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    'Sinto tensão com o Ministério do Trabalho', diz secretária da Cidadania

    JOELMIR TAVARES
    DE SÃO PAULO

    20/10/2017 02h00

    Eduardo Anizelli/Folhapress
    SÃO PAULO, SP, 16.10.2017: FLÁVIA-PIOVESAN - A jurista e advogada pública brasileira Flávia Piovesan, secretária especial de Direitos Humanos do governo Temer, em seu apartamento na Vila Madalena em São Paulo. (Foto: Eduardo Anizelli/Folhapress)
    A secretária nacional de Cidadania, Flávia Piovesan, em seu apartamento, em São Paulo

    Prestes a sair do cargo rumo à CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos), a secretária nacional de Cidadania da gestão Michel Temer, Flávia Piovesan, se viu no dever de criticar o governo nesta semana por causa das mudanças nas regras para inspeção do trabalho escravo.

    Para ela, a autonomia foi uma das marcas de sua passagem pelo governo. "Às vezes com preço, às vezes com uma censura posterior."

    Piovesan diz que enfrentou pressões internas, principalmente do Ministério do Trabalho. Cobrava providências do órgão contra o problema não só como secretária, mas também como presidente da Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo. Foi como representante do conselho que, em nota divulgada na segunda-feira (16), ela pediu a revogação da medida.

    No governo desde maio de 2016, quando a Secretaria de Direitos Humanos era subordinada ao Ministério da Justiça, em fevereiro a professora e advogada passou a responder à ministra de Direitos Humanos, mas suas funções foram mantidas.

    Ela concedeu a entrevista em seu apartamento, em São Paulo, cidade que trocará no ano que vem por Washington (EUA), onde fica a OEA (Organização dos Estados Americanos), à qual a CIDH é ligada.

    *

    Folha - Sua indicação ao cargo na gestão foi acompanhada de críticas e pedidos para que recusasse. Um dos argumentos era que o governo é "golpista". Como lidou com isso?

    Flávia Piovesan - Saio com a consciência tranquila. Sei que a conjuntura é extremamente delicada, complexa, mas acho que fiz o meu melhor. Eu me vejo como um quadro técnico. Meu contato com o presidente não tem origem na política, mas na PUC-SP. Há um conflito de narrativas e a nossa pasta é muito sensível. Nunca me convenci da narrativa do golpe. Para mim foi um processo dentro das balizas constitucionais.

    Como foi o diálogo com outros ministérios?

    Difícil, difícil. Desafiador. Algumas horas com algumas tensões. Eu sentia e sinto tensões com o Ministério do Trabalho. Foi uma das áreas mais sensíveis, ao defendermos a lista suja do trabalho escravo e criticarmos a nova portaria, que no nosso entendimento compromete a fiscalização.

    O chefe da Divisão para Erradicação do Trabalho Escravo, André Roston, foi exonerado do governo em meio às negociações para barrar a segunda denúncia contra Temer.

    Tenho imensa admiração pelo trabalho combativo do André. Liguei para ele, disse que a secretaria estava aberta.

    Esse tipo de coisa desestimula?

    Desafia. Sou um tanto quanto obstinada pela causa. Lançamos várias notas públicas. A mais recente foi contra a lei que amplia a jurisdição militar. Ainda que isso tensione com o Ministério da Defesa, que defende a lei, lamentavelmente sancionada. Temos que ser esse ponto de, entre aspas, instabilidade.

    A sra. tinha autonomia para lançar essas notas?

    Sempre achei que tinha [risos]. Foi a condição para que eu aceitasse: ter a máxima independência e minha voz audível. Isso foi respeitado. Às vezes com preço, às vezes com uma censura posterior.

    A Folha mostrou em setembro que pautas de viés conservador têm avançado rápido na gestão Temer. A que se deve?

    Sob o prisma global, vivemos um momento tendencialmente desafiador. Ganham força discursos xenófobos, homofóbicos, do ódio, da intolerância. O "trumpismo" tem impacto nisso. Cria uma zona de conforto na qual essas vozes se fortalecem. Também me preocupa a ascensão de Bolsonaro, por exemplo. E desponta a defesa de intervenção militar, uma afronta ao Estado democrático de Direito.

    Mas o governo Temer é associado à maior da força das bancadas de viés conservador.

    Difícil. Creio que há, e as estatísticas mostram, o Congresso mais conservador dos últimos anos. As bancadas religiosas, da bala, do boi se viram cada vez mais fortes. É por isso que me senti no dever de dar alguma contribuição.

    Há grupos contrários que dizem que as reformas trabalhista e previdenciária ferem direitos humanos. Concorda?

    Tenho preocupação, na reforma trabalhista, com o "negociado acima do legislado", em razão da vulnerabilidade de trabalhadores, sobretudo os rurais. Temos que avaliar passo a passo a implementação. Na Previdência, o tema é a sustentabilidade. É fundamental que direitos previdenciários sejam respeitados, mas que haja um pacto geracional.

    Temer é uma pessoa afeita ao tema dos direitos humanos?

    Respeito o presidente, que escuta mais do que fala. O fato de me respeitar, jamais ter cassado a minha voz, é um exemplo de respeito ao pluralismo e às divergências. [Continuei] manifestando posições que defendo. Por exemplo sobre aborto, esse tema tem que ser tratado à luz da saúde pública.

    Antes da sua campanha para a CIDH, o governo quitou dívida com a OEA e fez uma doação extra. Como isso interferiu?

    Isso foi antes de eu ter aceitado a candidatura. O Brasil se prontificou e eu aplaudo isso, porque acredito no multilateralismo e acho que tem que pagar todas as dívidas. Lamento a posição do [Donald] Trump de sair da Unesco. Isso [quitação] foi bom, mas não há essa associação. Foi uma campanha totalmente limpa.

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    RAIO-X

    Nome
    Flávia Piovesan (48 anos)

    Formação
    Direito pela PUC-SP, instituição onde fez mestrado e doutorado, além de ser professora. Também leciona em universidades da Espanha e da Argentina

    Atuação
    É procuradora do Estado de SP (licenciada) e secretária nacional de Cidadania (até o fim deste mês). Foi eleita em junho para mandato de quatro anos na CIDH

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    TRABALHO ESCRAVO

    O que mudou?

    ↳ Lista suja
    É necessário ter determinação expressa do ministro do Trabalho, cargo ocupado hoje por Ronaldo Nogueira (PTB), para divulgar o nome de uma empresa que manteve trabalhadores em situação análoga à escravidão. Antes, a divulgação cabia à área técnica do ministério

    ↳ Periodicidade
    A portaria prevê que a lista será divulgada duas vezes por ano, nos últimos dias úteis de junho e novembro, no site do Ministério do Trabalho. Antes, ela podia ser divulgada em qualquer momento, desde que não ultrapassasse um período de seis meses sem atualização

    ↳ Fiscalização
    O auditor fiscal agora precisará ser acompanhado nas operações por uma autoridade policial, que registrará um boletim de ocorrência. Fotos da fiscalização e identificação dos envolvidos passam a ser obrigatórias no relatório da ação

    ↳ Classificação
    Para que o trabalho seja considerado análogo à escravidão, é preciso que haja privação da liberdade de ir e vir, segundo a portaria. Antes, usava-se o entendimento do artigo 149 do Código Penal, que considera crime a submissão do indivíduo ao trabalho forçado, a uma jornada exaustiva e a condições degradantes, podendo haver ou não restrição da locomoção

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