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    MARCAS DA CRISE

    Famílias acham saídas, mas carregam efeitos duradouros da recessão

    ANA ESTELA DE SOUSA PINTO
    ÉRICA FRAGA
    DE SÃO PAULO

    20/08/2017 02h00

    A recessão que o Brasil atravessa desde 2014 tirou os empregos de Valter, Ricardo, Leonardo e Ronaldo. Empurrou Marcelo para perto da falência. Adiou a formatura de Lucas. Levou Vivian e Vasco a buscarem refúgio no exterior.

    O sopro recente de retomada trouxe esperança a alguns desses profissionais que a Folha acompanha desde o ano passado. Mas mesmo os que deixaram o fundo do poço estão longe de recuperar o padrão de vida anterior à crise.

    "Achei um serviço temporário em impressão de rotativa, mesma função que tinha antes de perder o emprego. São cinco dias por semana, mas não sou contratado", diz Valter Gonçalves dos Santos.

    Juca Varella - 28.jul.2016/Folhapress
    POÁ, SP, BRASIL, 28-07-2016, 20:00: - RECESSAO - Valter Gonçalves dos Santos, 50, foi demitido em dezembro de 2015 da gráfica em que trabalhava havia 7 anos e 8 meses, com outros 275 funcionários. Até hoje ele não recebeu a rescisão. Agora ele vai fazer um curso de refrigeração, para tentar mudar de área de atuação, e é o filho que vai pagar o curso para ele. - (Foto: Juca Varella/Folhapress, ECONOMIA) - ESPECIAL
    Valter Gonçalves dos Santos

    Em julho de 2016, Santos estava desempregado e enfrentava dificuldade até para descolar bicos como pintor. Sua mulher conseguira uma vaga de merendeira —que perdeu neste ano— com salário de R$ 600. Sobreviviam graças a dois dos três filhos adultos que moram com eles.

    "Agora consigo complementar a renda, mas tiro um terço do salário de antes. São R$ 1.800 porque tenho 30% a mais de adicional noturno."

    RECUPERAÇÃO PRECÁRIA

    A situação de Santos é um retrato dos dados econômicos mais recentes do Brasil.

    A ocupação voltou a crescer, mas puxada por vagas precárias. No setor privado, os empregos com carteira assinada encolheram 0,8% entre abril e junho deste ano, em relação ao trimestre imediatamente anterior. Já as vagas informais, sem carteira de trabalho assinada, cresceram 2,4% nesse período. Nos dois casos as contas levam em conta efeitos sazonais.

    O movimento entre os os chamados "conta própria" revela a mesma tendência de inserção precária no mercado de trabalho. A ocupação entre autônomos que contribuem para o INSS recuou 0,4% no segundo trimestre em relação ao primeiro, sem os efeitos sazonais. Entre os que não fazem aportes para a Previdência, aumentou 2,5%.

    Os cálculos foram feitos pelo Bradesco com base na Pnad Contínua, do IBGE.

    "O empregador quer voltar a contratar, mas está em dúvida sobre o fôlego da recuperação e acaba optando pela contratação informal, mais barata", diz Ana Maria Bonomi Barufi, do Bradesco.

    "Os desempregados, por outro lado, estão frágeis e aceitam qualquer tipo de emprego."

    ADEUS, SALÁRIOS

    Mesmo profissionais que conseguiram vínculo formal após um período de desemprego ainda sofrem efeitos como a redução de salários.

    Avener Prado/Folhapress
    SÃO PAULO, SP, BRASIL, 16-08-2017: Leonardo Potengy, executivo em auditoria, foi demitido em outubro de 2014. Durante um ano tentou se reempregar, mas acabou montando uma empresa de pudim com bolo, que não vinha dando bom resultado no ano passado. Com a crise se agravando, pensava em voltar a procurar emprego. Endividado, precisou de ajuda dos amigos. Vendeu o apartamento para quitá-las. Acabou conseguindo se reempregar na Ecovias, ganhando menos da metade do que ganhava antes. Durante os dois anos e cinco meses em que ficou desempregado, tomou um tombo financeiro de seis, sete anos. Com o salário atual, sem considerar reajustes, estima que vai recuperar o patrimônio em 2020. (Foto: Avener Prado/Folhapress, MERCADO) Código do Fotógrafo: 20516 ***EXCLUSIVO FOLHA***
    Leonardo Potengy

    É o caso de Leonardo Potengy, 42, que foi contratado recentemente como coordenador na empresa Ecovias.

    "Estou muito feliz, fiquei dois anos e cinco meses desempregado. Mas ganho menos da metade do que recebia como gerente", afirma ele, que atua em auditoria.

    Durante o longo período em que procurou uma recolocação, Potengy chegou a tentar empreender na área de gastronomia, mas a iniciativa só rendeu mais dívidas.

    "Houve meses em que não vendia nada. As contas todas atrasaram. Cheguei a dever R$ 500 mil sem contar o financiamento imobiliário."

    Potengy vendeu o apartamento e conseguiu se livrar das dívidas, mas ainda vê um longo caminho pela frente.

    "Com meu salário atual, sem considerar reajustes, só vou recuperar meu patrimônio em 2020, e isso porque eu não tenho dependentes", diz.

    FAMÍLIA UNIDA

    Quando a severidade da recessão passou a desempregar funcionários com muitos anos de casa e salários maiores, o impacto da crise se multiplicou.

    Grande parte desses trabalhadores eram chefes de família, responsáveis pela principal fonte de renda de seus domicílios.

    A desocupação entre esse grupo saltou de 3,6% em média, entre 2012 e 2014, para 8,4% em março deste ano, segundo dados divulgados pela IFI (Instituição Fiscal Independente).

    "Em outras palavras, do estoque de aproximadamente 14 milhões de pessoas desempregadas no primeiro trimestre de 2017, 4 milhões eram chefes de família", escreveu Felipe Salto, diretor-executivo da IFI, em relatório de julho.

    Os efeitos negativos recaem sobre toda a família, principalmente crianças e jovens em idade escolar.

    Avener Prado/Folhapress
    SÃO PAULO, SP, BRASIL, 17-08-2017: Ricardo Lopes de Oliveira, metalúrgico, operador de eletroerosão, foi demitido após 23 anos de trabalho na mesma empresa. Recebeu a rescisão, tentou se requalificar para conseguir operar as novas máquinas mas diz que o curso era teórico demais e não se considera capaz de reassumir a mesma função. Arrumou um bico como ajudante geral na empresa de um amigo da igreja e agora foi contratado na mesma empresa, de comunicação visual. O salário é um quarto do que ganhava. Mudou as filhas para uma escola particular um pouco mais barata até o final deste ano e diz que, se não conseguir reequilibrar as finanças, terá que mudá-las para escola pública. As meninas hoje têm 16 e 12 anos e mais velha sofreu mais com a mudança de escola e viu cair o rendimento escolar. A mulher começou a vender Yakult na rua. Pensaram em abrir um negócio, mas, sem experiência em empreender, tiveram medo de arriscar o dinheiro da rescisão e acabar sem nada. (Foto: Avener Prado/Folhapress, MERCADO) Código do Fotógrafo: 20516 ***EXCLUSIVO FOLHA***
    Ricardo Lopes de Oliveira

    O metalúrgico Ricardo Lopes de Oliveira, pai de duas adolescentes de 16 e 12 anos, foi demitido em maio de 2016, depois de 23 anos de serviço em uma mesma empresa. Nos últimos meses, conseguiu uma ocupação, mas recebe um quarto do salário anterior.

    Sua primeira reação foi tentar se requalificar para ser capaz de voltar à metalurgia, setor em que a tecnologia evoluiu muito. "Percebi que seria quase impossível. Meu próximo patrão precisaria ter muita paciência até que eu me acostumasse."

    Como Potengy, Ricardo cogitou também abrir seu próprio negócio. Mas a família, reunida, achou que seria arriscar tudo o que tinham em algo que conheciam mal.

    "Arrumei um bico que virou meu emprego mesmo", diz ele, hoje na área administrativa da empresa de comunicação visual de um amigo.

    A severa queda na renda o obrigou a transferir as meninas para uma escola mais barata que o estabelecimento de ensino onde estudavam. Por enquanto, está usando os recursos que recebeu na rescisão de seu contrato, mas a saída não é permanente.

    "Até o fim do ano, se eu não voltar para um nível um pouco melhor, elas vão para uma escola pública", diz.

    Com a crise familiar e a mudança, o desempenho escolar da filha mais velha caiu.

    EDUCAÇÃO EM RISCO

    A literatura acadêmica mostra que o impacto sentido pela adolescente é comum nesses casos. Estudo dos pesquisadores americanos Suzanne Duryea, David Lam e Deborah Levison com dados de mais de 100 mil crianças brasileiras entre 10 e 16 anos mostrou que em períodos de alto desemprego aumenta muito a probabilidade de que os filhos comecem a trabalhar, saiam da escola ou repitam o ano escolar.

    Ricardo Borges/Folhapress
    io de Janeiro, Rj, BRASIL. 18/08/2017; Lucas Tavares, estudante de economia na UFRJ, precisou adiar a formatura no ano passado porque a empresa em que estagiava fechou, ele arrumou um emprego como dealer de poker e trocou o curso diurno pelo noturno. ( Foto: Ricardo Borges/Folhapress)
    Lucas Tavares

    Os impactos indiretos dentro das famílias assumem vários aspectos. Quando a Folha entrevistou o universitário Lucas Tavares, que cursa economia na UFRJ, em meados do ano passado, ele havia aceitado um emprego como vendedor de planos de saúde: perdera o estágio e a renda do seu pai, vendedor autônomo, caíra muito com a crise.

    Os rendimentos do pai ajudavam Lucas a sustentar a filha pequena. Na época, o novo emprego e a transferência do curso para a noite fizeram Lucas adiar a formatura de 2016 para 2017.

    Segundo o estudante, recentemente, a situação tem melhorado.

    "A renda do meu pai deu uma melhorada e ele está me ajudando de novo."

    Isso permitiu que Lucas, hoje com 23 anos, voltasse a estagiar na sua área, mas sua formatura foi postergada novamente, para junho de 2018:

    "O lado positivo foi que aprendi que é importante ter disciplina financeira".

    Avener Prado/Folhapress
    SÃO PAULO, SP, BRASIL, 16-08-2017: Ronaldo José Arnoni, professor universitário de filosofia, deixou de receber salário no ano passado e, neste ano, foi demitido. Nem os salários atrasados nem a rescisão foram pagos até hoje. Está dando aulas particulares em casa. Diz ter perdido 90% da renda que tinha há dois anos. (Foto: Avener Prado/Folhapress, MERCADO) Código do Fotógrafo: 20516 ***EXCLUSIVO FOLHA***
    Ronaldo José Arnoni

    NOVOS HÁBITOS

    O rearranjo orçamentário e a mudança de hábitos de consumo e lazer foram mencionados por outros entrevistados. "Quem vive com R$ 10 vive com R$ 1, vai se adaptando. O que me deixa mal foi ter de cortar a vida cultural", diz o professor universitário Ronaldo José Arnoni.

    Desde sua demissão, no ano passado, dá aulas de filosofia e organiza bazares, com renda 90% inferior.

    "Vou me virando assim, porque as outras escolas também estão enxugando." Assim como ele, mais de 100 professores ainda esperam por salários atrasados e verbas rescisórias do antigo empregador, o Unifieo. O centro universitário diz não ter verba para quitar as dívidas.

    O cenário de endividamento de governos, empresas e famílias dificulta a recuperação da economia.

    Zô Guimarães - 5.jul.2016/Folhapress
    RIO DE JANEIRO, RJ, BRASIL, 05-07- 2016, 11h00: Retrato do empresário Marcelo Carneiro, presidente da Tecnosolo, com o HSBC Arena ao fundo. A construtora entrou em recuperacao judicial (RJ) em 2012. De 600 funcionarios, hoje tem menos de 60. Saiu da RJ n
    Marcelo Carneiro

    O empresário Marcelo Carneiro, dono da construtora Tecnoloso, por exemplo, diz não ter condições de voltar a investir enquanto não receber por obras para a Prefeitura do Rio, cujos pagamentos são demandados na Justiça.

    "Não sei como aguentar mais um ano", diz Carneiro.

    Quando a Folha entrevistou o empresário em 2016, a Tecnosolo, em recuperação judicial, tinha reduzido sua equipe de 600 para 60 empregados. Agora, tem só 30.

    Segundo analistas, os sinais de recuperação da economia parecem ganhar força, mas crescimento mais vigoroso ainda pode demorar.

    DESIGUALDADE

    Enquanto isso, alguns efeitos da longa recessão podem perdurar por muito tempo.

    Sergio Firpo, pesquisador do Insper, aponta que as famílias que perderam renda precisaram se reorganizar de tal jeito que os filhos foram para escolas de pior qualidade, perderam planos de saúde e acesso a uma série de bens que geram ganhos de bem-estar no curto e no longo prazo.

    "Menos investimento na educação dos filhos certamente tem impacto em acesso a ensino superior e, portanto, em quanto vão ganhar mais para a frente."

    Firpo diz que os efeitos permanecem mesmo na hipótese remota de que o chefe de família consiga se recolocar com o mesmo salário que tinha antes. "Só o fato de a família ter passado por um período desassistida, se não tinha nenhuma rede de proteção, nenhuma poupança,haverá impacto sobre o bem-estar que vai demorar um pouco mais para ser desfeito."

    O pesquisador ressalta que a crise afetou de maneira desigual os brasileiros.

    "A recessão foi mais severa para os mais jovens e os menos escolarizados. Certamente isso terá efeito sobre a desigualdade."

    Segundo o professor, estudos mostram efeitos também sobre os jovens que entram no mercado de trabalho durante uma crise econômica. "É uma geração que terá impacto sobre os salários, a saúde, que vai ter perdas em relação a outras gerações que não passaram por isso."

    "Não quer dizer que não se possa diminuir esse 'gap' mais para a frente, mas seriam necessárias políticas públicas específicas para isso."

    Marcas da crise

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