• Mundo

    Thursday, 02-May-2024 01:29:19 -03

    Opinião: Por que as praças simbolizam o fracasso das revoltas

    SIMON JENKINS
    DO "GUARDIAN"

    26/02/2014 12h18

    Foi uma experiência esdrúxula. Eu estava assistindo a um documentário no Netflix, "The Square" (A praça), sobre a ocupação da praça Tahrir em 2011, quando o personagem principal, Ahmed, soltou um grito de alegria:

    "A revolução foi ganha". Naquele exato momento uma voz saiu do rádio falando ao vivo de outra praça, a Maidan, em Kiev. "A revolução foi ganha", repetiu.

    As praças são famosas por serem palcos políticos poderosos. Este ano estamos assistindo à segunda sessão da revolução da Ucrânia, a terceira no caso do Egito. Os telespectadores ocidentais vêm aplaudindo todas.

    Nos emocionamos quando vemos pessoas atirando pedras contra o poder. O fogo, a fumaça, bandeiras ensanguentadas, cabeças quebradas, água, gás e paramilitares sinistros são "Les Miserables" para pessoas que demoram a aprender. Podemos ocupar a primeira fileira no auditório da história. É muito mais interessante que ir às urnas.

    Assim, as praças Tahrir e Maidan se somam à praça Taksim de Istambul, à Azadi de Teerã, à Tienanmen de Pequim, à Wenceslaus de Praga, à Syntagma de Atenas, à Trafalgar de Londres e a uma dúzia de outros espaços urbanos pelo mundo afora como ícones da política revolucionária moderna.

    Seus móveis são as barricadas, seu drinque é o coquetel Molotov, sua tônica, o gás lacrimogêneo. Elas reúnem pessoas aos milhares em fóruns sagrados e convidam o mundo a testemunhar a mais recente prova de força contra um regime supostamente opressor. Às vezes elas até saem vencendo.

    Se eu fosse ditador, ergueria shopping centers sobre esses lugares imediatamente, como o líder turco Recep Erdogan tentou fazer no ano passado no parque Gezi, na praça Taksim.

    No mínimo, eu aprenderia a lição de Tienanmen: que, depois de formada uma multidão numa praça, é dificílimo tirá-la dali, e essa multidão cria publicidade mundial pior que uma dúzia de massacres em Províncias.

    Consta que Vladimir Putin teria condenado o ucraniano Viktor Yanokuvich por não ter retirado a multidão da Maidan imediatamente, ao custo que fosse preciso em termos de brutalidade. É difícil imaginar Putin permitindo uma ocupação da praça Vermelha.

    Não é de hoje que as multidões em praças fascinam os filósofos. As multidões demonstram o que Durkheim chamava de "efervescência coletiva". Para Freud, elas liberavam "convulsões históricas profundas".

    Mesmo hoje, os regimes não estremecem quando são confrontados por milhões de vozes no Facebook ou no Twitter. Se a chamada "política virtual" tivesse poder, nenhum político sairia da frente de sua mesa.

    O que as mídias sociais podem fazer é algo antiquado, atuando como meios de comunicação, um meio para chegar a um fim. Esse fim é a congregação humana viva. A praça é o lugar onde os atores políticos arriscam seus corpos, onde suas reivindicações são expressas em carne e sangue.

    Mais uma vez, a peça representada é a coisa "com a qual se chama a atenção do rei". Mas essas multidões são anárquicas e caóticas. Sua motivação é essencialmente negativa: fazer oposição ao poder.

    As multidões destroem, mas raramente constroem. Na praça Taksim, o artista performático Erdem Gunduz simplesmente ficou em pé, em silêncio. Sua mensagem era o desafio, nada mais.

    Uma manifestante em Kiev disse ao "Guardian" que a repressão movida por Yanukovich era "inacreditável no centro de uma cidade europeia civilizada": ele deveria ser arrastado à praça para que todos pudessem formar fila para "cuspir em sua cara".

    Muitos dos ativistas de hoje são estudantes, filhos de uma classe de profissionais urbanos. Eles podem reivindicar a legitimidade do poder das ruas, mas não têm contas a prestar a outras classes ou regiões de seu país.

    Observadores acharam que foi por isso que a praça Tienanmen não foi emulada fora de Pequim e que os protestos foram reprimidos tão facilmente, embora de modo tão implacável.

    Em Belgrado, na época da queda de Slobodan Milosevic, da Sérvia, as multidões de manifestantes exerceram relativamente pouco efeito até que ônibus chegaram das províncias trazendo trabalhadores que se juntaram a elas.

    Na Ucrânia, consta que o que enfraqueceu Yanukovich foram os sinais de que os protestos da Maidan estavam se espalhando para todo o país. Para Elias Canetti, autor de "Crowds and Power", uma multidão "precisa de direção para que não perca massa e morra".

    O documentário sobre o Cairo destacou constantemente a ingenuidade dos manifestantes, por corajosos tenham sido. Eles podiam exercer o poder da ocupação, mas ele fazia pouco mais que funcionar como um veto contra cada virada nova na crise.

    Pareciam ser empurrados numa direção e em outra por forças que estavam fora de seu controle, notadamente pela bem organizada Irmandade Muçulmana. Puderam convocar o que afirmam ter sido "a maior manifestação na história", mas tudo o que conseguiram gritar foi "poder para o povo".

    O argumento não tinha avançado desde a Bastilha. Como disse um pai, "você pensa que uma barraca e um cobertor podem resolver todos seus problemas".

    Os românticos às vezes citam a "sabedoria das multidões" e falam da razão pela qual "'nós' somos mais inteligentes que 'eu'". Eles ignoram a capacidade dos totalitários de manipular as massas segundo sua própria vontade.

    Esquecem a histeria e crueldade das quais são capazes multidões programadas. Mesmo um encontro espontâneo não é mediado e, portanto, é inerentemente perigoso, uma dádiva tanto para demagogos quando para candidatos a democratas. As multidões raramente demonstram capacidade de julgamento.

    A semana passada pareceu ser um exemplo disso. Os mediadores da UE em Kiev tinham negociado com o governo e a oposição. Então ofereceram à multidão na Maidan um pacote para resolver a crise e conduzir a uma transferência disciplinada do poder.

    Yanukovich teria uma saída do poder com alguma dignidade, um processo que Putin teria tido dificuldade em rejeitar. Mas a multidão não quis saber disso. Abafou a voz dos mensageiros e se negou a sair da praça. Yanukovich se acovardou e fugiu.

    A Ucrânia tem sorte por possuir um Parlamento democrático, representativo da nação inteira. Essa instituição agora será testada até o limite. Mas, como no Egito, resta o fato de que um líder eleito por um processo correto foi deposto por uma turba.

    Esse líder pode ter merecido o tratamento que teve. Pode ter sido corrupto, grotesco e assassino, um fantoche nas mãos da Rússia. Mesmo assim, possuía alguma legitimidade eleitoral, coisa que os manifestantes não tinham. Seus partidários dificilmente se esquecerão disso.

    Uma multidão numa praça não é algum tipo de purificação democrática. É a resposta humana mais primitiva a uma ameaça. Ela sugere um colapso das instituições, o fracasso da lei e da ordem, a usurpação de partidos, associações e da liderança.

    Uma multidão pode queimar o fusível de um regime enfraquecido e mergulhar o Estado na escuridão. Raramente ela acende a luz da democracia. Qualquer turbulência pode oferecer a esperança de tempos melhores.

    Mas a história sempre é cética. Um mês apenas atrás, outra multidão grande se reuniu na praça Tahrir num exercício de ironia. Ela festejou o retorno do Exército ao poder, após três anos de caos. Às vezes até as multidões anseiam por ordem.

    Tradução de CLARA ALLAIN

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024