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    Comércio de passaportes falsos na Tailândia beneficia criminosos em todo o mundo

    JON HENLEY
    DO "GUARDIAN"

    18/03/2014 12h00

    Em 30 de novembro de 2010, Muhammed Ather "Tony" Butt, 39, do Paquistão, foi detido em companhia de sua namorada tailandesa Sirikalya Kitbamrung quando estava tentando atravessar a fronteira para o Laos, na província tailandesa de Nong Khai.

    No mesmo dia, agentes do departamento de investigações especiais da Tailândia detiveram um segundo paquistanês, Zezan Azzan Butt, 27, no bairro de Rat Burana, em Bancoc. Mais ou menos no mesmo momento, do outro lado do planeta, as autoridades espanholas estavam conduzindo revistas em diversos endereços em Barcelona, onde detiveram seis paquistaneses e um nigeriano.

    As ações policiais foram a culminação de uma grande operação combinada, conhecida pelo codinome Alpha, realizada pela polícia da Tailândia e Espanha e movida pela descoberta de que um homem suspeito de ser membro de uma célula terrorista inspirada pela Al Qaeda e responsável por diversos atentados terroristas em Madri - entre os quais o ataque de 11 de março contra os trens da capital espanhola, que matou 191 pessoas e deixou 1,8 mil feridos - estava viajando com um passaporte falso.

    Informações obtidas desse suspeito levariam, em setembro de 2009, à detenção de Ahboor Rambarak Fath, nascido no Irã e naturalizado britânico, no aeroporto de Suvarnabhumi, em Bancoc, o que por sua vez resultaria, um ano mais tarde, na captura de Tony Butt.

    Detido ao desembarcar de um voo oriundo da Espanha, Fath tinha com ele uma mala carregada com 103 passaportes europeus, canadenses e israelenses roubados, que ele confessou destinados à pequena "fábrica de falsificações" que a polícia localizou em seu apartamento horas depois de sua detenção.

    Em uma das salas do apartamento, revelou um agente não identificado do departamento de investigações especiais tailandês ao jornal "Bangkok Post", foram encontrados computadores, uma scanner e impressora de alta definição e mais de mil passaportes roubados, fotos e páginas falsificadas de dados para passaportes da União Europeia, Canadá, China, e Israel, e mais conjuntos sortidos de etiquetas e carimbos de vistos para os Estados Unidos e para a área Schengen [grupo de 26 países europeus que aboliram o uso de passaportes em deslocamentos de seus cidadãos entre os países signatários do acordo].

    Nas palavras de Narat Savetnant, diretor assistente do departamento de investigações especiais tailandês, Butt era o "grande chefe" de uma quadrilha internacional de roubo e falsificação de passaportes, posteriormente vendidos a grupos criminosos internacionais envolvidos em tráfico de armas, tráfico de pessoas, imigração ilegal - e terrorismo.

    Além dos responsáveis pelos atentados em Madri, a quadrilha também teria supostamente fornecido passaportes ao grupo Lashkar-e-Taiba, baseado no Paquistão e acusado de organizar ataques que causaram 164 mortes e deixaram mais de 300 feridos, em 2008 em Mumbai (Índia), e para os separatistas do movimento Tigres do Tamil, no Sri Lanka.

    Roubo de passaportes é "ocorrência normal" na Tailândia - especialmente em Phuket

    Não existe, é claro, nenhuma prova de que o voo MH370 da Malaysia Airlines, desaparecido em 7 de março pouco mais de uma hora depois de decolar de Kuala Lumpur, na Malásia, com rumo a Pequim, tenha sido vítima de um ataque terrorista.

    Mas a informação de que dois dos passageiros do voo estavam viajando com passaportes roubados na Tailândia - um do italiano Luigi Maraldi, que desapareceu quando ele o deixou como garantia do aluguel de uma motocicleta em Phuket, e o outro do austríaco Christian Korzel, que havia reportado a perda de seu documento na mesma área 18 meses antes - serviu para concentrar as atenções no florescente comércio tailandês de passaportes roubados ou falsificados.

    TERRORISTAS

    Alguns desses documentos com certeza terminaram em posse de terroristas.

    Em junho de 2012, o mês em que Butt foi sentenciado a 15 anos de prisão, o departamento de investigações especiais desmantelou outro grande grupo de falsificadores, este acusado de produzir três mil passaportes e vistos falsificados nos seus cinco anos de existência, dois dos quais vendidos a iranianos condenados por uma série de atentados a bomba fracassados empreendidos em Bancoc em fevereiro de 2012, tendo como supostos alvos diplomatas israelenses. (O suposto líder da quadrilha de contrabandistas, o iraniano Seyed Paknejad, 45, foi detido mas saiu sob fiança e depois fugiu para a Malásia, usando um passaporte turco falsificado; ele voltou a ser capturado lá no ano passado, portando 17 passaportes neozelandeses roubados. A Tailândia solicitou sua extradição.)

    As quadrilhas tomam por alvo a Tailândia principalmente por conta do grande número de turistas norte-americanos, europeus e australianos que visitam o país a cada ano. Mas a entrevista do "Bangkok Post" com o agente não identificado do departamento de investigações especiais o cita como tendo declarado que o país também era atraente porque entrar e sair de seu território é relativamente fácil.

    "Você pode negociar com alguns policiais"; e também - um ponto importante - porque algumas autoridades locais tendem a não ver a falsificação de passaportes estrangeiros (em contraposição aos tailandeses) como delito especialmente grave.

    O negócio aparentemente surgiu no começo dos anos 80, quando quadrilhas de criminosos tailandeses começaram a empregar funcionários de hotéis, guias de turismo e profissionais do sexo para roubar não apenas os cheques de viagem dos turistas mas também seus passaportes, sem os quais não seria possível sacar dinheiro com os cheques roubados.

    Quando cartões de crédito começaram a substituir os cheques de viagem, as quadrilhas passaram a usar os conhecimentos especializados já adquiridos nas sofisticadas técnicas de falsificação de documentos para se tornarem fornecedoras mais amplas de documentos falsos, importando passaportes, carteiras de habilitação e documentos de identidade de outros países, alterando-os e vendendo-os a qualquer pessoa disposta a pagar.

    Dois passageiros do voo MH370 estavam viajando com passaportes roubados na Tailândia

    Em 2012, Tinawut Slilapat, agente do departamento de investigações especiais tailandês, disse em entrevista à revista "The Big Chill", dirigida à comunidade estrangeira da Tailândia, que "cerca de 20" grupos, muitos dos quais liderados por criminosos do sul da Ásia ou do Oriente Médio, estavam naquele momento envolvidos em diversas formas de fraude com passaportes na Tailândia.

    Eles usavam passaportes roubados na Tailândia mas também em países como Espanha, França e Bélgica, acrescentavam novas fotos, novas páginas de dados e assinaturas, e os vendiam a clientes que ou viajavam à Tailândia ou enviavam mensageiros encarregados de apanhá-los. Quase todos os passaportes eram usados para cometer crimes fora da Tailândia, declarou Slilapat à revista.

    Ele disse que um passaporte roubado e não adulterado - um documento cada vez mais usado pelas quadrilhas, que agora negociam volume tão alto de documentos que não podem mais esperar por possíveis clientes da idade e aparência adequados - é vendido por entre US$ 1,5 mil e US$ 3 mil, a depender de sua condição, nacionalidade e dos anos de validade restantes.

    Passaportes britânicos, espanhóis e de outros países da Europa custam cerca de US$ 1 mil, segundo Slilapat, enquanto os israelenses custam entre US$ 1,5 mil e US$ 2 mil e os canadenses chegam a US$ 3 mil.

    "Continua a existir uma demanda imensa por passaportes, e fraude de identidade é um instrumento para sustentar outras atividades criminosas", disse o policial. "Estamos falando sobre uma fonte de renda muito lucrativa para organizações criminosas".

    Steve Vickers, consultor de risco radicado em Hong Kong, confirmou ao "Wall Street Journal" que "falsificações de toda espécie de documento de identidade são muito comuns, especialmente as originárias da Tailândia. Ou seja, é bem fácil conseguir um passaporte roubado ou falsificado".

    TURISTAS

    Os turistas que visitam o país do Sudeste Asiático fariam bem em ficar de olho em seus passaportes.

    De acordo com a Secretaria do Exterior britânica, cerca de 600 passaportes do Reino Unido foram roubados lá em 2012-2013, o que faz da Tailândia o sétimo país na lista de passaportes britânicos perdidos (um dado revelador, tendo em vista as conexões de Butt, é o fato de que a Espanha, com 5,6 mil passaportes britânicos perdidos no ano passado, encabeça a lista). Um antigo cônsul australiano, Larry Cunningham, declarou em entrevista ao jornal "South China Morning Post" que o roubo de passaportes na Tailândia - especialmente em Phuket - é uma "ocorrência regular".

    Alguns passaportes certamente foram perdidos, disse Cunningham - "caídos de bolsos ou extraviados. Mas também existe número substancial de incidentes de roubo de passaportes".

    Um passeio rápido pelos fóruns de viagens da Internet, por exemplo o do Lonely Planet, revela incontáveis histórias angustiadas sobre passaportes perdidos e supostamente roubados - muitas vezes em agências de locação de automóveis e motocicletas.

    Quando Maraldi, que ligou para a família para desmentir a informação de sua morte como passageiro do voo MH370, pediu de volta o passaporte na locadora de motos onde o havia deixado, foi informado de que o passaporte havia sido entregue a "um homem italiano que disse que era seu marido".

    Mas um passaporte roubado e falsificado só funcionará como documento de viagem se ninguém verificá-lo. Tanto Kozel quanto Maraldi reportaram o roubo de seus passaportes, e as ocorrências foram devidamente registradas no banco de dados de documentos perdidos e roubados (LSTD) mantido pela Interpol.

    Criado depois dos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 contra Nova York e Washington, o banco de dados LSTD agora contém 40 milhões de registros.

    A organização internacional de cooperação policial informou no final de semana que o banco de dados é usado mais de 800 milhões de vezes ao ano, principalmente pelos Estados Unidos, que o utilizaram mais de 250 milhões de vezes, e pelo Reino Unido (120 milhões de consultas) e Emirados Árabes Unidos (50 milhões).

    "No ano passado, passageiros puderam embarcar em seus aviões mais de um bilhão de vezes sem que seus passaportes fossem verificados junto ao banco de dados da Interpol".

    As autoridades em muitos outros países, porém, parecem recorrer ao banco de dados com menos frequência, se é que o fazem.

    "No ano passado", a Interpol informou, "passageiros puderam embarcar em seus aviões mais de um bilhão de vezes sem que seus passaportes fossem verificados junto ao banco de dados... Infelizmente, poucos dos países membros realizam buscas sistemáticas nesse bancos de dados para determinar se um passageiro está usando um passaporte perdido ou roubado para embarcar em um avião".

    A Interpol afirmou que, no caso do voo MH370, "nenhuma verificação quanto aos passaportes austríaco e italiano roubados foi realizada por qualquer país, entre o momento em que os documentos foram registrados no banco de dados da Interpol e o momento em que o voo decolou".

    As autoridades internacionais de controle de fronteira tiveram seu mais recente lembrete sobre a necessidade de apertar os controles em 2010, quando um voo da Air India Express caiu na aterrissagem em Mangalore e 10 dos 158 passageiros e tripulantes à bordo - todos morreram como resultado da queda - estavam viajando com documentos roubados ou falsificados, o que gerou sérias preocupações quanto a verificações de segurança em Dubai, a origem do voo.

    Ronald Noble, secretário geral da Interpol, foi ríspido neste final de semana quanto à evidente falta de verificações como essas no embarque dos passageiros para o voo MH370.

    "Embora seja cedo demais para especular quanto a qualquer conexão entre esses passaportes roubados e o desaparecimento do avião, é claramente motivo de séria preocupação que qualquer passageiro tenha podido embarcar em um voo internacional usando um passaporte roubado que consta do banco de dados da Interpol", disse Noble.

    "Há anos a Interpol vem questionando por que os países preferem esperar uma tragédia antes de colocar em vigor medidas de segurança mais prudentes em suas fronteiras e portões de embarque.

    Agora temos um caso real em que o mundo especula se os detentores de passaportes roubados eram terroristas, enquanto a Interpol questiona por que apenas alguns países cuidam de garantir que pessoas em posse de passaportes roubados não embarquem em voos internacionais", acrescentou.

    "Se a Malaysia Airlines e todas as companhias mundiais de aviação decidissem verificar os detalhes dos passaportes de potenciais passageiros junto ao banco de dados da Interpol, não teríamos de especular", afirmou Noble.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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