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    Limpeza em lojas de apps é forma efetiva de censura de governos

    FARHAD MANJOO
    DO "NEW YORK TIMES"

    20/01/2017 16h03

    Johannes Eisele - 17.out.14/AFP
    Chinese girls check out the iPhone 6 in an Apple store in Shanghai on October 17, 2014. Apple began selling its latest iPhone in China, nearly a month after other major territories due to a licence delay by regulators, but it faces a tough battle with rivals led by Samsung in the crucial market. Staff at an Apple Store in downtown Shanghai clapped and congratulated iPhone 6 customers as they left the shop, which opened two hours early for those who had pre-ordered. AFP PHOTO / JOHANNES
    Visitantes testam iPhone em loja da Apple em Xangai

    Há uma nova forma de censura digital varrendo o planeta, e ela pode ser o começo de algo devastador.

    Nas últimas semanas, o governo chinês forçou a Apple a retirar o aplicativo do "New York Times" da versão chinesa da App Store; em seguida, o governo russo ordenou que Apple e Google parassem de oferecer em suas lojas o app da rede social de contatos profissionais LinkedIn, depois que recusou transferir para servidores localizados sobre os usuários locais. Por fim, na semana passada, uma agência regulatória chinesa solicitou que as lojas de aplicativos on-line que operam no país se registrem junto ao governo, o que aparentemente prenuncia a imposição de novas restrições ao comércio deste setor.

    Essas medidas podem parecer modestas e talvez não causem alarme imediato. A China restringe o uso da internet desde sempre e a Rússia nunca foi um baluarte da liberdade de expressão. Assim, o que existe de tão perigoso no bloqueio de apps?

    A resposta é: isso constitui uma forma mais efetiva de censura.

    Bloquear um site é como tentar impedir que um monte de caminhões entreguem um livro proibido às livrarias: requer uma infraestrutura técnica (algo como a "Grande Muralha Virtual" da China), e usuários empreendedores sempre conseguem encontrar uma maneira de contornar as restrições. Mas ordenar que um app seja retirado de uma loja de aplicativos, em contraste, é como fechar uma gráfica antes que o livro seja impresso. Se o app não estiver disponível em uma loja de aplicativos do país do usuário, na prática isso significa que ele não existe. A censura é quase completa e inescapável.

    Mas essa história não acaba nisso. A proibição de apps expõe uma falha mais profunda na arquitetura das comunicações modernas: claro, a centralização de informação.

    "Creio que a censura de lojas de apps é só uma camada de gelo na superfície de um iceberg visível sobre a água", disse Eben Moglen, professor na Escola de Direito da Universidade Colúmbia e líder do movimento de ativistas que defendem o software livre e há muito alertam sobre os perigos do software comercial administrado centralmente.

    Por mais de uma década, nós, os usuários de aparelhos digitais, temos apoiado ativamente uma infraestrutura on-line que agora parece cada vez mais vulnerável a sanções ditadas por déspotas e outros interessados em controlar as informações. Aderimos apressadamente aos smartphones, lojas de apps, redes sociais e armazenagem em nuvem. Provedores de conteúdo como o "New York Times" estão investindo em apps e conteúdo postado em redes sociais, em lugar de recorrerem à world wide web, comparativamente aberta. Algumas start-ups hoje dependem exclusivamente de apps. O Snapchat, por exemplo, só existe neste formato para aparelhos móveis.

    Comparados a outras formas de distribuição de software, os apps baixados de lojas de aplicativos são mais convenientes para os usuários e muitas vezes mais seguros contra malware e podem oferecer mais lucros aos seus criadores. Mas como boa parte do que existe on-line hoje em dia, eles representam um risco de reforçar os mecanismos de controle central. Na maioria dos países, as lojas de apps do Google e da Apple são os únicos lugares em que se pode obter produtos que operem com os respectivos sistemas operacionais das duas companhias. (Na China, existem mais escolhas quanto a lojas de apps Android, já que a loja oficial do Google não opera no país.)

    LIBERDADE DE COMUNICAÇÃO

    Os primeiros proponentes da internet a viam como ferramenta mágica para libertar as pessoas de qualquer restrição à expressão. A facilidade de proibir apps sugere que, se permitirmos, a internet pode se transformar em praticamente o oposto —uma das maneiras mais eficientes de sufocar a comunicação que o mundo viu até hoje.

    Não era assim que deveria ser. Comunicação descentralizada foi uma das principais promessas da Internet. Nos anos 60 e 70, com o mundo à beira de um holocausto nuclear, um quadro de acadêmicos e engenheiros militares decidiu criar um sistema de comunicações que não contivesse um ponto central de controle, e com isso não apresentasse uma vulnerabilidade central. A rede que eles vieram a desenvolver, que mais tarde evoluiu e se tornou a moderna internet, conectava todas as máquinas a todas as demais seguindo múltiplos percursos. Dessa forma, se uma porção da rede fosse comprometida por um ataque, o tráfego simplesmente seria direcionado a um novo percurso.

    Com a redução na ameaça de um ataque nuclear e com o crescimento da internet, sua estrutura descentralizada se tornou tanto um argumento político quanto um argumento tecnológico em seu favor.

    "O nosso mundo está em toda parte e em parte alguma ao mesmo tempo", argumentou o ativista John Perry Barlow em "A Declaration of Independence of Cyberspace", manifesto publicado em 1996. Ele previu que, por conta da onipresença da internet, os governos jamais conseguiriam cercear o reino digital. O cientista da computação e ativista John Gilmore disse à revista "Time" em 1993 que "a internet interpreta a censura como defeito técnico e faz com que a comunicação a contorne."

    O que os criadores e os primeiros proponentes da internet não previram foi a rápida comercialização da rede. A rede que Barlow e Gilmore tinham em mente seria construída e mantida por coletivos de usuários; mas a internet a que os usuários afluíram foi domada por empresas cujo sucesso as colocou entre as maiores companhias do planeta.

    Praticamente todo o valor comercial da internet está vinculado a dois lugares muito específicos: a região da Baía de San Francisco e Seattle, onde ficam as sedes da Apple, Amazon, Google e Facebook, as quatro companhias monstruosamente grandes. Com a expansão impérios dessas empresas on-line, elas se tornaram gargalos convenientes e passaram a ser os pontos de controle que a internet havia sido concebida para eliminar.

    GIGANTES E GOVERNOS

    Como todas as empresas, as companhias on-line precisam prestar alguma deferência aos governos. Elas obedecem leis locais e nacionais, ordens judiciais e às autoridades de segurança nacional e cedem a outras formas menos transparentes de coerção. Podem ocasionalmente lutar contra governos —como a Apple fez ao combater os esforços do FBI para forçá-la a ajudar no desbloqueio do celular de um terrorista, no ano passado—, mas é comum que escolham cuidadosamente as suas batalhas e tentem encontrar um ponto de equilíbrio para seus interesses. A Apple realiza porção significativa de seus lucros na China. Será que pode mesmo arriscar aqueles bilhões todos a fim de proteger um punhado de apps?

    Em resposta a consultas sobre o processo de decisão que segue quanto à retirada de apps, a Apple respondeu que "já fazia algum tempo que o app do 'New York Times' não estava autorizado a exibir conteúdo à maioria dos usuários na China, e fomos informados de que ele viola regulamentos locais. Como o resultado, o app teve de ser retirado da App Store da China. Quando essa situação mudar, a App Store voltará a oferecer o 'New York Times' para download na China". O Google se recusou a comentar.

    Mas Eva Galperin, diretora de segurança cibernética da Electronic Frontier Foundation, uma organização que defende os direitos digitais dos usuários, disse que as gigantes da Internet dispõem de considerável influência, nessas disputas.

    "O avesso da questão é: será que a China vai bloquear a App Store inteira por conta de um aplicativo?", ela pergunta. Um aspecto interessante da situação é que o domínio dessas empresas gigantes sobre todos os aspectos da vida on-line funciona em seu favor quando enfrentam governos.

    "Quanto maior for uma empresa, maior o risco de que bloqueá-la causará tumultos nas ruas, porque o governo terá se interposto entre as pessoas e suas fotos de gatos", disse Galperin. "Essas são as empresas que os governos hesitarão mais em bloquear, e deveriam ser elas que se dispõem a resistir à pressão governamental. Elas têm uma responsabilidade especial".

    Os usuários e os desenvolvedores de aplicativos que agora correm risco de censura também arcam com parte da responsabilidade. Quando perguntei a Moglen, da Universidade Colúmbia, sobre a censura a apps, ele se irritou por eu não reconhecer a cumplicidade do "New York Times" na história.

    O jornal, ele argumentou, poderia ter mantido sua forma prévia de publicar notícias. A empresa poderia ter se recusado a criar um app para download e em lugar disso investido todos os seus recursos de engenharia em um sistema para publicar notícias na Web, anonimamente. O "New York Times" poderia ter se recusado a fornecer perfis de usuários para fins de publicidade, ou a ter artigos postados no Facebook, ou a monitorar o que as pessoas leem a fim de recomendar mais artigos que as mantenham engajadas. Em resumo, o "New York Times" poderia ter se recusado a jogar o moderno jogo do conteúdo digital. Mas, como todos os demais provedores de conteúdo, preferiu entrar nele.

    "O que vocês esperavam que acontecesse?", perguntou Moglen. "A China não precisa construir uma Grande Muralha Virtual para isso. Vocês ofereceram ao país uma carona em seu desrespeito pela privacidade, integridade e autonomia de seus leitores e usuários".

    Não concordo com Moglen em que o jornal esteja desrespeitando seus leitores ao lhes oferecer um app de notícias. (E acho que o app é muito bom.) Mas ele está certo ao afirmar que muita gente saltou sem olhar para a posição online de completa exposição que ocupamos agora, onde nosso único recurso contra a censura pode ser a boa vontade de algumas poucas companhias gigantescas que controlam a Internet.

    Deve existir outro meio. Talvez devêssemos trabalhar para encontrá-lo.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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