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    'Senti o abraço da morte', relembra sobrevivente de acidente de avião

    RICARDO GALLO
    DE SÃO PAULO

    16/03/2014 03h16

    Foi a minha primeira viagem internacional de avião. Eram minhas férias da faculdade, eu fazia engenharia civil na PUC de Petrópolis (RJ) e trabalhava. Aí, juntei grana para viajar a Londres.

    Naquele ano, 1973, o berço da música era Londres. Eu tocava, e ir para lá foi uma coisa que sempre desejei. Ia para conhecer e talvez ver alguns concertos.

    Eu programei estar naquele voo. Escolhi ir dia 10, escolhi escala em Paris. Quando embarquei no Rio, fui um dos primeiros a entrar no avião e me sentei na penúltima fileira. O voo estava quase lotado, mas, nas duas poltronas ao meu lado, não se sentou ninguém. Foi sorte.

    Bruno Figueiredo/Odin/Folhapress
    Ricardo Trajano posa para foto em Belo Horizonte, onde mora
    Ricardo Trajano, 61, posa para foto em Belo Horizonte, onde mora; ele sobreviveu a um acidente em 1973

    Esse lugar acabaria sendo vital para mim.

    Na maior parte da viagem foi tudo normal, normalíssimo. A pouco tempo de pousar, começou a fumaça.

    Eu pensei: não vou ficar aqui. Acho que foi instinto. Os outros passageiros ficaram sentados, de cinto atado.

    Fui para a frente do avião andando, mas foi tudo rápido: quando cheguei na frente a fumaça já havia tomado conta da cabine. Era uma fumaça tão negra que eu não via as minhas mãos.

    Fogo, não vi nenhum.

    Não pude entrar na cabine de comando, mas encostei perto dali e fiquei em pé. Estava tudo escuro e eu protegi meu nariz com a mão para não respirar a fumaça.

    Lembro que o avião estava procurando um lugar para pousar, porque não daria tempo de chegar ao aeroporto [Orly]; a sensação era que ele estava a 90 graus.

    Nessa hora foi como se eu sentisse a morte me abraçando. Veio um flashback: pensei na minha família, nos meus amigos, como se eu estivesse me despedindo.

    Então eu não consegui mais ficar em pé e caí. Quando senti o baque, desmaiei. Eu ia morrer sem sentir nada.

    [O avião pousou em um campo de cebolas perto de Orly; a maioria dos passageiros morreu asfixiada]

    Fiquei desacordado 30 horas. Soube depois que um bombeiro me tirou do avião por uma escada, no meio dos outros passageiros mortos.

    DESACORDADO

    Acordei sem saber de nada e perguntei à enfermeira como estavam as outras pessoas. "Está tudo bem", ela disse. Até que uma enfermeira trouxe a revista "Fatos e Fotos" e tinha lá minha foto. Pensei: o que aconteceu?!

    Gostaria de ter lembrado de tudo, mas não recordo –do impacto, por exemplo.

    Na primeira semana do hospital fiquei muito mal. Não quebrei nada, tive uma queimadura nas costas, mas o problema nem foi esse.

    O que houve foi que a fumaça intoxicou meu pulmão, e eu só cuspia sangue. Minhas radiografias eram um atestado de óbito, eu fui saber depois.

    Fiquei 52 dias internado na França e 29 dias internado no Brasil, quase três meses. Os médicos disseram que minha recuperação foi impressionante. Acho que ajudou eu ter sido atleta: nadei dois anos no Flamengo e joguei basquete no Botafogo –seis meses depois do acidente eu estava jogando basquete já.

    Outra coisa que ajuda é energia positiva. Na França, eu recebia fitas cassete de pessoas do Brasil dizendo "vamos, Ricardo, vai dar certo". Isso me dava força.

    Foi esse coquetel de coisas que me fez sobreviver, acho: preparo físico, sorte e presença de espírito. Cada coisa teve lá o seu peso.

    Nunca pensei: "poxa, que azar". Pensei de outro jeito: que eu tinha que estar ali, eu quis viajar, que eu tive sorte e fui premiado [por viver]. Nunca tive nem pesadelo com esse acidente.

    Conheci depois o Gilberto [Araújo da Silva, comandante do avião e que morreria seis anos depois, quando o avião que pilotava desapareceu no Japão]. Ele foi me visitar com a mulher e duas filhas. Era muito gente boa. Que triste o que houve com ele.

    Minha vida é dividida em antes e depois do acidente. Os valores mudam. Passei a dar menos valor a coisas do dia a dia que incomodavam. Sobre a religião, não sou nada; tenho a minha fé interior.

    A investigação depois concluiu que um cigarro aceso causou o acidente. Não acredito que tenha sido o cigarro, mas não tenho prova para falar do que aconteceu. A Varig era muito ligada ao governo militar; não sei se alguma coisa foi encoberta.

    Em 1975, voltei à França. Assisti ao pouso da cabine, com um tripulante que estava no meu voo [dez tripulantes sobreviveram]. Ele me mostrou onde foi o acidente. Foi impressionante: a gente estava a cinco, dez minutos de chegar ao aeroporto.

    Sempre me perguntam e digo que não fiquei com medo de avião. Hoje moro em Belo Horizonte e tenho que ir ao Rio a trabalho sempre.

    No ano passado, fui à Europa com a minha mulher e minhas filhas. Penso que não vai acontecer duas vezes um acidente. Uma vez só está bom, né?

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