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    Mídia italiana nutre obsessão irracional pela aparência de ministras

    LIZZY DAVIES
    DO "GUARDIAN", EM ROMA

    08/03/2014 19h23

    Antes mesmo de terem posto os pés em seus novos locais de trabalho, quase todas as integrantes do contingente feminino do novo gabinete de Matteo Renzi já tinham pisado em falso, de acordo com vozes na mídia italiana.

    Maria Carmela Lanzetta, ministra dos Assuntos Regionais, teria usado sapatos "inadequados". Federica Guidi teria saído usando maquiagem mais apropriada para "Heidi no verão" que para a ministra do Desenvolvimento Econômico. Marianna Madia e Stefania Giannini, responsáveis respectivamente pela Administração Pública e a Educação, tiveram a temeridade de usar meias-calças transparentes –"um erro", segundo um estilista. E o que dizer de Maria Elena Boschi, 33 anos, a ministra das Reformas? O tailleur azul forte que ela usou na cerimônia de posse em seu cargo foi chamativo demais, para alguns, e justo demais para outros –"mas ela é tão bela", declarou o crítico do "La Repubblica", ao mesmo tempo repreensivo e bajulador, "que é perdoada imediatamente".

    Quando Renzi, o novo primeiro-ministro de centro-esquerda cujo governo recebeu o selo final de aprovação no Parlamento italiano no último 25 de fevereiro, anunciou os 16 nomes de seu gabinete, um dos aspectos mais marcantes foi que, pela primeira vez, este seria dividido igualmente entre homens e mulheres.

    Com a responsabilidade por pastas que incluem as de Relações Exteriores e Defesa –esta última recém-criada na Itália–, muitas das ministras assumiram papéis pesos-pesados. "Eu gostaria que as muitas meninas que acham que política não é um assunto sério repensassem", disse Renzi. "Essa não é a verdade."

    Em um país que nunca teve uma mulher como primeira-ministra ou chefe de Estado e onde muitas mulheres ainda têm dificuldade em encontrar empregos que lhes permitam pagar as contas, o que dirá frequentar os corredores do poder, a notícia teve grande importância simbólica, elevando de modo dramático o peso da representação feminina. A organização de defesa dos direitos das mulheres Se Non Ora Quando? (Se não agora, quando?) a descreveu como "um primeiro passo em direção a uma democracia melhor", observando que a cultura italiana, por muito tempo dominada pelos homens, "está mudando aos poucos".

    Mas outras reações, incluindo uma mídia obcecada pelos guarda-roupas das mulheres, ilustram a distância que ainda falta para ser percorrida.

    Fiorenza Sarzanini, comentarista no jornal diário "Corriere della Sera", observou que, em meio a questionamentos legítimos sobre o gabinete de Renzi, bem mais jovem que o habitual, parece que as oito ministras são os principais alvos das suspeitas de que os novos recrutas do premiê, que tem 39 anos, talvez não estejam à altura da tarefa que têm pela frente –resgatar a Itália.

    "Inevitavelmente", segundo Sarzanini, as credenciais das ministras foram examinadas com atenção enorme, "devido à ideia pouco velada de que elas tenham sido escolhidas por razões de imagem e para garantir um resultado politicamente correto."

    "Não é compreensível por que, a priori, o possível fracasso que alguns analistas já estão prevendo será devido ao fato de as ministras mulheres não possuírem as habilidades necessárias, ou de se pensar que não as possuam", ela escreveu. "Por que esse critério não é usado também para avaliar seus colegas do sexo masculino?"

    'QUESTÃO TÉCNICA'

    Outros setores também têm manifestado hostilidade aberta às ministras. Matteo Salvini, líder da xenófoba e de direita Liga Norte, disse em um programa de entrevistas da televisão que tem uma "questão técnica" a colocar com respeito a Marianna Madia, que está grávida do segundo filho. "Pergunto se ela vai continuar a trabalhar como ministra quando estiver prestes a dar à luz." Ele disse esperar que a ministra de 33 anos não tenha sido escolhida como gesto, para simbolizar um governo de pessoas jovens que "enviam tuítes e sorriem".

    Nos próximos meses, Madia, desde 2008 deputada do Partido Democrata, de Renzi, deve ser uma figura a ser festejada, e não lamentada, opinou a jornalista Monica Guerzoni, mesmo que goze de privilégios logísticos que estão fora do alcance da grande maioria das mães italianas. "É verdade que uma mulher na Itália que queira conciliar maternidade e trabalho, incluindo nos primeiros meses após o parto, muitas vezes não consegue", ela escreveu no blog de direitos das mulheres do "Corriere della Sera", 27esimaora. "Porque babás custam caro, porque não há creches suficientes e porque, com frequência, ter filhos significa ser discriminada no trabalho."

    A assistência infantil foi um dos temas tratados por Renzi num discurso que fez diante do Senado em fevereiro. Segundo o premiê, é inaceitável que em partes da Itália a porcentagem de crianças que frequentam uma creche não chegue a 10% –fato que, segundo ele, ajuda a explicar o baixíssimo índice de emprego feminino.

    Desde a violência doméstica até os estereótipos culturais e as práticas predatórias usadas no local de trabalho, como os formulários em branco de demissão usados para demitir funcionárias grávidas, os problemas que as mulheres enfrentam na terceira maior economia da zona do euro são grandes. De acordo com o instituto nacional de estatística, o potencial médio de ganho das mulheres é metade da de seus colegas homens.

    A igualdade pode ter sido alcançada no gabinete, portanto, mas ainda está longe de estar presente no resto da Itália.

    Tradução de CLARA ALLAIN

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