no qual o crescimento foi relativamente robusto e a inflação se manteve baixa, surgiu a grande crise financeira de 2007/2008. A reputação de Greenspan saiu irremediavelmente maculada.

    Um dos muitos paradoxos de Greenspan, como Sebastian Mallaby aponta em sua nova e excepcional biografia, é que ele tinha qualificações superiores às de qualquer outro dirigente de banco central para dirigir a instituição em um período econômico conturbado. No entanto, no começo de sua carreira seria implausível imaginar que um dia ele o comandaria. Criado por uma mãe solteira judia em Nova York, ao concluir o segundo grau ele preferiu não fazer faculdade e conseguiu vaga no prestigioso conservatório musical. Juilliard, onde tocava sax tenor e clarinete. Mas não demorou a abandonar os estudos para se tornar músico em uma banda de segundo escalão. Em "The Man Who Knew", Mallaby, pesquisador sênior no Conselho de Relações Internacionais e colunista do jornal "Washington Post", aponta que Greenspan era um músico diferente. Quando não estava tocando, estudava livros sobre história econômica e finanças, enquanto seus colegas de banda fumavam maconha. E também era fascinado pelos grandes pioneiros dos negócios norte-americanos no final do século 19 e começo do século 20.

    No verão de 1945, ele se matriculou na Universidade de Nova York para estudar Economia. Em sua carreira posterior como consultor econômico, Greenspan desenvolveu o que Mallaby descreve como habilidade incomparável "para detectar peculiaridades em conjuntos de dados", e um senso especial para distinguir os momentos nos quais "a extrapolação competente de um modelo econômico valia menos que o julgamento humano". Embora tivesse respeito pelos veredictos dos mercados, ele não acreditava na teoria do mercado eficiente, cujos proponentes negam a existência de bolhas nos mercados. Em um estudo publicado em 1959, Greenspan explorou as conexões entre o setor financeiro e a economia real, demonstrando de que maneira os preços das ações propeliam os investimentos empresariais em ativos fixos, o que por sua vez causava as contrações e expansões da economia capitalista. James Tobin, ganhador do Nobel de Economia, mais tarde ganharia fama ao defender uma visão semelhante à de Greenspan.

    No relato de Mallaby, o jovem economista tímido e introvertido ansiava por obter controle sobre um domínio restrito. Queria estar certo, e saber que estava certo, e se animava com problemas que fosse capaz de resolver sozinho, sem buscar as opiniões de outros. Seu individualismo inflexível foi a causa do fracasso de um primeiro casamento desconfortável, que durou menos de um ano, e que fez dele por décadas um solteirão convicto e cobiçado, que namorou apresentadoras de TV, senadoras e ganhadoras de concursos de beleza. Só aos 70 anos, depois da morte de sua mãe, Greenspan veio a se casar com Andrea Mitchell. Esse mesmo individualismo e relutância em seguir as multidões o tornaram um acólito natural de Ayn Rand, imigrante russa e romancista conhecida por seu feroz libertarismo. Rand, que por muitos anos serviu como mentora de Greenspan, defendia o livre mercado e argumentava em favor dos méritos do egoísmo em todas as questões, entre as quais os relacionamentos sexuais, apelando por uma redução radical no papel do Estado.

    Durante esse período, no qual ele na prática servia como economista chefe para a turma de Ayn Rand, Greenspan fez uma palestra em que - ironia das ironias - descreveu a criação do Fed, que mais tarde comandaria, como "um dos desastres históricos na história dos Estados Unidos". Ele era firme defensor do padrão ouro, feroz oponente de resgates a bancos e crítico fervoroso das leis antitruste norte-americanas. Pregava uma doutrina que Mallaby define como libertarismo leninista, e declarou na mesma série de palestras que uma economia laissez-faire era "a única forma moral e prática de organização econômica". E alertou que os Estados Unidos estavam se rendendo à "moralidade primordial do altruísmo, com suas consequências de força bruta, escravidão, terror estagnado e fornalhas sacrificiais".

    Como conciliar as palavras desse ardoroso evangelista do libertarismo às ações do bem informado líder republicano que ajudou a afastar o presidente Ronald Reagan de sua vontade instintiva de retornar ao padrão ouro, ou ao dedicado expoente da política monetária ativista que ele provou ser à frente do Fed, ou ao consumado líder de operações de resgate financeiro cujo apoio firme aos mercados veio a ser conhecido como "o cacife de Greenspan"? Em última análise, foi o desejo urgente de estar no centro, no coração da formulação de políticas, que superou os instintos libertários de Greenspan. Ele tinha excelentes instintos políticos, e era um gênio na manipulação e na criação de compromissos.

    Essa manipulação assumia sua forma mais honrosa quando Greenspan usava dados para mudar as opiniões dos seus colegas no Comitê Federal de Open Market, o órgão do Fed que determina as taxas de juros. O exemplo supremo veio em 1996, quando o crescimento era forte e o mercado de ações estava empolgado. Ninguém era capaz de explicar a combinação entre alta nos lucros e a tendência aparentemente neutra de crescimento da produtividade. Isso importava porque, se o crescimento da produtividade estivesse de fato em zero, inflação era iminente e as taxas de juros precisavam subir. Mas se a produtividade estava se acelerando, não haveria necessidade de agir para conter a inflação.

    Greenspan tinha o palpite de que a produtividade estava crescendo mais rápido do que os números agregados sugeriam, e instruiu seus pesquisadores a estudá-la em cada setor de negócios. Eles cumpriram as ordens e estabeleceram os índices de produtividade para 155 categorias de negócios, remontando a 1960. Esse "tesouro de dados" permitiu que Greenspan constatasse que a baixa produtividade do setor de serviços aparentemente estava deprimindo os números gerais da economia, e que tinha até caído, o que parecia insensato dados os imensos investimentos feitos por escritórios de advocacia, consultorias empresariais e outras empresas de serviços em tecnologia da informação. Estava claro que os dados não procediam, porque era impossível que essas empresas estivessem extraindo menos de seus trabalhadores em circunstâncias como aquelas. Ao demonstrar que a produtividade estava crescendo mais rápido do que os dados oficiais apontavam, Greenspan conseguiu derrotar a linha dura da política monetária no comitê de open market e salvar a economia de uma alta prematura nos juros.

    Menos admirável, ainda que completamente compreensível, era a maneira pela qual Greenspan tratava os subordinados difíceis no Fed. Ele colocava os presidentes recalcitrantes de unidades regionais do banco na presidência de comitês que os forçavam a dedicar seu tempo a questões secundárias, e coreografava cuidadosamente as reuniões do comitê de open market a fim de reduzir sua influência. Ele selecionava com cuidado o momento de brigar abertamente com alguém, e evitava confrontos recorrendo a pessoas de sua confiança para propor argumentos agressivos em lugar dele. Seu cultivo da mídia resultou em que a imprensa o tratasse sempre com reverência. E ele transmitia a imagem de um tecnocrata consumado, sempre acima das reles disputas políticas. Mallaby cita Robert Solow, economista laureado com o Nobel, que descreveu o comportamento do mestre da evasão Greenspan em suas audiências com o Congresso como o de uma "lula de óculos" que, ao perceber perigo em suas imediações, "inundava o local de tinta preta e se afastava silenciosamente".

    Boa parte dessa astúcia foi aprendida quando Greenspan serviu como assessor do governo Nixon em diversas áreas. Ele foi parte de um complô notavelmente escuso para restringir a autoridade do então chairman do Fed, Arthur Burns. Por sugestão do secretário do Tesouro John Connally, Nixon e seus asseclas decidiram colocar Burns na linha. Burns vinha instando o presidente a se pronunciar contra os aumentos salariais inflacionários. Por isso, o governo Nixon plantou junto à agência de notícias United Press International a falsa informação de que Burns, nos bastidores, vinha ao mesmo tempo fazendo lobby por um aumento de salário. Charles Colson, que mais tarde serviria sentença de prisão por organizar atividades ilegais para o governo Nixon, ligou para Greenspan e pediu que ele convencesse Burns a mudar de tom quanto à economia. Greenspan nega envolvimento, mas Mallaby apresenta provas convincentes em contrário, com base nas anotações de Colson e nas gravações da Casa Branca. O que é certamente verdade é que Burns, amigo e no passado mentor de Greenspan, perdeu seu entusiasmo pelo combate à inflação, depois disso.

    O maior paradoxo do reinado de Greenspan no Fed foi que ele percebia a fragilidade do mercado financeiro e era capaz de identificar bolhas nos mercados, mas relutou em furar a bolha da Internet ou a bolha imobiliária que precederam a crise financeira. Nas palavras de Mallaby, "ele decidiu que metas inflacionárias eram sedutoramente fáceis, e que tentar forçar mudanças nos preços dos ativos era difícil; não queria confrontar o clima da opinião pública, que estava disposta a admitir ação do banco central no controle da inflação mas não que este vaporizasse o valor das poupanças dos cidadãos ao forçar uma baixa nos preços dos ativos".

    É uma avaliação certamente procedente. O aspecto político do comando de um banco central é brutal. É impossível, para um dirigente de banco central, infligir uma recessão amena como forma de tentar evitar recessão maior mais tarde sem causar ira da parte dos políticos e colocar sua carreira em risco. Daí surgiu o lema autocomplacente adotado por Greenspan em seu final de carreira, o de que era impossível prever bolhas com antecedência; nas palavras de Mallaby: que "os destroços das bolhas podem ser recolhidos depois que elas estouram", e que era errado tentar furá-las porque a alta de juros requerida prejudicaria a economia.

    O veredicto de Mallaby sobre Greenspan não deixa de ser generoso. O biógrafo lhe atribui presciência quanto a diversas coisas que agora tendem a ser esquecidas, à luz da crise econômica, e aponta para o valor de sua abordagem empírica quanto à economia, que evitava a "arrogância matemática" dos econometristas profissionais, sempre inclinados a excluir o sistema financeiro de seus cálculos. Greenspan, diz Mallaby, foi no entanto culpado de um sério erro de análise: subestimar os custos da fragilidade financeira.

    Eu enfatizaria um pouco mais do que Mallaby faz a insistência de Greenspan em manter uma política monetária assimétrica, sob a qual ele oferecia redes de segurança aos mercados em colapso mas se recusava a conter bolhas - a despeito da grande habilidade que demonstrou ao longo de sua carreira em identificar exuberância irracional. Mas essa crítica pouco faz para solapar a realização que essa biografia, pesquisada em profundidade e escrita com elegância, representa. Embora Greenspan tenha oferecido considerável assistência a Mallaby e sua equipe de pesquisadores, não detecto nas conclusões do livro, balanceadas e cuidadosamente ponderadas, nenhum sinal de que o biografado tenha capturado seus biógrafos. Como descrição de políticas públicas e das pressões sob as quais os modernos bancos centrais independentes precisam operar, o livro é incomparável.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

    The Man Who Knew
    AUTOR Sebastian Mallaby
    EDITORA Bloomsbury
    QUANTO R$ 50,20 na Amazon (e-book; 800 págs.)

    Edição impressa
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