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    Walmart investe bilhões para treinar funcionários, mas ganhos são incertos

    MICHAEL CORKERY
    DO 'NEW YORK TIMES'

    09/08/2017 14h32

    Jae C. Hong/Associated Press
    Fachada de loja da rede Walmart nos Estados Unidos
    Fachada de loja da rede Walmart nos Estados Unidos

    Cinquenta e um homens e mulheres, usando becas e capelos reluzentes, azuis e amarelos, caminharam pelo Walmart para receber certificados em um palanque montado no departamento de jardinagem da loja. Um homem de kilt, tocando gaita de foles, liderava a marcha dos diplomados.

    Para Roy Walts, essa foi a primeira vez que ele se formou em qualquer coisa.

    Walts deixou os estudos na nona série, depois que seu pai morreu de câncer e a mulher dele ordenou que o adolescente saísse da casa. Aos 15 anos, vivia em uma caixa de coleta de roupas do Exército da Salvação. Certo Natal, comeu cookies encontrados em uma caçamba de lixo.

    Assim, quando Walts, 53, subiu ao palanque naquela manhã de abril, diante do prefeito local, do gerente regional da Walmart para o interior do Estado de Nova York, e de seu filho, que havia virado a noite trabalhando, repondo mercadorias nos freezers da loja, ele sentia um friozinho na barriga.

    "Tinha certeza de que tropeçaria ao subir para o palanque", relembrou Walts, gerente do departamento automotivo da loja.

    Walts se formou pela Walmart Academy, um dos maiores programas de treinamento mantidos por empregadores nos Estados Unidos. Desde março de 2016, o Walmart ofereceu treinamento a mais de 150 mil de seus gerentes e supervisores de lojas, ensinando coisas como técnicas de promoção e motivação de funcionários, em cursos de algumas semanas de duração.

    Cerca de 380 mil funcionários de nível básico participaram de um programa de treinamento separado, chamado Pathways. A maioria desses trabalhadores recebe um aumento de salário de US$ 1 por hora ao completar o curso.

    Empresas norte-americanas gastam cerca de US$ 170 bilhões (cerca de R$ 535 bilhões) ao ano em programas formais de treinamento de trabalhadores, mas a maioria desses programas beneficia funcionários com diplomas de ensino superior.

    O Walmart investiu US$ 2,7 bilhões em treinamento e aumento de salários para 1,2 milhão de seus trabalhadores, nos dois últimos anos - um investimento que reflete as pressões que a companhia enfrenta no setor de varejo.

    Combatendo a Amazon em busca de vendas, o Walmart está tentando fazer de suas lojas lugares mais agradáveis para compras. Isso requer uma força de trabalho bem treinada, com senso de propósito e de valor pessoal - qualidades que pode ser difícil fomentar nos trabalhadores de salário mais baixo.

    Mas não se sabe se todo esse treinamento está ensinando aos trabalhadores competências valiosas que podem facilitar sua ascensão à classe média ou se isso simplesmente os torna melhores empregados para o Walmart.

    E mesmo com mais capacitação, muitos trabalhadores de varejo jamais serão capazes de atingir salários comparáveis aos que operários um dia ganharam em cidades como Fulton, um centro industrial decadente perto de Syracuse.

    "Será muito difícil substituir o que perdemos", disse Ronald Woodward, prefeito de Fulton. "Empregos de varejo não se comparam aos industriais".

    Em um estudo bancado pelo Walmart, pesquisadores da Coalizão Nacional de Capacitação Profissional, uma organização sem fins lucrativos que promove o investimento em treinamento, constataram que 60% dos trabalhadores do varejo não são proficientes em leitura e 70% deles têm dificuldades para lidar com números.

    O programa Pathways trata de algumas dessas questões ao ensinar "matemática de varejo", ou as capacidades básicas de aritmética de que um trabalhador precisaria para trabalhar em um caixa ou como repositor de produtos.

    A academia se destina a supervisores e gerentes de departamento, mais experientes. Estudando em salas de aula montadas em 150 lojas Walmart espalhadas pelos Estados Unidos, os empregados aprendem como calcular lucro e prejuízo, e a dirigir seus departamentos como se fossem pequenas empresas.

    Os gerentes também são ensinados a conhecer melhor seus subordinados e a compreender a vida caseira deles.

    O Walmart no passado era visto como um pária vindo da porção rural dos Estados Unidos, e algumas pessoas- especialmente aquelas que não fazem compras lá - o criticavam como responsável pela destruição de empresas locais, ao vender produtos baratos fabricados na China. Agora, o Walmart está se redefinindo como uma companhia cujo foco são seus trabalhadores e o destino das pequenas cidades e de algumas cidades maiores que enfrentam crises.

    Nos últimos 12 meses, a companhia gastou US$ 650 mil em comerciais de TV sobre a Walmart Academy, de acordo com a Alphonso, que compila dados sobre televisão. Também gastou US$ 17,6 milhões na veiculação de um anúncio que enfatiza o compromisso da empresa para com a compra de US$ 250 bilhões em produtos fabricados ou cultivados nos Estados Unidos. O comercial traz cenas de operários e suas famílias, ao som agudo de "Dream On", do Aerosmith.

    "As becas e capelos, o simbolismo, não são coisas triviais", disse Anthony Carnevale, diretor do Centro para a Educação e a Força de Trabalho da Universidade de Georgetown. "Eles estão tentando criar nos funcionários o sentimento de 'nós somos a loja'. Estão tentando fazer do Walmart parte das pequenas cidades norte-americanas. E isso é ruim? Não".

    Outros pesquisadores dizem que o que muitos trabalhadores do Walmart necessitam não é treinamento, mas salários mais altos. Os programas de treinamento, afirmam, são úteis para melhorar o desempenho e conquistar a lealdade dos empregados, mas salários mais altos beneficiariam mais os trabalhadores.

    Dois anos atrás, a companhia elevou seu piso salarial a US$ 9 por hora, ou US$ 1,75 acima do salário mínimo federal.

    "Se o Walmart realmente quisesse investir nos trabalhadores, pagaria um mínimo de US$ 15 por hora aos seus funcionários em todo o país e teria número suficiente de empregados por loja para que os clientes sejam atendidos", disse Judy Conti, coordenadora do Projeto Nacional de Leis do Emprego, que faz lobby em prol de trabalhadores de baixa renda.

    Fulton, uma cidade de cerca de 11,4 mil habitantes, no passado era conhecida por produzir uma coisa muito importante: chocolate.

    Especificamente, Fulton abrigava uma fábrica que produzia o chocolate Nestlé Crunch. Nos dias úmidos, antes das chuvas de verão, o cheiro de chocolate tomava a cidade.

    A empresa fechou a fábrica e transferiu suas operações para o Wisconsin, em 2003, a fim de consolidar unidades de produção e "maximizar a utilização de ativos", afirmou uma porta-voz da Nestlé em e-mail.

    "Acho que o que mais faz falta às pessoas é aquele cheiro", disse Geoff Raponi, gerente do Fulton Walmart Supercenter.

    Elas também sentem falta dos empregos - mais de 1,5 mil quando a fábrica estava no auge, na metade dos anos 80, de acordo com o prefeito, Woodward. O Walmart local tem cerca de 300 empregados.

    Mac Guile, 24, tinha quase seis anos quando a fábrica de chocolate fechou. Ele morava com a avó, que trabalhava na fábrica despejando o chocolate escaldante em moldes para produzir as barras, e com o avô, motorista que entregava suprimentos à Nestlé. A família vivia em uma casa espaçosa diante de um McDonald's, onde Guile era conhecido como mascote da loja, por causa de seu nome - Mac - e por ele tomar seu café da manhã lá quase todos os dias.

    Depois que a Nestlé saiu da cidade, Guile e os avós foram morar em um trailer. Os cafés da manhã diários no McDonald's ficaram no passado. Guile e o irmão mais novo tomavam banho com água fervida no fogão.

    Aos 19 anos, Guile conseguiu emprego no Fulton Walmart Supercenter, com salário de US$ 7,50 por hora. Ele não tinha dinheiro para pagar as contas de luz e água de seu apartamento, nos primeiros meses, e por isso tomava banho na casa de um parente.

    Agora ele dirige o departamento de carnes, uma parede de prateleiras refrigeradas que oferece produtos como coxas de frango e hot dogs Hofmann's, um produto muito querido na área de Syracuse.

    Ele gosta do departamento por conta do ritmo rápido e dos pedidos dos clientes. Memorizou a temperatura interna que a carne bovina, suína e de frango precisa manter para armazenagem segura, e sugere molhos e temperos aos compradores.

    As aulas da Walmart Academy interessaram a Guile por serem mais conversas que monólogos. Em lugar de levarem bronca por usarem seus celulares, os participantes eram encorajados a procurar informações sobre as coisas. Ele se impressionou por o programa acontecer em uma sala de aula real, equipada com tablets.

    A lição mais útil que ele aprendeu na escola foi como motivar seus subordinados. "Conversar com eles de modo mais direto, isso é crucial", disse Guile, que usa uma barba castanha e ostenta uma tatuagem que fiz "é o que é".

    Ele agora ganha cerca de US$ 15 por hora, tem uma conta de aposentadoria para a qual o Walmart faz contribuições casadas e recebe bonificações.

    Seu antigo supervisor o recomendou para o programa de gerente assistente de loja, o que pode colocá-lo no caminho para comandar uma loja, no futuro - posto com salário anual da ordem de US$ 170 mil.

    Muitos dos parentes de Guile trabalham na loja. Sua irmã trabalha na lanchonete; uma prima de sua mãe trabalha no atendimento; e a namorada dela decora bolos na padaria.

    Alguns dos parentes de Guile que não trabalham na loja lhe pedem ajuda. Ele compra roupas e sapatos para os filhos de alguns desses parentes.

    "Não há como a cidade inteira trabalhar no Walmart", disse Guile.

    Quando a Walmart Academy de Fulton formou sua primeira turma, a loja deu um presente ao prefeito. Era um tijolo recuperado da velha fábrica da Nestlé, que estava sendo demolida 14 anos depois de fechar.

    "Um pedaço da história da Nestlé", dizia a inscrição no tijolo. "Presenteado em 25 de abril de 2017".

    Woodward, que está cumprindo seu terceiro mandato de quatro anos como prefeito, aprecia o programa de treinamento do Walmart, mas diz que muito mais será preciso para salvar a economia da cidade.

    "Sempre que uma empresa oferece treinamento, isso é bom", disse Woodward. "Mas nem todos os participantes terminarão gerenciando lojas".

    Woodward era supervisor de manutenção na Nestlé, com salário de US$ 89 mil ao ano, e diz que foi um dos dois últimos funcionários a deixar a fábrica quando ela fechou. Seu escritório, no segundo andar do edifício da prefeitura, é como uma cápsula do tempo, congelada no glorioso passado industrial de Fulton.

    Há fotos em branco e preto de uma faixa de campanha de Theodore Roosevelt pendendo em uma rua do centro da cidade, e de um hipódromo demolido há muito tempo, lotado de espectadores de terno e chapéu.

    Alguns anos atrás, Fulton tentou retomar a produção de chocolate. Uma fabricante de doces, controlada em parte por um consórcio de fornecedores de cacau da Costa do Marfim, reativou a fábrica da Nestlé, com ajuda do Estado. Mas o projeto fracassou.

    O mais recente proprietário do local removeu toda a fiação da fábrica para venda a ferros velhos, e abandonou o imóvel, disse o prefeito, deixando apenas edifícios de tijolo vazios.

    De seu escritório, Woodward, 68, fala em um celular flip e observa por sobre as lentes de seus óculos, com olhos de coruja.

    Ele está ocupado com a dragagem de um lago público onde surgiu uma infestação de algas, o que proíbe a natação, em plena temporada de verão.

    "Amo esta cidade", disse Woodward. "Faria qualquer coisa para ajudá-la".

    Isso inclui ir ao Walmart certa manhã para a cerimônia de formatura da academia.

    Woodward evitou a crueldade de dizer aos funcionários da loja que o Walmart tecnicamente não fica em sua cidade.

    A loja tem endereço postal em Fulton, mas na verdade fica em Granby, uma cidade vizinha. Isso significa que Fulton não recebe o imposto predial gerado pela loja.

    O grupo de varejo paga a Fulton pelos serviços de água e esgoto, com valor médio de US$ 11.703 ao ano, de acordo com a prefeitura. Mas isso empalidece diante dos US$ 364.218 que a Nestlé gastava com esses serviços em 2002. A fabricante de chocolates também pagava US$ 166.253 em impostos prediais a Fulton a cada ano.

    Woodward aprecia os empregos firmes oferecidos pela loja em um momento econômico difícil. Mas para ele esse não é o tipo de emprego que valeu a Fulton o apelido de "maior cidadezinha do Estado". Nas últimas décadas, a fabricante de alimentos Birds Eye e a fabricante de cerveja Miller também fecharam fábricas que geravam centenas de empregos, na região de Fulton.

    "Você se formava no segundo grau, trabalhava para uma companhia como a Nestlé, comprava um carro, colocava os filhos na universidade", disse Woodward.

    Quando a fábrica da Nestlé estava no auge, em 1985, o salário médio no condado de Oswego, que abriga Fulton, era de cerca de US$ 51 mil ao ano. Hoje, o salário médio é cerca de 18% mais baixo, de acordo com o Serviço de Estatísticas do Trabalho, uma agência federal.

    O Walmart não quis revelar os salários em sua loja de Fulton. Mas a companhia disse que, em suas lojas no Estado de Nova York, empregados de tempo integral tinham salário médio de US$ 14,10 por hora. Os empregados de tempo parcial recebem em média US$ 11,10 por hora.

    A empresa afirma que seus programas de treinamento têm por objetivo ajudar funcionários a conquistar postos com salário mais alto, no Walmart ou em outros setores.

    "Quer eles passem dois anos conosco quer eles passem 20, queremos que tenham a capacitação que lhes permita criar oportunidades", disse Kathleen McLaughlin, que dirige a Fundação Walmart e é vice-presidente de sustentabilidade da empresa.

    O Walmart vem trabalhando com a Federação Nacional do Varejo norte-americana para ajudar a desenvolver padrões para um certificado que trabalhadores do varejo poderiam conquistar ao adquirir capacitações interpessoais, por exemplo como lidar com clientes zangados. A esperança é que os detentores de certificados venham a ter mais facilidade para encontrar empregos ou obter promoções.

    O desafio é que não há tantos postos a que um trabalhador de varejo possa ser promovido - o que significa que muitos deles não subirão. Do começo do ano para cá, 71 mil postos de trabalho foram eliminados no setor de varejo norte-americano.

    O Walmart aponta que mais de um quarto do 1,2 milhão de trabalhadores em suas lojas ocupam postos de gerência e supervisão, e que há oportunidades frequentes de promoção a esses postos.

    E os trabalhadores do Walmart que se mantiverem em postos básicos de trabalho por muitos anos podem vir a ganhar até US$ 17 por hora, na média nacional.

    Ativistas e sindicatos dizem que o salário inicial deveria ser mais alto. Mas McLaughlin, que trabalhou por duas décadas na consultoria internacional McKinsey, disse que elevar os salários de entrada faria mais mal do que bem. Se o salário inicial for alto demais, os empregadores provavelmente contratarão menos trabalhadores inexperientes e de baixa capacitação.

    "Em contraste com apenas elevar os salários", disse McLaughlin em e-mail, "acreditamos em investir em pessoas e desenvolver suas capacitações, o que lhes oferecerá mais opções de empregos que reflitam seus talentos e paixões pessoais".

    Cerca de um mês atrás, Ashley VanHorn estava repondo produtos na loja de Fulton quando ouviu duas menininhas dizendo ao pai que queriam trabalhar no Walmart um dia.

    "Há coisas melhores", VanHorn ouviu o pai responder.

    Trabalhar no Walmart jamais foi parte dos planos de VanHorn. Ela recorda ir com o pai ao Cayuga Community College, em Fulton, para se matricular. Os dois foram de bicicleta ao campus, porque a família não tinha carro.

    VanHorn, 27, descreve seu pai como um homem "capaz de construir uma casa sozinho", mas que enfrentava dificuldades financeiras. Ele queria tanto matricular a filha na faculdade local que preencheu a maior parte da papelada sozinho.

    VanHorn queria se formar em serviços sociais, mas engravidou quando faltavam alguns créditos para se diplomar, e deixou os estudos. Logo depois, conseguiu emprego no Walmart.

    "Sei que decepcionei meu pai", ela disse.

    VanHorn começou no departamento de saúde e beleza, e por fim foi para o departamento de frutas e legumes, onde ela administra a área de produtos secos. O chefe dela diz que VanHorn, que ganha cerca de US$ 15 por hora, tem as qualidades requeridas para se tornar subgerente, supervisionando diversos departamentos e ganhando cerca de US$ 20 mil a mais por ano.

    Mas ela se preocupa com a possibilidade de que a jornada mais longa de trabalho em um posto de gerência reduza o tempo de que dispõe para os dois filhos. E também quer concluir a faculdade um dia.

    Ao se formar na Walmart Academy, VanHorn não sabia o que esperar. Como muitos dos colegas de estudo, ela nunca havia participado de uma cerimônia de formatura, porque não concluiu o segundo grau.

    Enquanto os formandos percorriam a loja, ao som da gaita de foles, VanHorn viu seu pai, sentado em uma cadeira dobrável no departamento de jardinagem da loja.

    Depois da cerimônia, ele disse à filha que estava orgulhoso dela.

    "Meu sonho não era esse", ela disse. "Mas sonhos mudam".

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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