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    Análise: A Igreja precisa desumanizar João Paulo 2º para torná-lo santo?

    SOPHIA DEBOICK
    DO "GUARDIAN"

    26/04/2014 16h56

    Quando João Paulo 2º for canonizado, no domingo, será tanto um resultado de seus próprios atos na terra quanto de qualquer intercessão divina.

    Tendo enxugado o processo de canonização durante seu pontificado, reduzindo o número de milagres exigidos para comprovar que o candidato está certamente no céu (é a isso que se resume a canonização), João Paulo sem querer tornou possível que ele próprio fosse santificado nove anos apenas após sua morte.

    Dois milagres -a aparente cura de uma freira francesa que sofria do mal de Parkinson e de uma costarriquenha que tinha um aneurisma cerebral-bastaram para a canonização desse mais carismático dos papas e a extensão de seu valor de relações públicas para o século 21, um século no qual, até a eleição do papa Francisco, a Igreja católica parecia destituída de qualquer faísca de vitalidade.

    Na realidade, o antigo Karol Józef Wojtyla já é um santo na imaginação popular, e essa canonização é a formalização de um processo de idolatria comum a muitos chamados santos seculares. Como qualquer celebridade, contudo, a representação popular de João Paulo é contestada, mutável e controversa.

    No início de sua crítica de mais de 300 páginas a João Paulo, "A Face Oculta do Pontificado de João Paulo 2º", John Cornwell não pôde deixar de reconhecer as qualidades humanas muito reais desse "homem dotado de rara profundidade de alma, um evangelista de energia incansável", plenamente merecedor da alcunha "Karol, o Grande". Dramaturgo, ator, jogador de futebol, linguista, viajante, sacerdote, teólogo, defensor do ecumenismo, estadista internacional e reformador radical do pontificado, João Paulo era o dinamismo em pessoa.

    Mas o colossal Centro João Paulo 2º que está sendo erguido nos arredores de Cracóvia não é uma homenagem apropriada ao homem que em 1979, na praça da Vitória, em Varsóvia, pronunciou essa frase para centenas de milhares de seus conterrâneos, que pouco depois passariam por um ano e meio de lei marcial e uma década de turbulência.

    Aqui fica claro que, antes mesmo de sua canonização, João Paulo já está passando por um processo de privação de sua individualidade para encaixar-se nos moldes previamente definidos do santo -benevolente, etéreo e unidimensional–, e esse processo pode ser visto também em sua representação popular mais ampla.

    É difícil encontrar Wojtyla, o homem, no Centro João Paulo 2º. Na igreja inferior do santuário, uma série de pinturas convencionais e sentimentalizadas mostra as visitas que João Paulo fez aos principais santuários marianos durante seu pontificado, e aqui o encontramos retratado apenas nas tonalidades anódinas da santidade.

    Enquanto isso, os únicos objetos humanizadores no museu adjacente são os equipamentos de esqui do papa, evocando sua paixão por esquiar primeiro nas montanhas Beskid e depois nos Alpes italianos. Essa relíquia de um entusiasmo pessoal dele forma um contraste forte com o papa celestial mostrado no retábulo da igreja inferior, flutuando sobre nuvens e cercado por outros grandes santos poloneses: Maximiliano Kolbe, Faustyna Kowalska e Jadwiga. No centro, vê-se uma desarmonia clara entre Wojtyla, a personalidade histórica vibrante, e João Paulo 2º, o papa santo padronizado.

    Parece que os santos precisam passar por um processo de anulação de personalidade para serem convincentemente exaltados, tornando-se uma tábula rasa para receber as projeções espirituais dos fiéis, e não surpreende que João Paulo 2º apareça sob essa forma estéril e desligada da realidade neste centro internacional de seu culto devocional. Mas é notável que esse processo ainda seja possível para Wojtyla, que é uma figura muito recente e foi inimaginavelmente famoso em vida.

    Talvez a "desindividualização" seja ainda mais necessária em se tratando de um homem que foi tão evidentemente carne e osso real, tendo sofrido um declínio doloroso e muito público na velhice e mostrado em vários momentos de seu pontificado que era capaz de erros de julgamento muito humanos. Mesmo assim, é o João Paulo 2º falho, mas excepcional, se for recordado, que tem mais chances que o papa-santo insosso e sorridente de inspirar católicos e não católicos neste domingo.

    Tradução de CLARA ALLAIN

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