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    Marroquinas trabalham como "mulas" na fronteira com a Espanha

    SUZANNE DALEY
    DO "NEW YORK TIMES"

    08/04/2014 02h00

    MELILLA, Espanha - Eram 9h e centenas de marroquinas, muitas delas idosas ou quase, já estavam trabalhando, subindo o morro para chegar ao posto de fronteira em Melilla. Muitas delas traziam fardos do tamanho de uma máquina de lavar roupa amarrados às costas.

    Dezenas de outras, com medo de ir mais longe, aguardavam ao lado da estrada com seus fardos; seus rostos evidenciavam exaustão e sentimento de derrota. Mais adiante, homens usando bonés de beisebol amarelos, alguns usando seus cintos como chicotes, tentavam controlar a multidão, com pouco efeito.

    "Meus filhos precisam comer", falou uma das mulheres, Rkia Rmamda, chorando enquanto olhava a confusão. "O que eu posso fazer? Tenho que trabalhar."

    É provável que não exista no mundo uma separação econômica mais nítida e marcante que as cercas que contornam Melilla e Ceuta, os enclaves da Espanha na costa norte da África. Aqui apenas algumas fileiras de arame farpado e grade metálica separam a riqueza da Europa do desespero da África. A barreira é tão tênue, e a tentação de passar por cima dela é tão grande, que migrantes africanos regularmente tentam furar o bloqueio. Oitocentas pessoas tentaram escalar as cercas numa investida coordenada, em 28 de março.

    Mas as mulheres como Rmamda, conhecidas como "as mulheres mulas", fazem parte dos poucos marroquinos de sorte que vivem na região imediatamente em volta de Melilla e não precisam de visto para atravessar a fronteira. Nas últimas duas décadas, elas vêm aproveitando o privilégio para carregar da Espanha para o Marrocos bens como roupas de segunda mão, papel higiênico e produtos eletrônicos pequenos, às vezes ganhando apenas € 3 por viagem, às vezes até € 10. A maioria delas não ganha mais que € 15 ou € 20 por semana.

    "A diferença de renda entre a Espanha e o Marrocos é de entre 17 e 20 vezes", explicou José María López Bueno, presidente da Promesa, que dá apoio ao desenvolvimento econômico de Melilla. "É a maior disparidade de renda vista entre dois lados de qualquer fronteira."

    Todos os anos chegam ao porto de Melilla € 300 milhões em mercadorias, virtualmente todas destinadas ao Marrocos e outros países africanos. Primeiro, porém, mulheres como Rmamda carregam fardos nas costas -ou tentam empurrar os fardos morro acima- por uma distância de meio quilômetro, para que os comerciantes marroquinos possam deixar de pagar as taxas de importação. Qualquer pacote carregado manualmente até o Marrocos é considerado bagagem e, portanto, é isento de impostos.

    Nos últimos meses, as dificuldades econômicas no Marrocos vêm levando homens a também disputar esse trabalho. Jovens e fortes, eles andam mais rápido que as mulheres, obstruindo a passagem delas e empurrando-as para o lado.

    Às 10h de um dia recente, Zahra Kechache, 65, que carrega pacotes há mais de uma década, estava tendo uma crise de asma. Nora el-Koukhou, 39, que tem cinco filhos e marido na cadeia, chorava depois de ser esmagada entre fardos no corredor que leva às catracas da fronteira. Uma mulher estava deitada na valeta chorando, enquanto o sangue escorria de sua cabeça. "Os homens tornam este trabalho impossível", disse Rmamda, que sustenta quatro filhos e seu marido cego. "O trabalho está muito perigoso agora."

    Apenas nos anos 1990 foi erguida uma barreira de fato entre o Marrocos e Melilla. Até então, a passagem de pessoas e bens pela fronteira era fácil. Mas a entrada da Espanha na União Europeia mudou tudo isso. A Espanha teve que reforçar seus controles de fronteira.

    Os fardos podem pesar até cem quilos, mas a maioria das mulheres carrega entre 70 e 80. A Guardia Civil, a força policial militar espanhola, mantém uma ambulância de prontidão. Um porta-voz da Guardia Civil em Melilla, Juan Antonio Martin Rivera, disse que a ambulância é chamada três ou quatro vezes por mês.

    Para as autoridades espanholas, há pouco que elas possam fazer em relação ao que acontece na fronteira, apesar de acontecer em solo espanhol. Na maioria dos dias, há apenas sete policiais da Guardia Civil para acompanhar a travessia dos carregadores. A maior parte do controle da multidão fica a cargo dos homens de boné amarelo, contratados por comerciantes marroquinos para manter a ordem, contou Martin.

    O governo marroquino abre a fronteira para essa atividade e a fecha a seu próprio critério, fato que reforça a necessidade de passar pelas catracas correndo enquanto ainda estão abertas, provocando situações de perigo.

    Os agentes da Guarda Civil designados para evitar tumultos parecem achar difícil assistir à selvageria da cena. "Isto não é um trabalho digno da União Europeia", falou um deles, enojado.
    As carregadoras começam a chegar do Marrocos ao raiar do dia, fazendo filas, às vezes durante horas, antes da abertura da fronteira, às 7h. A maioria das mulheres gostaria que houvesse mais ordem na fronteira e que os comerciantes fizessem fardos menores.

    Algumas simplesmente torcem para sua sorte mudar. A maioria mal está conseguindo sobreviver.

    "Estou acabando com minha saúde deste jeito", falou Nora el-Koukhou. "Sou metade da pessoa que eu era."

    Colaboraram Rachel Chaundler e Almudena Toral

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